Apesar de maioria contrária, marco temporal ‘flex’ ainda ameaça indígenas
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta quinta-feira, 21, o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral, que discute o marco temporal para a demarcação de terras indígenas.
Sete ministros já votaram. Desses, cinco são contrários a tese do marco temporal e dois favoráveis. Já é a 11º sessão do Supremo a tratar do tema. Ainda faltam os votos dos ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e da presidente, Rosa Weber.
Com mais um voto a maioria fica formada, mas ainda assim existe a possiblidade de uma decisão intermediária, que derruba a tese, mas que flexibilizaria o uso das terras homologadas para agropecuária e mineração mediante aval das comunidades indígenas e do Congresso.
(ATUALIZAÇÃO às 15h15min: com o voto do ministro Luiz Fux, o STF constituiu maioria contra a tese do marco temporal. Mais tarde se juntariam ao voto do relator, Gilmar Mendes e Rosa Weber).
Portanto, mesmo com posição contrária consolidada contra a tese, os ministros ainda decidirão sobre o alcance da decisão.
O marco temporal flex de Dias Toffoli
Na quarta-feira, 20, no julgamento sobre o marco temporal para a demarcação de terras indígenas teve apenas o voto do ministro Dias Toffoli.
Entre os votos proferidos, ficou aberta a possibilidade de indenização de particulares que adquiriram terras de “boa-fé”. Pelo entendimento, a indenização por benfeitorias e pela terra nua valeria para proprietários que receberam do governo títulos de terras que deveriam ser consideradas como áreas indígenas.
Em outro ponto, o ministro Dias Toffoli abriu a possibilidade de exploração mineral e de lavouras dentro das terras indígenas, mediante aprovação de uma lei pelo Congresso e a autorização dos indígenas.
Os dois pontos são questionados pelas entidades que atuam em defesa dos indígenas. Para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a possibilidade de indenização pode inviabilizar as demarcações. A entidade também argumenta que a exploração econômica flexibiliza o usufruto exclusivo das terras pelos indígenas.
Para acompanhar o julgamento no STF, indígenas estão mobilizados em Brasília. Eles também se manifestam contra a tentativa do Senado de legalizar o marco temporal, que tramita na casa em paralelo ao julgamento no STF.
Os ministros Edson Fachin (relator), Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli consideram que o direito à terra pelas comunidades indígenas independe da ocupação do local até 5 de setembro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal.
Em sentindo contrário, os ministros Nunes Marques e André Mendonça entendem que a data da promulgação deve ser fixada como marco temporal da ocupação. O julgamento prossegue a partir das 14h, com transmissão ao vivo pela TV Justiça, pela Rádio Justiça e pelo canal do STF no YouTube.
Acompanhe ao vivo:
Quem são os ocupantes de boa-fé
Toffoli considera que a Constituição Federal de 1988, ao assegurar aos indígenas o direito às terras tradicionais, partiu da concepção dos próprios povos sobre seu território, para permitir que a ocupação se estabeleça conforme seus usos, seus costumes e suas tradições. O ministro entende que, nos casos em que a demarcação envolva a retirada de não indígenas que ocupem a área de boa-fé, deve-se buscar seu reassentamento. Caso isso não seja possível, a indenização deverá abranger, além das benfeitorias, o valor da terra nua, calculado em processo paralelo ao demarcatório e sem direito à retenção das terras.
Redimensionamento de territórios
Toffoli defendeu a possibilidade de redimensionamento de terra indígena, mas apenas se for comprovado que o processo demarcatório não seguiu as normas constitucionais e legais. Para o ministro, esta hipótese é excepcional, e a anulação do ato administrativo de demarcação deve observar o prazo decadencial de cinco anos. Para as áreas já homologadas, o prazo passa a contar a partir da publicação da ata do julgamento do STF.
O que é a tese do marco temporal
Marco temporal é uma tese jurídica segundo a qual os povos indígenas têm direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam na data de promulgação da Constituição de 1988. Ela se contrapõe à teoria do indigenato, segundo a qual o direito dos povos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas é anterior à criação do Estado brasileiro, cabendo a este apenas demarcar e declarar os limites territoriais.
Direito originário
O caso que originou o recurso está relacionado a um pedido do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) de reintegração de posse de uma área localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás (SC), declarada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) como de tradicional ocupação indígena. No recurso, a Funai contesta decisão do Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4), para quem não foi demonstrado que as terras seriam tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e confirmou a sentença em que fora determinada a reintegração de posse.
Mobilização dos povos indígenas
Povos indígenas de diversas regiões do país estão mobilizados em Brasília contra a tese do marco temporal de seus territórios, que volta a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e contra o Projeto de Lei (PL) 2.903/2023 que trata do mesmo tema. Os povos reivindicam também a demarcação imediata de suas terras. O PL 2.903/2023 estabelece que os povos indígenas só têm direito às áreas que já eram ocupadas por eles no dia da promulgação da Constituição Federal de 1988 (5 de outubro do mesmo ano).
Em paralelo ao julgamento no STF, projeto aprovado na Câmara dos Deputados a toque de caixa já recebeu parecer favorável do relator, o senador Marcos Rogério (PL-RO), e esteve em análise na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado na quarta-feira, pela manhã.
Na quarta-feira, 20, os atos de protesto começaram em frente à Biblioteca Nacional, no centro da capital, com cerca de mil indígenas, organizados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Os indígenas fizeram rodas separadas de homens e mulheres para dançar e entoar cantos de seus povos. Nos corpos pintados com líquidos extraídos das frutas amazônicas jenipapo e urucum, eles exibiram adornos típicos com miçangas e penas.
Coletiva das lideranças
Em entrevista coletiva, as lideranças indígenas se posicionaram contra o marco temporal em seus territórios. O cacique Kretã Kaingang, um dos coordenadores da Apib, questionou o voto do ministro do STF Alexandre de Moraes na parte que trata da indenização aos fazendeiros que ocupam atualmente as terras.
“O que nos preocupa muito é a questão da indenização sobre a terra nua, a indenização prévia. Nós não somos contra o pagamento de indenização de pequenos agricultores, mas isso não pode estar incluído no voto do marco temporal. Tem que ficar fora”.
Ariene Susui, da etnia Wapichana, em Roraima, disse que a mobilização dos indígenas, em Brasília, é para garantir que direitos conquistados não sejam negociados. “Defendemos os direitos que estão a Constituição Federal de 1988. Direitos devem ser respeitados, ser resguardados e não serem questionados. Nós estamos aqui numa luta não só pelos povos indígenas, nós lutamos pela sociedade brasileira e também do mundo. Somos os povos guardiões dos biomas, também estamos presentes nessa sociedade. Contribuímos com o nosso conhecimento, com os nossos saberes. Estamos em vários espaços.”
O cacique-geral do povo Xokleng, Nilton Ndili, pediu agilidade na demarcação dos territórios dos povos originários do Brasil. “Estamos em luta, buscando direitos para que não seja esquecida ou abolida a nossa história, para que o nosso direito seja respeitado dentro da Constituição [Federal]. Então, aguardamos que seja demarcado o território brasileiro para a nossa nação indígena.”
Assassinatos
A anciã de 74 anos Isabela, do povo Xokleng, vinda de Santa Catarina, falou no idioma nativo, com a tradução de um intérprete, que é preciso pôr fim aos assassinatos de indígenas. “Chega de morte dentro do nosso território. Chega de matança com nossos povos tradicionais. Não queremos mais viver na tristeza. Queremos nosso território para sermos felizes na nossa terra, vivendo nossos costumes e nossas tradições”.
Para outra representante da etnia Xokleng, a jovem Txulu, o julgamento no STF ultrapassa a questão do direito pelas comunidades indígenas. “O julgamento de hoje vai determinar a vida das pessoas indígenas, das nossas crianças, das nossas florestas e dos nossos rios. Então, é importante que toda a sociedade civil, que todos os ministros, senadores entendam que o que está em jogo, hoje, não é somente a questão de um pedaço de chão, mas são as nossas vidas.
O advogado Maurício Terena, coordenador jurídico na Apib, acompanhou as discussões sobre o PL 2903, na CCJ do Senado Federal, nesta quarta-feira e lamentou que apenas dez indígenas foram autorizados a acompanhar os debates em torno do PL. Maurício Terena ainda considerou o texto da proposta como mais um ataque dos parlamentares contra os direitos dos povos indígenas.
Terras invadidas
“Não aguentamos mais esse terrorismo, quando temos nossas terras invadidas, madeireiro extraindo riquezas e grileiros invadindo nossos territórios. Nós não aguentamos mais! São séculos de luta. Eu sou um jovem indígena, mas quantos anciões estão aqui, que passaram suas juventudes lutando? É luta atrás de luta para garantir nossos direitos. E só através dessa luta vamos conseguir frear o marco temporal,” disse Terena.
Para o líder indígena, os ocupantes das terras devem recorrer à Justiça para cobrar as indenizações dos governos estatuais e federal. “Não jogue mais uma responsabilidade para nós, povos indígenas do Brasil, para não entrarmos em conflito. Porque no caso de permanecer a tese do ministro Alexandre de Moraes, muitos conflitos ainda irão acontecer.”
Em seguida, por volta das 12h30, os indígenas saíram em marcha pacífica pela Esplanada dos Ministérios até a Praça dos Três Poderes, onde acompanharão o julgamento do STF nesta tarde.
* Com informações do STF, Apib, CIMI e Agência Brasil