Condição para um serviço público de qualidade
Foto: Sintrajufe/ Divulgação
O conteúdo da Resolução 439/2022 do CNJ, que autoriza os tribunais a criarem programas de “residência judiciária”, não pode ser dissociado daquilo que hoje vivemos como realidade no serviço público. Em especial no Poder Judiciário.
Já há tempo vem ocorrendo diminuição no número de concursos públicos, algo que se agravou fortemente a partir da EC 95/2016 (teto de gastos). Não há reposição das servidoras e servidores que se aposentam. Um quadro dramático em uma realidade que, no caso da Justiça do Trabalho – em que atuo –, lida-se com direitos fundamentais.
A impossibilidade de atuar de forma célere e eficaz nos processos judiciais, pela falta de servidores em número minimamente suficiente para dar conta da demanda, é adoecedora.
Se falta pessoal, a resolução pode parecer positiva. Ocorre que a Constituição da República estabelece o modo de contratação, de forma a conferir uma garantia que não é benefício de quem trabalha para o Estado, mas sim da sociedade.
Contar com servidoras e servidores selecionados por concurso, com estabilidade, carreira, remuneração decente, é condição para um serviço público de qualidade.
Então, uma medida como essa até poderia ser benéfica, e justificar-se da perspectiva da aprendizagem e da aproximação com a sociedade, se tivéssemos um quadro suficiente de servidoras e servidores estáveis. Essa não é a realidade.
A Resolução refere-se a pessoas já formadas, qualificadas, cuja força de trabalho poderá ser utilizada pelo Estado, sem prévia seleção por concurso público, apesar da literalidade do artigo 37 da Constituição.
Contexto
Essa medida precisa, portanto, ser também compreendida dentro do contexto em que o próprio CNJ surge, a partir da EC 45/2004, que se traduz em larga medida como uma indicação de observância, por parte do Brasil, do conteúdo do Documento 319 do Banco Mundial denominado O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe – Elementos para Reforma, tradução de Sandro Eduardo Sardá, publicado em junho de 1996.
Esse documento propõe não apenas a criação de mecanismos e órgãos que imprimam ao Poder Judiciário a lógica da gestão empresarial, como também indica a necessidade de enxugamento da estrutura judicial.
Se fôssemos ainda mais adiante, encontraríamos ligação entre essa medida e a política neoliberal que no Brasil se intensifica a partir da década de 1990 e que está intimamente relacionada à precarização do serviço público.
Quero com isso afirmar que o achatamento das condições laborais e o sistemático ataque ao direito de greve das servidoras e dos servidores públicos, são o outro lado da mesma política que permite e incentiva, há décadas, a terceirização no serviço público, e que tem direta relação com o que concretamente se produz a partir do texto dessa resolução.
A terceirização já vem implicando burla à regra constitucional do concurso público. Seu efeito deletério pode ser dimensionado a partir do número de demandas judiciais, nas quais entes públicos atuam e respondem – quando não se eximem de responsabilidade – na condição de tomadores do trabalho de empresas terceirizadas que somem no ar sem deixar vestígios.
Pois bem, o que a Resolução 439 dá um passo adiante, aprofundando ainda mais o abismo entre a prática e a previsão constitucional. Algo de extrema gravidade, pois se refere a trabalho a ser realizado por pessoas especializadas (formadas, com especialização, mestrado ou doutorado) mediante baixo salário (em torno de R$ 2,5 mil), por prazo certo (até 36 meses) e sem qualquer garantia. É claro que o objetivo de promover aprendizagem emociona, mas seria ingênuo pensar que é efetivamente disso que se trata. E na atual quadra da história, sequer temos o direito de ser ingênuos.
Valdete Souto Severo é juíza do Trabalho no TRT4, Pós-doutora em Ciências Políticas pela Ufrgs, Doutora em Direito do Trabalho pela USP e Mestre em Direitos Fundamentais pela PUCRS.