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Fabiano Contarato detona a LGBTfobia: “Somos todos iguais”

Por Cristiano Bastos / Publicado em 12 de novembro de 2021

Foto: Gabriel Lordêllo/ Divulgação

“A Câmara dos Deputados e o Senado Federal sistematicamente fecham as portas para as pessoas LGBTQIA+. E não só para essas pessoas, mas igualmente para os negros, quilombolas, mulheres e pobres”

Foto: Gabriel Lordêllo/ Divulgação

Ainda ecoam no Congresso Nacional as manifestações de indignação do senador Fabiano Contarato (Rede-ES). No final de setembro, o parlamentar reagiu às ofensas homofóbicas feitas em uma rede social pelo empresário bolsonarista Otávio Fakhoury com um discurso em defesa das minorias. “Orientação sexual não define caráter. Cor da pele não define caráter. Poder aquisitivo não define caráter”, enumerou o senador, com dedo em riste na direção do ofensor, durante uma sessão da CPI da Covid. O empresário era ouvido como suspeito de disseminar fake news, mas acabou enquadrado por discriminação e recuou – o que não evitou uma ação judicial do parlamentar por danos morais. A população LGBTQIA+ é vítima de constantes ataques preconceituosos e criminosos dos que se dizem “defensores da família”, frisou o primeiro senador assumidamente gay da história da República. Mais votado nas eleições de 2018 (com quase 1,2 milhão de votos), é reconhecido até por opositores como referência na defesa de minorias, da inclusão social e liberdade de religião, combate à homofobia, ao racismo, ao feminicídio. É dele, por exemplo, o Projeto de Lei 420/2021, que inclui no Censo do IBGE perguntas relacionadas à identidade de gênero e orientação sexual no próximo Censo Demográfico – fundamental para a definição de políticas públicas e demarcação de direitos a um contingente estimado em 18 milhões de pessoas. Delegado da Polícia Civil do Espírito Santo desde 1992, professor universitário, ativista humanitário, Contarato, 55 anos, é graduado em Direito Penal e Processual pela Universidade Gama Filho (UGF) e especialista em Impactos da Violência na Escola pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Nesta entrevista, ele afirma que o Congresso Nacional, mais do que gestos simbólicos e atos de solidariedade, precisa fazer valer os direitos assegurados à população LGBTQIA+

Extra Classe – Como o senhor orienta seus filhos a agir em caso de bullying no colégio por causa da homossexualidade dos pais?
Fabiano Contarato – Eu e meu cônjuge (Rodrigo Groberio), constantemente, temos de lidar com dois pontos delicados em relação aos nossos filhos. O primeiro é que eles são filhos de uma relação homoafetiva. E o segundo é que eu e meu esposo somos brancos – e eles são negros. São fatores os quais precisamos conduzir de forma muito cautelosa. E, para tanto, a gente também conta com o acompanhamento de um psicólogo. Lembro que, certa vez, estávamos todos reunidos na cozinha e o Gabriel veio nos perguntar sobre “mamãe”. Ele nos dizia que, na escolinha, na maioria das vezes eram as mamães que iam buscar os coleguinhas. Então lhe explicamos: “Meu filho, vai ser assim: terá coleguinha com um papai e uma mamãe, coleguinha com duas mamães ou com dois papais”. E que a vida é desse jeito. Com relação à cor da pele, procuramos, sempre que possível, falar para o Gabriel e para a Mariana que todos somos iguais, independentemente de qualquer cor. Falamos sobre isso e ensinamos a eles, o tempo todo, mas sempre de forma lúdica.

Foto: Roque de Sá/ Agência Senado

“São várias as violências cometidas contra a educação pelo governo Bolsonaro. Durante a pandemia, para piorar um quadro já empobrecido, ele cortou o orçamento da Ciência e Tecnologia”

Foto: Roque de Sá/ Agência Senado

EC – O senhor disse não sentir, como senador da República, mobilização política e engajamento do Congresso Nacional com respeito à consolidação, por meio de leis, aos direitos da população LGBTQIA+. O que poderia ser feito para mudar essa realidade?
Contarato – Após a minha fala na CPI e, naquele momento, tendo lugar de fala, eu senti que se houvesse omissão de minha parte em relação aos direitos LGBTQIA+, seria um ato de covardia. Para minha surpresa, no entanto, recebi muitas manifestações de solidariedade, em especial de meus colegas de Senado. Dois dias depois, durante a reunião dos líderes de partido, em que se faz a pauta dos projetos que irão a plenário, eu fiz um desafio aos senadores e senadoras: “Olha, eu agradeço muito o ato de solidariedade que vocês tiveram para comigo, mas todo ato de solidariedade, para não ser em vão, tem de vir acompanhado de ação. Então, por que não aproveitamos o momento para demonstrar, efetivamente, para a população brasileira que o Senado tem “sobriedade institucional” para fazer valer todos os direitos que foram assegurados à população LGBTQIA+?

EC – Quais direitos?
Contarato – Direito, entre outros, ao casamento, à adoção, ao nome social, ao recebimento de pensão – no caso de morte –, à declaração de Imposto de Renda conjunta, à doação de sangue. E, sobretudo, que a homofobia seja, de uma vez por todas, criminalizada. Todas essas conquistas, até agora, deram-se pela inadequada via das decisões judiciais. São pontos que, há muito tempo, já estão pacificados no Supremo Tribunal Federal. Eu espero, portanto, que o Senado dê uma demonstração de comprometimento, pois, infelizmente, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal sistematicamente fecham as portas para as pessoas LGBTQIA+. E não só para essas pessoas, mas igualmente para os negros, quilombolas, mulheres e pobres. Precisamos, definitivamente, que mude esse comportamento em todas as esferas.

EC – O senhor professa a fé católica. Diante dos dogmas e preconceito, por parte da Igreja, como o senhor mantém o diálogo com a sua religião levando em conta a sua orientação sexual?
Contarato – Eu sou católico, porém, sempre gosto de falar que a minha religião, na verdade, é o amor e o meu Deus, o outro. Eu acho que quando a gente exerce tais princípios, diuturnamente, consegue praticar mais valores como a caridade, a compaixão, o diálogo, a humildade e a fraternidade. Não podemos esquecer, no entanto, que, além do preconceito racial, também há o racismo religioso. O preconceito sofrido pelas religiões de matriz africana é uma triste mostra disso. Eu procuro sempre dialogar na forma como eu entendo e assimilo Deus, que, para mim, acima de todas as coisas, é um Deus de amor. Um Deus que não faz diferenciação de cor, raça, etnia, religião ou orientação sexual. É um Deus inclusivo. Eu me permiti ter a minha primeira relação sexual homoafetiva, aos 27 anos, porque pensava que não podia, que estava errado perante Deus. Sentia-me culpado. A dignidade da pessoa humana é um direito essencial – está garantida na Declaração Universal dos Direitos Humanos, do qual o Brasil, inclusive, é signatário.

EC – São mais de 600 mil mortos pelo coronavírus. A CPI da Covid já provou os crimes de Bolsonaro?
Contarato – Eu não tenho dúvida alguma quanto a isso. É necessário que as pessoas entendam que a CPI presta um grande serviço à população brasileira. A Comissão Parlamentar de Inquérito mostrou a todos a real função de um parlamentar. Os cidadãos agora compreendem melhor como funciona o Senado e que a saúde pública é um direito de todos e um dever do Estado. Também passaram a entender que quem detém tanto a competência quanto a legitimidade, e também a chamada “personalidade jurídica”, para celebrar contratos para aquisição de vacinas e insumos, é o Estado brasileiro, através do presidente da República. Dessa forma, se ele recusa tal atribuição e, pelo contrário, difunde falácias como a imunidade de rebanho e o tratamento precoce, fica provado que ele (o presidente) cometeu crime de charlatanismo. Não podemos esquecer que a dita “imunidade de rebanho” está enquadrada no Código Penal como crime hediondo, com pena prevista de 20 a 30 anos de cadeia. A CPI, além de tudo, provou que os tantos ministros da Saúde que assumiram a pasta não tinham qualquer autonomia no Ministério da Saúde.

