OPINIÃO

O voto histórico de Celso de Mello

Por Moisés Mendes / Publicado em 5 de agosto de 2019
"Seu último grande gesto, no julgamento da suspeição de Moro, por questionamento dos advogados de Lula, será o da defesa da Constituição, da normalidade, das hierarquias no Judiciário e do sentimento de que ainda há virtudes na Justiça"

Foto: Carlos Moura/ SCO/ STF

“Seu último grande gesto, no julgamento da suspeição de Moro, por questionamento dos advogados de Lula, será o da defesa da Constituição, da normalidade, das hierarquias no Judiciário e do sentimento de que ainda há virtudes na Justiça”

Foto: Carlos Moura/ SCO/ STF

 

Esqueçam qualquer argumento que passe por controvérsias novas ou antigas em torno de decisões do ministro Celso de Mello no Supremo. Pense apenas que Celso de Mello está condenado a agir por coerência legalista, em nome da reafirmação de sua trajetória e defesa do Judiciário, às vésperas da sua aposentadoria.

E então pense o seguinte. O que a Segunda Turma do Supremo irá decidir mais adiante (não se sabe quando), no momento em que julgar a ação que levanta a suspeição de Sergio Moro como juiz parcial, não é a possível soltura de Lula. Nem a desqualificação da Lava Jato ou a anulação de seus atos e talvez nem mesmo a condenação pública da figura de Sergio Moro.

A Segunda Turma vai decidir sobre a preservação do que resta do Supremo e do Judiciário. Sabe-se que há dois votos já consagrados pela suspeição do juiz que investigava, acusava e julgava, que são os votos de Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.

O terceiro e decisivo voto pode ser o de Celso de Mello? Sim, será o voto do ministro, e a tese terá maioria, contra os dois votos de Cármen Lúcia e Edson Fachin. Celso de Mello votou, pouco antes do recesso, contra a libertação de Lula. Mas isso quer dizer apenas que reafirmou uma posição, sem surpresas.

Celso de Mello não deve estar preocupado com a controvérsia em torno da soltura do ex-presidente. A questão é outra e agora é mais ampla. Por isso Celso de Mello, que deixará logo o Supremo, terá a chance de fazer com que sua decisão seja histórica.

Vamos relembrar que foi ele quem traduziu o voto de Cármen Lúcia, que livrou Aécio Neves, em outubro de 2017, quando a presidente do Supremo não conseguia transmitir o que decidira em favor do tucano. O ministro não se esforçou para livrar publicamente apenas a colega do embaraço. Tentou livrar o Supremo de um vexame.

Celso de Mello queria preservar a instituição, muito mais do que a presidente sem condições de esclarecer o que pretendia dizer. É o que lhe cabe de novo agora, mais até do que quando foi presidente do STF.

Seu último grande gesto, no julgamento da suspeição de Moro, por questionamento dos advogados de Lula, será o da defesa da Constituição, da normalidade, das hierarquias no Judiciário e do sentimento de que ainda há virtudes na Justiça. É muito, mas é tarefa para Celso de Mello.

O decano terá de dizer em sua despedida que não atuou por 30 anos no Supremo para ir embora como um ministro mediano e acomodado às circunstâncias. Vai se libertar das circunstâncias, vai desafiá-las e enfrentá-las, para que não se confirme o que seria o óbvio. E o óbvio, para os acovardados, seria a submissão ao que Sergio Moro representa para o Brasil retrógrado, golpista e revanchista.

Celso de Mello é legalista, o que pode ser um simples clichê e pode, em momentos graves, significar tudo o que a maioria não é. É sensato, sereno e literário. O mais literário de todos os ministros que ainda estão em atividade.

Chegou o momento do grande voto de Celso de Mello. Contra os que constrangem e afrontam a instituição que os acolhe e contra os que subestimam os próprios colegas ao tentar impor arbitrariedades.

Celso de Mello encaminha-se para a despedida sabendo que nunca o Judiciário foi tão vilipendiado. O ministro tem a chance de se despedir não só como exemplo de guardião da Constituição e da imagem da Justiça, mas do conceito de justiça e de seus valores, por mais vazios e imperfeitos que sejam hoje.

O ministro sabe que não é mediano e que não será rebaixado à condição de medíocre ao proferir seu último voto de repercussão. O último gesto de Celso de Mello será pela condenação dos que se servem do Judiciário para comprometê-lo. Não será contra Sergio Moro, nem contra a Lava Jato e muito menos a favor de Lula.

Não esqueceremos de José Celso de Mello Filho como o juiz que, mesmo tardiamente, contrariou os que torciam para que a farsa da caçada a corruptos fosse preservada e prolongada.

Seu voto terá de ser transparente, cristalino. Não poderá ser um voto que afirme, mas ao mesmo tempo faça ressalvas para dizer que, apesar disso e daquilo, outros caminhos podem ser buscados. Não há caminho alternativo, não há meio termo, não há chances para ‘mas’.

Não há como, nesse julgamento, buscar a proteção de firulas jurídicas, para afirmar algo e ao mesmo tempo afrouxar mais adiante a própria afirmação. O ministro não tem agora a chance de imitar a confusa Cármen Lúcia que preservou Aécio.

Celso de Mello não irá salvar Sergio Moro. Ao enquadrar os líderes da Lava-Jato, aceitando a tese da suspeição, tentará dizer que fez o que foi possível por uma Justiça condenada pelo poder político e econômico à sina de encarcerar pobres e negros, de preservar as elites, de ser indiferente aos dramas cotidianos do cidadão médio e de perseguir as esquerdas.

O que ele vai dizer é que ainda há ministros do Supremo dispostos a contrariar ações justiceiras. O Judiciário, que não é a expressão plena da justiça e nunca virá a ser, talvez continue como sempre foi, mas com uma anomalia a menos. Celso de Mello fará a sua parte no esforço pela reparação do que ainda pode ser reparado.

* Moisés Mendes é jornalista. Escreve quinzenalmente para o Extra Classe

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