POLÍTICA

Sem regulação das redes, em terra sem lei dono de big tech é rei

Além de interesses comerciais em jogo, questões políticas que envolvem a extrema direita e o futuro de Arthur Lira emperram os debates sobre regulação das redes sociais
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 17 de abril de 2024

Sem regulação das redes, em terra sem lei dono de big tech é rei

Arte sobre fotos Space X (Space X), Lula Marques e Marcelo Camargo (Agência Brasil)

Arte sobre fotos Space X (Space X), Lula Marques e Marcelo Camargo (Agência Brasil)

Embora o presidente do Supremo tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, considere “página virada”, o tensionamento entre o também ministro do STF Alexandre de Moraes e o magnata dos carros elétricos e dono da rede social X, Elon Musk, o episódio expôs uma fratura não cicatrizada na política brasileira e que ameaça a sobrevivência da democracia: a urgência do debate sobre a regulação das redes, ante a inoperância do principal palco político neste sentido, o Congresso Nacional.

O Brasil não só deixou de avançar nos debates sobre a regulação das redes sociais na Câmara dos Deputados, como retrocedeu. A decisão do presidente da casa, Arthur Lira (PP/AL) em engavetar o PL das Fake News (Projeto de Lei 2630/2020) e criar um grupo de trabalho diante de polêmicas e narrativas construídas contra e a favor do texto relatado pelo deputado Orlando Silva (PCdoB/SP), na opinião de analistas, foi uma manobra para enterrar pelo menos por hora o que há um ano já se materializou na Comunidade Europeia.

Há uma série de interesses comerciais e questões políticas envolvidas que tornam o tema complexo. Principalmente com as disputas municipais deste ano.

A advogada Rhaiana Valois, integrante do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec) destaca que uma regulamentação traria uma série de obrigações de transparência para as plataformas e isso, além de gerar custos, impactaria nos  lucros vindos de publicidade vendida.

Para o cientista social, professor e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo, Fernando Luiz Abrucio, a Câmara em nenhum momento quis votar a regulamentação das redes sociais ou das Big Techs.

Enrolação de Lira

Além de, nas palavras de Abrucio, os deputados não aguentarem a pressão das Big Techs na defesa dos seus intereses, “uma parte importante dos parlamentares faz sua carreira política em torno de fake news e discurso de ódio e, se houver algum tipo de regulamentação, vão perder o espaço para fazer fake news ou discurso de ódio”.

Estas questões e a indefinição da carreira política de Lira que está indo para o fim do seu mandato na presidência da Câmara, na análise do professor da FGV, é o que segura no momento uma regulação como a que foi aprovada no ano passado na Comunidade Europeia.

O freio na atuação das big techs na Europa parte do entendimento de que as redes sociais não são mais apenas um negócio de entretenimento fomentado por empresas privadas, mas um serviço público essencial para a comunicação da sociedade.

No Brasil, “essa enrolação não vem de agora, vem já de um bom tempo, e ter escolhido o deputado Orlando Silva foi uma parte da enrolação, porque se sabia que dele não sairia a maioria”, afirma Abrucio.

Lira, para Abrucio, vai priorizar a reforma tributária e, “preocupado com seu futuro político”, não quer ainda definir sua posição entre “bolsonaristas e governistas. Por isto, adia a regulamentação das redes sociais.

O que pega para as big tech

A advogada Rhaiana diz que a maior parte do lucro das empresas que mantêm redes sociais é a publicidade digital. Com a regulação, “as obrigações de transparência do PL 2630 poderiam afetar, de alguma forma, isso”, registra.

Segundo ela, as big techs seriam obrigadas a tomar medidas mais efetivas para combater discursos de ódio, de intolerância, na internet e os lucros também seriam afetados com todo o mecanismo necessário para fazer a modulação.

“Você pode até ver que, quando o Elon Musk assume o Twitter, ele toma uma série de medidas que diminuem a segurança e a transparência da plataforma”, exemplifica.

Ainda no campo da publicidade, Rhaiana, lembra que o PL trazia a possibilidade de responsabilização adicional  das plataformas pelo conteúdo publicado por terceiros, como forma de coibir uma série de golpes que são praticados usando as redes sociais.

Mesmo com encaminhamentos para a retirada da proposição, a questão da remuneração de conteúdo jornalístico também era outro ponto sensível para as plataformas que fizeram uma campanha intensa contra a votação, destaca a advogada.

