“Muitos dos que aplaudiram a decisão por certo ficariam indignados se, com base no mesmo entendimento, o Tribunal Superior do Trabalho permitisse a imediata execução das condenações trabalhistas confirmadas em 2ª instância. O mesmo poderia valer para as indenizações cíveis. Por que razão, afinal, haveria mais garantias aos condenados no cível do que no crime?“.
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que as penas de prisão podem começar a ser cumpridas a partir de condenação em 2ª instância. A decisão despertou, de imediato, a simpatia dos que estão convencidos de que se prende pouco no Brasil e que nossas leis penais são frouxas. Houve mesmo quem tivesse aventado que a decisão porá fim à impunidade e que o STF, finalmente, se ergue contra o “prende e solta”, fenômeno que, segundo o senso comum, inferniza o Brasil.
No parágrafo acima há um universo de simplificações e equívocos. Primeiro, a decisão do STF não afetará as taxas de impunidade. Ela permitirá que condenados pelos Tribunais de Justiça sejam presos enquanto aguardam apelação em 3º instância. A medida atingirá sobretudo os réus com maior poder aquisitivo, aqueles que costumam chegar aos Tribunais Superiores.
Como o número deles é proporcionalmente pequeno e a decisão não é erga omnes, a medida terá impacto menor do que se imagina. Entendo como razoável que condenados pela Justiça criminal em 2ª instância sejam presos – até porque em 3ª instância não se discute mais elementos da prova. Há, entretanto, um probleminha: a Constituição Federal diz que “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, inciso LVII). A decisão do STF, por maioria de seus membros, ignora o trânsito em julgado, admitindo a antecipação da execução penal.
Assim, parece evidente que o caminho democrático para fazer valer o entendimento do STF exigiria mudança da Constituição o que, no caso, por envolver “cláusula pétrea”, só poderia ser feito por Assembleia Constituinte. Repito que concordo com a opinião da maioria do STF. Não concordo é que o STF desconsidere, por pragmatismo, os termos da própria Constituição.
Muitos dos que aplaudiram a decisão por certo ficariam indignados se, com base no mesmo entendimento, o Tribunal Superior do Trabalho permitisse a imediata execução das condenações trabalhistas confirmadas em 2ª instância. O mesmo poderia valer para as indenizações cíveis. Por que razão, afinal, haveria mais garantias aos condenados no cível do que no crime?
Enquanto isso, temos em nossos presídios cerca de 250 mil pessoas trancafiadas preventivamente. Ou seja, 40% da massa carcerária brasileira é composta por pessoas que não foram condenadas nem em 1ª instância. Parte expressiva deste contingente será absolvida. Muitos, efetivamente, porque não praticaram os crimes pelos quais foram acusados; outros, porque a investigação policial não existiu ou foi tão precária que não há prova que autorize a condenação.
Entramos, aqui, no centro do problema da impunidade no Brasil: a qualidade da prova. Ao contrário do que a ignorância disseminada reproduz, a impunidade não decorre de lei frágil, mas de investigação inepta. Sobre o “prende e solta” seria necessário repetir à exaustão que a prisão é, salvo as exceções previstas no Código de Processo Penal, o resultado de condenação judicial. Não se prende alguém para que, depois, o encarcerado prove sua inocência.
A civilização democrática recusou este caminho e a literatura tratou de denunciá-lo pelo talento de escritores como Kafka. Os que reclamam do “prende e solta” sugerem, entretanto, sem que se deem conta, um caminho similar ao que Kafka descreve em O Processo onde se desconsidera que a regra do processo penal é a liberdade. Vale dizer: a prisão é imposta aos considerados culpados por sentença judicial, não aos detidos pela polícia.
Neste particular, a imprensa faria um bem extraordinário se explicasse que “prisão em flagrante” não significa que o suspeito tenha sido preso no momento em que praticava o delito. Situações do tipo, aliás, são raríssimas. “Flagrante” no Brasil significa a prisão feita até 24 horas após o fato criminal e é, quase sempre, o chamado “flagrante presumido”, onde a autoridade policial deduz que há indícios de que o detido possa ter cometido o crime.
Daí até se saber se o suspeito foi o autor do delito há um caminho estabelecido pela Constituição: o processo penal onde haverá uma acusação formal, a ampla defesa e o contraditório, garantias fundamentais que nos protegem do arbítrio.
Não devemos ignorar ou menosprezar as garantias constitucionais, sob pena da ruína do Estado Democrático de Direito. François Andriex, no conto intitulado O Moleiro de Sans-Souci, nos oferece a razão básica: Frederico II, Rei da Prússia, pretendia comprar a propriedade de um moleiro que, não obstante, recusava todas as ofertas. Não venderia a propriedade onde estava seu moinho por dinheiro algum.
Então o rei diz: “sabes que, como rei, posso tomar suas terras sem qualquer pagamento? Ao que o moleiro respondeu: “o senhor, tomar-me o moinho? Só se não houvesse juízes em Berlim”.
* Marcos Rolim é Doutor em Sociologia e jornalista. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe