Ensino domiciliar: por que e para quem?
Foto: Agência Brasil
A educação domiciliar, incluída entre as 35 prioridades do governo Bolsonaro ainda nos 100 primeiros dias do governo, é a única prioridade da pauta educacional do país hoje. Bolsonaro submeteu projeto de lei regulamentando o ensino domiciliar em 11 de abril de 2019. Nos últimos dias tem havido uma corrida para aprovação em âmbito nacional.
Aqui, no Rio Grande do Sul, deputados alinhados com a política nacional fazem sua parte na Assembleia Legislativa, contrariando parecer do Conselho Estadual de Educação do Estado (Ceed) e da Secretaria de Educação Estadual, aprovaram no último dia 8 de junho, lei que autoriza a educação domiciliar, conhecida como ‘homeschooling‘. O projeto de lei (PL) 170/2019 de autoria do deputado Fábio Ostermann do Partido Novo, recebeu 28 votos favoráveis e 21 votos contrários, segue agora, para aprovação do governador Eduardo Leite que tem 15 dias para sancionar ou não. Espero, sinceramente, que em um momento de lucidez ele vete essa proposta, por vários motivos.
Hoje, no Brasil, a matrícula de crianças de 4 a 17 anos nas escolas é obrigatória. Aqueles que defendem a educação domiciliar relacionam a aceitação do modelo ao que chamam de liberdade educacional. O Superior Tribunal Federal (STF), em 2018, considerou que a educação domiciliar não é inconstitucional, mas indicou que para ser adotada precisa de regulamentação – e, de acordo com deputados gaúchos contrários ao PL 170, precisa de regulamentação nacional.
Defesa
Na opção do ensino domiciliar há uma ideologia ultraliberal e ao mesmo tempo conservadora, que concebe o desenvolvimento do sujeito numa perspectiva individualista. Em nome de um suposto direito da família em educar seu filho de acordo com os seus preceitos, as crianças são apartadas de um espaço social (escola) fundante para experiências coletivas. Nesse aspecto, as famílias argumentam que seus filhos frequentam clubes, igrejas, brincam com outras crianças, qual o problema? Em geral, restrito aos seus círculos de convivência, pré-selecionados pelos pais.
Outro argumento a favor, tem a ver com crianças que requerem condições particulares, como é o caso de pessoas com deficiência. Algumas famílias alegam que, para essas crianças, o ensino domiciliar seria mais efetivo do que na escola. É possível que em alguns casos até seja, mas se isso ocorre é porque o estado não está cumprindo a sua parte. O problema é que com a regulamentação do homeschooling, o estado, de certa forma, se desobriga de garantir escolas inclusivas para lidar com a diversidade.
Em geral, as famílias que hoje reivindicam a regulamentação são famílias com maior poder aquisitivo – onde pelo menos um dos pais pode permanecer em casa com os filhos, sem precisar trabalhar – exceção entre as famílias gaúchas, que normalmente dependem do trabalho de todos os membros adultos para garantir seu sustento.
Questionamentos
Aspectos ligados a mercantilização preocupam em relação ao projeto gaúcho. É possível identificar pelo menos dois modelos de educação incluídos no texto:
a) quem fizer a educação domiciliar tem que prestar contas, embora não indiquem detalhes sobre isso;
b) se o estudante estiver vinculado a entidade de ensino à distância ou entidade de apoio ao ensino domiciliar não precisa prestar contas.
Nesse último, a entidade fornecerá os certificados necessários para o estudante exigidos nas etapas subsequentes ao ensino básico? Essa previsão, estaria regulamentando o ensino à distância no nível fundamental e médio, mediante mero formulário de requerimento assinado pelos pais? Se o certificado for concedido pela rede pública, mediante alguma avaliação (prevista no projeto), na ocasião do vestibular, por exemplo, esse estudante – que teve formação de responsabilidade de grupos privados, pais, professores particulares, ensino a distância – poderá disputar vaga na universidade com alunos de realidade distinta no sistema de cotas da rede pública?
O berço da prática do homeschooling é os Estados Unidos, onde abarca cerca de 2 milhões de estadunidenses, ou seja , 4% dos estudantes daquele país. Vale lembrar de polêmicas que envolveram o presidente Donald Trump, que durante seu governo, acenava para que houvesse financiamento público à prática do homeschooling – o que não surpreende, tendo em vista o aspecto inerente a essa modalidade da privatização.
Interesses
Para quem acompanha os movimentos no mercado educacional sabe que há uma série de investidas de grandes grupos empresariais na aquisição de escolas privadas.
