SAÚDE

O SUS é subfinanciado, precisa evoluir, mas é um sistema que dá certo

ENTREVISTA | LUIZ ANTÔNIO SANTINI
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 16 de maio de 2024
O SUS é subfinanciado, precisa evoluir, mas é um sistema que dá certo

Foto: Leonardo Savaris

Santini: “A gestão tripartite da saúde foi o que sustentou o enfrentamento da pandemia e mostrou para a maioria da população a importância do SUS”

Foto: Leonardo Savaris

“A pandemia fez com que a sociedade brasileira se desse conta da importância e passasse a defender o sistema de saúde pública, mas à medida que nos distanciamos, voltam as críticas ao velho sistema”, avalia o médico Luiz Antonio Santini. Em coautoria com o historiador Clóvis Bulcão, Santini passa a limpo a história desta que é a principal conquista da sociedade brasileira, no livro SUS: Uma biografia (Record, 350 p., 2024). Santini, que participou da construção do SUS e foi gestor do Inamps, afirma nesta entrevista que a gestão compartilhada entre União, estados e municípios blindou a saúde pública contra as ações desastradas do governo anterior durante a pandemia. “A gestão tripartite foi o que sustentou a viabilidade do enfrentamento da covid e mostrou para a população a importância do SUS. Muitos desacreditavam do sistema porque não conheciam a sua eficácia e eram usuários sem saber.” O Brasil é o único país do mundo com um sistema de saúde ao qual todas as pessoas têm acesso, dos serviços básicos à alta complexidade, defende o médico e pesquisador. Atualmente, ninguém tem coragem de se declarar abertamente contra o SUS, mas o sistema público de saúde é uma coisa que dá certo, apesar de subfinanciado, resume.

Extra Classe – Há uma declaração do ex-presidente do Banco Central e presidente do Conselho do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, Armínio Fraga, ao apresentar seu livro: “O Brasil tem tido muitas dificuldades em reforçar o que dá certo em detrimento do que dá errado”. Em síntese, o que tem dado certo no SUS?
Luiz Antonio Santini – É importante essa declaração do Armínio, um economista liberal renomado. Normalmente, esses personagens não têm posições muito favoráveis aos sistemas públicos de saúde. Ele tem estudado o assunto e mostra que investimento em saúde não é apenas gasto, mas investimento que melhora as condições de vida e impulsiona a economia. O próprio SUS é um ativo econômico, compra serviços, compra produtos, compra tecnologia. Então, ele deu certo também por isso. Mas destaca-se a universalidade. O Brasil é o único país do mundo com mais de 100 milhões de habitantes que tem um sistema de saúde ao qual todas as pessoas têm acesso, dos serviços básicos até a alta complexidade. O sucesso na atenção básica se vê na erradicação de doenças como a varíola, o sarampo e a poliomielite, um motivo de orgulho.

EC – O que está dando errado e precisa ser corrigido?
Santini – O SUS é subfinanciado. Quem trabalha na área da saúde sabe disso. Muitas vezes, as dificuldades que as pessoas enfrentam para ter melhor acesso ao sistema, melhor acesso a exames de diagnóstico e tratamento em tempo adequado são exatamente pela falta de financiamento. Um sistema de saúde está em permanente evolução e em permanente modificação das suas necessidades. Por exemplo, a população brasileira está envelhecendo e isso significa que nós vamos ter mais velhos do que nascidos na população brasileira nos próximos anos. Portanto, vamos ter mais doenças crônicas, mais necessidades de ações de saúde pública. Então, também precisamos avançar mais na questão da prevenção. Tivemos uma vitória na luta contra o tabagismo, mas, hoje, está aumentando o número de pessoas obesas, especialmente crianças. Tudo isso, obviamente, tem impacto na saúde das pessoas e no custo do sistema.

O SUS é subfinanciado, precisa evoluir, mas é um sistema que dá certo

Foto: Lincoln Xavier/CEE/Fiocruz

“Os inimigos da saúde pública são os que têm interesses econômicos dentro do sistema, que não estão alinhados com os objetivos do SUS”

Foto: Lincoln Xavier/CEE/Fiocruz

EC – O senhor falou da demora em exames e atendimento de especialistas. Seria esse o gargalo do sistema ou há outras questões não tão perceptíveis?
Santini – Em muitas doenças como o câncer, o acesso ao tratamento adequado é crucial e depende do tempo entre o diagnóstico e a terapia. É muito importante, sim, mas, além da questão do financiamento, há fatores que também impactam. Por exemplo, o modelo nosso da municipalização, fundamental para que o SUS alcançasse o que alcançou, é um modelo relativamente insuficiente do ponto de vista da organização da oferta de serviços. O Brasil tem mais de 5,5 mil municípios e a maioria desses tem menos de 10 mil habitantes. Então, a oferta de serviço por parte dos municípios não corresponde a todas as necessidades.

