A fábrica de mentiras sobre a tragédia no RS é estratégia da extrema direita
Foto: Ricardo Stuckert/PR
Imagens de outras catástrofes ao redor do mundo, informações falsas ou imprecisas, declarações que nunca ocorreram ou publicadas fora de contexto, fotos e vídeos falsificados, disputas de versões. A criação industrial de mentiras disseminadas em grupos de WhatsApp, Telegram e redes sociais sobre as enchentes que vitimam a população do Rio Grande do Sul segue uma lógica de guerra híbrida. O objetivo é confundir e influenciar a sociedade desacreditando peritos, cientistas, ecologistas, jornalistas, instituições democráticas e até mesmo militares que atuam nos regates. Ao se retroalimentar esta rede cria um ambiente propício a teorias conspiratórias, ideários fascistas e negacionismo climático.
Especialistas denunciam o que chamam de “enxame de desinformações” como movimento coordenado que utiliza métodos como “tentativa e erro” para criar clima de caos.
Pablo Ortellado, professor de gestão de políticas públicas da Universidade de São Paulo (USP) identificou no caso gaúcho três conceitos chave que foram e, de certa forma, continuam sendo trabalhados por segmentos interessados no processo de desinformação.
O primeiro, conforme estudo elaborado pelo professor, objetiva passar a ideia falsa que o Estado não ajuda, que não chega a tempo e não se esforça; o segundo, que o Estado atrapalha ao criar obstáculos para quem efetivamente se mobiliza (cidadãos e empresas) e, por fim, com mensagens alardeando possível desabastecimento e estímulo a uma corrida para o estoque de mantimentos, pânico econômico.
Lucio Uberdan, diretor da Bateia – Mineração de Dados e consultor de marketing político e digital, explica que os disseminadores de mentiras nas redes estão “todo momento jogando com a realidade e fazendo testes”.
Segundo ele, em geral os serviços de mensagens instantâneas (WhatsApp e Telegram) são onde inicialmente mensagens falsas ou distorcidas são testadas.
Vale tudo
Uma vez emplacadas, as mentiras se disseminam em velocidade nas outras redes, Instagram, Tik Tok, Facebook, X, em sintonia ou articulação com influencers como políticos de oposição. Pablo Marçal e Nego Di, são alguns exemplos notórios, explica o especialista.
Não é à toa que Nego Di recentemente recebeu uma ordem judicial para a retirada de informações falsas sobre as enchentes gaúchas em suas redes e Pablo Marçal viu seu nome citado abertamente por membros do governo em ações e pedidos de inquéritos sobre postagens que viralizaram sobre caminhões estariam sendo multados ao trazer doações para as vítimas gaúchas.
Ao “jogar com a realidade”, conforme Uberdan, se verifica casos em que imagens e até declarações reais são tiradas de um contexto para falsear uma história no seu conjunto.
São situações como a fala do presidente Lula de que torcia para Grêmio e Internacional em sua primeira visita ao Rio Grande do Sul no meio à crise das enchentes e imagens de poucos ou nenhum militar resgatando vítimas.
No primeiro caso, foi pinçada e editada uma declaração do presidente dada no conjunto de um discurso que apontava para a necessidade de união para o enfrentamento do problema, para passar a ideia de futilidade.
No outro, imagens captadas no início da calamidade, com – de fato – muitos voluntários das próprias comunidades afetadas agindo em um primeiro momento enquanto as forças se mobilizavam e rumavam para os locais.
Daí para a edição em Inteligência Artificial de um helicóptero da rede varejista Havan, do bolsonarista Luciano Hang, resgatando pessoas em meio a uma enxurrada foi um pulo, registra Uberdan.
Com a descrição “Grandes empresas dando exemplo de esforços e logísticas”, a ideia é muito clara para ele. “Dizer que era a iniciativa privada é quem estava tomando a frente, enquanto as forças públicas batiam cabeça. Na verdade, helicópteros da Havan realizaram o transporte de doações, não resgate”, lembra Uberdan. A própria rede varejista saiu a público para desmentir o post que usou sua marca.
Mobilização e instigação de base radicalizada
Para Uberdan, a série de tentativas e erros para emplacar uma notícia falsa se dá especialmente com o intuito de furar as bolhas que se formam nas redes sociais.
Outro objetivo da calculada série de boatos e mentiras é manter coesa uma base de apoio já radicalizada.
Assim, uma mentira como a de um vídeo que viralizou ao supostamente mostrar a população do Rio Grande do Sul hostilizando jornalistas da Globo em meio à tragédia climática, pode contribuir para fomentar agressões a profissionais da imprensa que estão atuando na cobertura local.
Foi o que aconteceu, não com a intensidade do material que originalmente foi captado no ano de 2018 no município mineiro de Montes Claros, segundo a agência de checagem Aos Fatos.
O apresentador do Jornal Nacional, William Bonner, foi atacado verbalmente enquanto gravava a edição do principal tele Jornal do país diretamente de Porto Alegre na terça-feira,7.
Dois dias depois, 9, foi a vez de jornalistas da CNN ouvirem durante uma entrevista uma pessoa com colete de socorrista gritar “Globo Lixo” e “Fora Lula”.
No sábado, 11, o repórter da RBS TV, Eduardo Paganella, teve seu trabalho interrompido por um pequeno grupo de pessoas fazendo gestos obscenos e gritando “Globo Lixo” durante a gravação de uma matéria em um abrigo na cidade de Canoas.
Situação semelhante ocorreu com o jornalista Leandro Demori, do ICL notícias, cobrindo as enchentes no interior do estado.
Curiosamente, antes vistos como possíveis “salvadores da pátria” pelo mesmo segmento que ataca jornalistas, as Forças Armadas passaram a alvos.
De acordo com a Aos Fatos, desde a posse do presidente Lula já havia ataques, em especial ao Exército, com apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro publicando críticas, ofensas e acusações de associação dos militares com a esquerda e com o comunismo.
Agora, durante as enchentes, a maior parte das mensagens buscam criar a percepção de que o Exército estaria fazendo poucos esforços para auxiliar as vítimas o ou que os resgates estariam acontecendo com atraso e lentidão. Tudo mentira.
Descontruindo peritos com base em mentiras
Da mesma forma que diz ter certeza de que há um movimento político orquestrado que, somado a interesses de monetização da tragédia, Uberdan afirma que a lógica da disseminação de mentiras nas redes segue um modelo internacional da extrema-direita. E, no Brasil a extrema-direita está representada pelo bolsonarismo e seus egressos.
Citando trabalhos da professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Letícia Cesarino, Uberdan relata o esforço de desconstrução que a acadêmica chama de peritos.
Entre eles, jornalistas, cientistas, professores ou qualquer outro tipo de pessoa que possa falar com autoridade sobre um assunto – seja checando a veracidade de informações ou apresentando dados que refutem visões de mundo dos extremistas – são alvos de boataria e discursos de ódio.
“Se tu não confia no professor, não confia na ciência, não confia no jornalista, o que surge ali no grupo (WhatsApp, Telegram, redes sociais), se tiver, digamos, uma certa lógica, a tendência é de acreditar. Por que tu acredita em algo? Porque três amigos teus disseram, porque dois tios confirmaram, porque a tia falou que viu, porque o outro é irmão do não sei quem. Então, é mais ou menos essa a lógica, para toda a informação ser válida, inclusive a não verdadeira, ela precisa que todo mundo que possa verificar tenha perdido um pouco de autoridade”, conclui Uberdan.