Conglomerados do ensino superior após dominar o mercado de faculdades privadas, avançam sobre a educação básica. Diferente do ensino superior, o básico está mais blindado contra as crises econômicas, pela obrigatoriedade do ensino e seus “clientes” por 12 anos.
Eis que a Assembleia gaúcha abre mais um nicho para atuação: atividades de apoio ao ensino domiciliar. Paralelamente, acompanha-se a proliferação das Edtechs, que são empresas que desenvolvem soluções tecnológicas para a oferta de serviços relacionados à educação.
Em ambos os casos incluídos no PL 170, se verifica como relevante o segmento de mercado criado – quer pela comercialização de material didático dirigido às famílias que optam pela educação doméstica, quer pela criação de empresas para o atendimento educacional em domicílio.
Esse é um aspecto que difere o projeto aprovado pela ALRS e a do Projeto de Lei aprovado sobre o tema no Distrito Federal, em fevereiro desse ano. No DF, as famílias terão que comprovar capacidade técnica para transmitir os conhecimentos, de acordo com as exigências da Secretaria da Educação, também precisarão ter um aval de assistente social, pedagogo e psicólogo para assumir essa responsabilidade – definindo a família como educadora.
Acesso
Em abril desse ano, texto aprovado pelo Conselho Estadual de Educação de São Paulo e homologado pela Secretaria de Educação indicava que, se a educação domiciliar fosse aprovada no país, em âmbito nacional, no estado paulista os estudantes deverão ter aulas com profissionais e terão que estudar de acordo com o que define a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), entre outros critérios. Ou seja, não podem ser privadas, por exemplo, no ensino de Ciências, de aprender sobre Darwin (teoria evolucionista) porque isso está na BNCC. Já o texto aprovado pela Assembleia gaúcha deixa em aberto essas questões.
Sabendo que as escolas têm foco na avaliação continuada dos profissionais da educação, questiona-se: Não haverá qualquer requisito de avaliação dos educadores domiciliares? Por outro lado, se for exigido o ensino superior, torna a proposta elitista e rompe com princípios de universalidade.
Na tentativa de defender grupos ultraconservadores, estará comprometido o direito de ir à escola de uma população subalternizada. Aumento da evasão escolar é a última coisa que precisamos nesse momento. Segundo pesquisa do Conselho Nacional de Juventude (2020), 28% dos jovens que evadiram em decorrência da pandemia não pretendem retomar os estudos quando houver retorno presencial. E o Rio Grande do Sul está facilitando, no curto prazo. De acordo com o PL 170, basta entregar um formulário de adesão ao ensino domiciliar! A mesma regulamentação que dá liberdade para os pais que só querem o melhor para os seus filhos, dá poderes para os abusivos.
Custo
Impossível não se perguntar, qual a capacidade do estado de fazer o acompanhamento necessário? Qual o custo da criação e manutenção de uma plataforma para acompanhar os que praticam a educação domiciliar no estado? Nosso estado já tem um orçamento insuficiente para área educacional, o magistério público da rede estadual está no sétimo ano sem receber reposição da inflação.
O orçamento disponível sequer é suficiente para cumprir com o emergencial, está distante do necessário para o já previsto em Lei. Não perece haver espaço para aprovar uma nova política, que atende à demanda de um grupo pequeno e que exige orçamento. Outra questão que surge é se as famílias gaúchas que adotarem o homeschooling poderão requerer financiamento público? O Estado poderá se deparar com isso.
A educação é uma relação de ensino e aprendizagem, em que a figura do educador, formado cientificamente e pedagogicamente, é central. Essa regulamentação também contribui para o que chamamos de “Uberização” do professor.
Os trabalhadores “uberizados” são aqueles ofertantes de serviços que não estabelecem vínculos trabalhistas. A política de preço nesse sistema é unilateral, independendo da vontade individual desses trabalhadores desregulamentados. A necessidade de um professor, seja para ensinar conteúdo específicos ou mesmo realizar a totalidade do atendimento na unidade domiciliar é um prato cheio para essas modalidades de trabalho “uberizado”. Além do mais, qualquer pessoa se torna apta a ocupar o lugar do professor “educador doméstico”.
De acordo com o censo escolar no Rio Grande do Sul, temos 2,3 milhões de matrículas no ensino básico (incluindo público e privado) e, de acordo com dados divulgados pela imprensa, estima-se que haja 1 mil famílias que desejam a regulamentação do homeschooling. O que será prioridade para o governador?
Anelise Manganelli é economista e técnica do Dieese. Escreve mensalmente para o Extra Classe.