EC – Como resolver?
Santini – Com uma organização regional dos serviços. Como o município, muitas vezes, não dá conta, seria preciso que o ente federativo, o estado ou os próprios municípios, através de consórcios, se organizassem para aumentar a oferta de serviços especializados para diagnóstico. Esse é um problema que o sistema ainda tem, de modelo de gestão.

EC – E a questão da corrupção?
Santini – A corrupção é um problema recorrente que não está limitado ao SUS, mas reflete questões sociais mais amplas. Não se pode tratar a questão da corrupção com um discurso moralista. O problema deve ser abordado com mecanismos de controle e punição adequados. A gestão de grandes volumes de recursos sempre traz riscos de corrupção e é uma luta permanente. É essencial uma abordagem sistemática e contínua para evitar desvios. O livro mostra que, antes da existência do SUS, no tempo do Inamps, a corrupção era desenfreada, a ponto de, mesmo durante a ditadura, ter sido necessária uma intervenção para poder sanear a questão.

EC – Poucos exemplos como a da pandemia demonstram o quanto foi importante a gestão tripartite do SUS (União, estados e municípios), o que ajudou a blindar o sistema em relação ao negacionismo de Bolsonaro. Como se deu essa concepção?
Santini – Essa concepção é uma coisa muito interessante. Não tem similar também. O SUS é um sistema único e singular, resultado de um contexto histórico complexo. Um dos componentes foi justamente a luta pela democracia. Quando houve a crise do Inamps nos anos 1970, com denúncias de fraudes para tudo quanto é lado, houve uma perda enorme de recursos, que fez o então presidente da República, general João Figueiredo, intervir. O professor Aloysio de Salles da Fonseca, um médico renomado, foi chamado para liderar a reforma. Ele, junto com o Conselho Nacional de Saúde Previdenciária (Conasp), propôs convênios entre o governo federal e os municípios para reduzir custos e fortalecer a Previdência. A adesão dos municípios impulsionou a municipalização da saúde, evidenciando a importância dos governos municipais na gestão pública.

EC – O protagonismo dos municípios começa aí?
Santini – Tanto é que a Coordenação Nacional dos Secretários Municipais de Saúde foi criada antes da Coordenação dos Estados. Os municípios engajaram-se mais na luta pela saúde pública, antes dos estados. Isso, por um lado, leva àquele problema que eu falei antes: o da dificuldade da regionalização. A maioria dos estados não assumiu um papel protagonista na condução do SUS. Sem dúvida nenhuma, o pilar mais importante da gestão tripartite tem sido a municipalização. A participação dos estados só mais recentemente é que vem se intensificando e se ajustando.

EC – Por que a gestão tripartite fez a diferença na pandemia?
Santini – A gestão tripartite foi o que sustentou a viabilidade do enfrentamento da pandemia da covid e foi o que mostrou para a maioria da população a importância do Sistema Único de Saúde. Muitas pessoas desacreditavam do sistema porque não conheciam a eficácia dele e eram usuários sem saber. Por exemplo, usuárias através do programa de vacinação, usuários através da vigilância sanitária, usuários através da vigilância epidemiológica que produz os dados de saúde pública para que haja intervenção das ações. Então, as pessoas não sabiam nada disso. A pandemia criou essa oportunidade, digamos assim, de fazer com que a sociedade brasileira se desse conta da importância desse sistema e passasse a defender o sistema. Mas, na verdade, à medida que a gente vai se afastando desse episódio, voltam a acontecer críticas ao velho modelo. Por isso é que a resposta do SUS tem que ser muito rápida, para corrigir certas deficiências.

O SUS é subfinanciado, precisa evoluir, mas é um sistema que dá certo

Foto: Leonardo Savaris

“Os negacionistas derrubaram a cobertura vacinal. Vacinas que tinham 95% de cobertura estão com 40%. Na comunicação, eles estão ganhando”

Foto: Leonardo Savaris

EC – O principal inimigo do conceito de Saúde enquanto dever do Estado na Constituinte foi o deputado Roberto Jefferson, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Mais tarde, o presidente Fernando Collor de Mello tentou vetar importantes partes da lei que regulamentava o SUS em 1990. Hoje, quem são os inimigos do SUS?
Santini – Olha, hoje, neste momento, ninguém mais tem coragem de se declarar contra o Sistema Único de Saúde. O Roberto Jefferson era o principal agente da corrupção e, portanto, absolutamente contra porque o SUS ia tirar poder. Muitos outros eram contra, mas ele era o porta-voz. Eu diria que os inimigos do SUS hoje são, basicamente, os que têm interesses econômicos dentro do sistema, que não estão alinhados com os objetivos do SUS. Então, por exemplo, as empresas médicas, elas não são inimigas do SUS, desde que não haja competição entre o SUS e os seus interesses. Na verdade, o que há hoje é um desbalanceamento de interesses. O setor privado, em princípio, não é inimigo do SUS; no entanto, disputa inserções em determinadas atividades que são próprias do sistema. Os empresários não dificultam a existência do SUS; eles apenas oferecem uma alternativa. Mas aí tem uma contradição muito grande. Trabalhadores, inclusive trabalhadores da saúde, têm planos privados. Isso traz uma ambiguidade na hora de lutar pelo sistema.