Liberdade de expressão como desculpa

Em sua campanha ostensiva contra a regulamentação, as big Techs também alegavam o tolhimento da liberdade de expressão.

Para Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), o argumento de que o projeto de lei ameaçava a liberdade de expressão é até válido, “mas, por trás disso, o que elas (as Big Techs) estão defendendo é seu modelo econômico”.

Não só as plataformas. Os políticos citados por Abrucio e que comemoraram recentemente os ataques do multibilionário proprietário da X, antigo Twitter, ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes também.

“Há uma campanha aberta para transformar a Constituição dos Estados Unidos em lei no Brasil. Na verdade, uma caricatura desta Constituição, importada sem a sua crítica”, ironiza o jurista José Rodrigo Rodriguez, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Para Rodriguez, em artigo publicado no Jota, importante portal de assuntos jurídicos do país, “em vez de se discutir os problemas do combate à desinformação, tudo se transforma na grande luta entre Xandão e Musk”.

Victor Campos Clement Leahy, Procurador de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e integrante do grupo de Pesquisa sobre Liberdade de Expressão no Brasil (Pleb) é categórico: “A liberdade de expressão no Brasil é diferente da dos Estados Unidos.

Visões diferentes

A campanha que o professor Rodriguez se refere é nitidamente vista na forma como diversos juristas e representantes da direita falam sobre liberdade de expressão. “Mesmo para criticar a atuação em regime de urgência do STF para conter a articulação de um golpe de Estado, fala-se do tema como se o sentido da liberdade de expressão fosse absolutamente claro e ela funcionasse como uma espécie de direito natural, capaz de diferenciar povos civilizados de povos não civilizados”, declara.

O procurador Leahy é mestre em direito pela tradicional Universidade de Harvard, exatamente sobre o Direito de Liberdade de Expressão na Constituição americana. Para ele, “a forma como o Brasil lida com discurso de ódio, por exemplo, é bem diferente, até mesmo por força do nosso texto constitucional”.

Mesmo assim, pondera, o próprio STF se inspira na mesma liberdade de expressão dos Estados Unidos quando julga conveniente.

“Os casos de incitação à violência, por exemplo, fazem expressa referência aos conceitos de Clear and Present Danger (perigo claro e presente) e Imminent Lawless Action (ação ilegal iminente) que são conceitos norte-americanos, explica Leahy ao lembrar que a própria ideia de posição preferencial da liberdade de expressão vem da doutrina da posição preferencial americana(Preferred Position Doctrine).

Nos EUA a liberdade também tem limites

Tanto Rodriguez quanto Leahy são enfáticos ao dizer que a forma como é invocado o direito à liberdade de expressão, trazendo como exemplo os vizinhos do Norte, ignora todas as modulações feitas pela Suprema Corte americana.

Ao registrar que nos Estados Unidos o princípio da conhecida primeira emenda é só oponível contra o Estado – o que acabou deixando de fora os agentes privados – Leahy ressalta que uma série de decisões jurisprudenciais acabaram criando em paralelo as categorias não protegidas, que viram quase que uma regra.

“Então, exemplos como incitação à ilegalidade, obscenidade, fraudes. Algumas categorias, a partir do momento em que foram configuradas não vão ser protegidas, ponto. Não importa o que está do outro lado. Isso envolve uma tomada de posição, ainda que você tenha que fazer o ajuste ao longo do tempo, que traz muita segurança jurídica, traz previsibilidade para as pessoas e evita a autocensura”, explica o procurador.

Para Leahy, se alguém diz que nos Estados Unidos há um vale tudo, “na verdade, está sendo equivocado na leitura da liberdade de expressão americana”. Da mesma forma, continua, “quem defende que a gente (brasileiros) tem um direito de opinião tão largo quanto o direito de opinião americano, acaba tendo também uma leitura equivocada, porque eles realmente dão mais espaço, mais latitude para as opiniões, até mesmo misóginas”, conclui.

O professor Rodriguez, em especial no debate em torno de Elon Musk X Alexandre de Moraes, é mais direto: “Neste caso, não se trata de ignorância ou de esquecimento, mas sim de uma estratégia conhecida, amplamente praticada pela direita brasileira, de construir uma caricatura para fins político-ideológicos”, assevera.

 

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