Foto: Waldemir Barreto/ Agência Senado

“Não podemos esquecer que, além do preconceito racial, há o racismo religioso. Deus não faz diferenciação de cor, raça, etnia, religião ou orientação sexual. É um Deus inclusivo”

Foto: Waldemir Barreto/ Agência Senado

EC – Também ficou provado que existia um gabinete paralelo, o que é proibido em uma administração pública…
Contarato – Isso (o gabinete paralelo) é crime de usurpação de função pública. A CPI provou, por exemplo, que o governo brasileiro recusou inúmeras ofertas da (empresa farmacêutica) Pfizer. Isso categoriza crime de prevaricação. Nossos irmãos em Manaus, não podemos esquecer, morreram pela falta de oxigênio, por asfixia. A CPI evidenciou, ainda, que havia irregularidades enormes no contrato da (vacina) Covaxin. Já o presidente foi cientificado dessas irregularidades – e nada fez. Então, ele prevaricou também. Sem falar o que aconteceu com a Prevent Senior, na qual os médicos deixavam os pacientes à própria sorte. Trata-se de um caso de homicídio qualificado. Foram muitos os crimes praticados, aos quais ainda somam-se os crimes de responsabilidade. Dentre os quais, eu citaria o fato de o presidente constantemente marcar presença em movimentos antidemocráticos, as ameaças que fez de fechar o Congresso. E, ainda, seus ataques ao Supremo, à imprensa e à sociedade civil. Enquanto nega ter existido uma ditadura no Brasil, por outro lado, ovaciona torturador e criminaliza as ONGs. Portanto, são inúmeras as condutas erradas que foram escancaradas pela CPI.

EC – Além de investigar o Executivo, quais foram as outras conquistas trazidas pela CPI?
Contarato – Se não fosse a CPI, eu não tenho dúvida: não teríamos vacina para a população brasileira. Foi somente por causa da CPI que o governo, finalmente, correu atrás para adquirir as vacinas. Isso é muito grave. O comportamento do presidente, em razão disso, deve ser responsabilizado tanto por suas ações quanto por suas omissões. Porque a omissão dele é extremante relevante – por lei, o presidente da República tem a obrigação de proteger os direitos da população. E ele agiu com dolo, e dolo não é só quando há intenção. Também é dolo quando se assume o risco de produzi-lo. O presidente, sistematicamente, participa de aglomerações, sem sequer utilizar a máscara, o álcool em gel e, menos ainda, respeita o distanciamento social. Tais condutas antissanitárias – que não dão o exemplo à população – também são previstas no Código Penal. Eu acrescentaria, ainda, que, se não fosse a CPI, nós não teríamos entendido que poderiam ter sido celebrados contratos bilionários, com danos irreparáveis ao erário público. A CPI, não resta dúvida, jogou luz sobre vários fatos e eu espero que o procurador-geral da República, Augusto Aras, tenha sensibilidade de atuar como guardião daquilo que eu chamo de “a espinha dorsal da Constituição Federal”.

EC – O senhor é especialista em Impactos da Violência na Escola pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Quais são as problemáticas no ambiente escolar e quais soluções o senhor enxerga?
Contarato – Na verdade, infelizmente, são muitos os problemas que enfrentamos no ambiente escolar. Para começar que, no Ministério da Educação, tivemos, entre tantos ministros que por lá passaram, um (ministro Ricardo Vélez Rodríguez) que chegou ao ponto de exortar alunos a entoar o slogan de campanha do presidente da República. Depois, ele incentivou os alunos a filmarem os professores dentro da sala de aula, violando, dessa maneira, a liberdade de cátedra do professor. Em seguida, tivemos outro ministro da Educação (Abraham Weintraub), que queria retirar verba dos cursos de Sociologia e Filosofia, sob o pretexto de que tais cursos não dão retorno ao país. Ora, a minha formação é em Direito, mas, de nada teria servido se eu não tivesse passado pela filosofia e pela antropologia. E aí, para completar, o terceiro ministro da Educação (Carlos Alberto Decotelli) teve sua nomeação cancelada, logo no início do mandato, por irregularidades acadêmicas. E agora temos este quarto ministro (Milton Ribeiro), que tem falas extremamente preconceituosas. Ele chegou a afirmar que alunos com deficiência eram “impossíveis de lidar”. E, ainda, que professores trans não poderiam ensinar por “falta de conduta” – como se pudessem modificar a orientação sexual de um aluno. São várias as violências cometidas contra a educação pelo governo Bolsonaro. Durante a pandemia, para piorar um quadro já empobrecido, ele cortou o orçamento da Ciência e Tecnologia. Nós precisamos ter a percepção de que o ensino superior, no Brasil, nas universidades públicas e nos institutos federais, não só é de extrema qualidade, mas de fundamental importância.

Foto: Acervo Pessoal

“Eu e Rodrigo Groberio conduzimos com muita cautela dois pontos delicados em relação aos nossos filhos: eles são filhos de uma relação homoafetiva, nós somos brancos, e eles são negros”

Foto: Acervo Pessoal

EC – Qual é o mais grave problema enfrentado pela educação no Brasil?
Contarato – O maior problema, na realidade, está na educação básica. Nós temos mais de 83% das escolas da educação básica que, lamentavelmente, não têm laboratório de ciências. Mais de 73% das escolas, por sua vez, não têm bibliotecas nem quadra poliesportiva. Dessa forma, como que um aluno terá a possibilidade – a não ser pelas cotas – de ingressar numa universidade federal? Nos coloquemos no lugar daquele casal que ganha um salário mínimo e cujo filho sonha cursar medicina, por exemplo. Sem o sistema de cotas, ele não tem a mínima chance. E aí temos de ver qual é o olhar que um chefe de Estado teria de ter para a educação. No caso de nosso “chefe”, esse olhar, infelizmente, padece de aguda cegueira. É fundamental que o poder público tenha um lado humanizador e, além disso, a necessária sensibilidade para valorizar verdadeiramente todos os atores da educação pública. Não pode haver professores que trabalham 25 horas semanais e ganham pouco mais de um salário mínimo, quando determinados funcionários públicos, só de ticket-alimentação, recebem mais de R$ 1,4 mil. É algo imoral.

EC – O senhor também é professor de Direito. Quais valores o Direito pode professar, além do pragmatismo, que o senhor procura passar para os seus alunos?
Contarato – Fico muito feliz com essa pergunta, pois eu mesmo sempre a pergunto a mim e a Deus também: “O que o Senhor quer de mim?”. Pois escolhi duas profissões tradicionalmente eivadas por preconceitos. Primeiro, ser delegado de polícia, profissão que, muitas vezes, pressupõe um comportamento preconceituoso, machista. E, depois, o fato de lecionar no curso de Direito, onde, ainda hoje, impera aquele “positivismo napoleônico”: os alunos, em geral, têm muito interesse em altos salários, em ocupar cargos e exercer certas funções altamente remuneradas. Eu sempre tento dialogar com eles que, através do direito, eles podem ser agentes transformadores da sociedade. Do mundo. Talvez seja este o caminho para que, um dia, alcancemos um estado democrático de direito em que todos seremos iguais perante a Lei, independentemente de qualquer natureza.

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