EC – O livro relata que, além do empenho de Ulysses Guimarães e de partidos de esquerda, a participação do Centrão na época da Constituinte foi fundamental para que fosse incluído na Constituição o conceito de Saúde como direito de todos e dever do Estado, contra a vontade do Centrão da época. Na sua opinião, além dos óbvios aspectos fisiológicos, o que diferencia o Centrão de hoje do bloco que fez lobby contra o SUS na Constituinte?
Santini – Na época da transição para o SUS, o “Centrão” não era como o de hoje, mas representava uma visão liberal entre a esquerda e a direita. Figuras como Carlos Santana e Roberto Santos foram cruciais para equilibrar as propostas de estatização completa da saúde, defendida por alguns setores da esquerda, e a universalização do sistema. Enquanto o “Centrão” daquela época buscava uma abordagem mais equilibrada, figuras como Roberto Jefferson representavam a corrupção e eram contra o sistema público de saúde. Assim, o “Centrão” da saúde era composto por indivíduos com pensamento liberal, que atuaram como fatores de equilíbrio na transformação do sistema de saúde brasileiro.

EC – O livro fala de um partido sanitarista que acabou fazendo uma grande mobilização da sociedade. Como se deu essa articulação exitosa?
Santini – Esse é um ponto muito importante. Não foi uma coisa casual, foi uma estratégia. Na época da criação do SUS, o chamado Partido Sanitarista surgiu como uma articulação entre diversos pensamentos, incluindo da esquerda e liberais da saúde, que defendiam a saúde como bem público. Algumas organizações ajudaram a construir um núcleo de pensamento comum, como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva. A 8ª Conferência Nacional de Saúde foi uma iniciativa que envolveu a população na discussão sobre o sistema de saúde do Brasil. Mobilizaram-se os Conselhos Municipais de Saúde e houve articulação com artistas, jornalistas, formadores de opinião. O processo incluiu a Comissão Nacional da Reforma Sanitária e mobilização nos estados.

Capa: Reprodução

Capa: Reprodução

EC – Teve até personagem da novela Roque Santeiro, o padre Albano, vivido por Cláudio Cavalcanti, falando sobre a importância de participar da 8ª Conferência Nacional de Saúde e exercer pressão sobre os constituintes.
Santini – O Sérgio Arouca, que era presidente da Fiocruz, tinha uma grande capacidade política e uma visão extraordinária do sistema de saúde. Cristina Tavares, que era assessora de comunicação dele, tinha uma grande visão e uma capacidade de se articular na sociedade. Foi ela, por exemplo, que procurou o Agnaldo Silva e o convenceu a colocar na novela Roque Santeiro uma convocação para 8ª Conferência. Foi algo totalmente inédito. Viu-se na novela da TV Globo o padre convocar as pessoas para a Conferência Nacional de Saúde. Todas essas frentes de articulação de base acabaram atraindo 5 mil participantes. A expectativa eram 2 mil e isso exigiu uma organização meticulosa para garantir a participação efetiva de todos. As votações foram realizadas com 5 mil pessoas no estádio Nilson Nelson, em Brasília. Então, foi maravilhoso. Uma das coisas mais bonitas que eu já vi na minha vida.

EC – Para finalizar, em tempos de redes sociais poderosas, com predomínio técnico de setores da direita e de interesses da indústria da saúde, o senhor acredita ser possível novamente mobilizar forças para avançar mais na universalização da saúde brasileira?
Santini – Olha, eu não sei se acredito; eu espero, desejo. Agora, eu acho difícil. O Ministério da Saúde hoje não tem uma estratégia ainda definida para isso. E eu não estou dizendo que seja fácil. Estou dizendo que não possui. Tanto é que a ministra da Saúde, Nísia Trindade Lima, uma pessoa competente como ela é, que tem uma visão absolutamente clara de tudo isso que nós falamos aqui, até mais do que isso, porque é uma socióloga que pensa sobre a saúde há muitos anos, que trabalha com essa questão há muitos anos, na comunicação da sua pasta não está correspondendo a esse desafio de enfrentamento que precisa ter. Um exemplo claro é a questão da vacina. Os negacionistas foram tão fortes que derrubaram a cobertura vacinal no país. Hoje, vacinas que nós tínhamos 95% de cobertura estão com 40%. Então, eles estão ganhando. Na comunicação, essa direita, esses grupos estão ganhando do Ministério. A gente precisa ter uma estratégia para isso. Não é fácil, mas é uma tarefa importante de comunicação que tem que ser retomada, sem dúvida nenhuma.

Comentários