Valores democráticos devem prevalecer sobre truques e ineditismos
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Para o jornalista Cesar Calejon, as eleições deste ano serão decisivas no sentido de afastar as aventuras golpistas e o fantasma do autoritarismo. “Se continuarmos subvertendo os valores democráticos cada vez que o resultado das urnas não interessa a uma classe transnacional, aos setores industriais e da mídia hegemônica, se continuarmos estimulando o dogma religioso como parte da vida social e política, o Brasil caminha para se tornar uma teocracia miliciana de caráter dogmático-religioso”, alerta Calejon. Graduado em Comunicação Social pela Universidade São Marcos (Unimarco), com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (Each) da Universidade de São Paulo (USP), Calejon é autor dos livros A Ascensão do bolsonarismo no Brasil do século XXI (Kotter) e Tempestade Perfeita: o bolsonarismo e a sindemia Covid-19 no Brasil (Contracorrente); e Sobre Perdas e Danos: negacionismo, lawfare e neofascismo no Brasil (Kotter), que será lançado em julho. Nesta entrevista, ele analisa o cenário pré-eleitoral e sustenta que o atual governante da nação não conta com o apoio nem as estratégias que o elegeram para dar um golpe de Estado. “Não é tão fácil consolidar um golpe porque hoje essas forças culturais não estão alinhadas, como estavam por ocasião da crise de 2016. Não há o mesmo nível de adesão midiática ou popular. Isso, porém, não elimina a possibilidade de que tentem alguma coisa, na marra”, adverte
Extra Classe – Qual é a importância da eleição de outubro para a democracia brasileira?
Cesar Antonio Calejon Ibrahim – Esta eleição é absolutamente decisiva. O bolsonarismo é um monstro que depende de uma metamorfose sombria, de se transformar em versões consecutivamente mais nefastas e abjetas de si mesmo para fazer a manutenção do poder. Então, na impossibilidade de mostrar qualquer conquista prática, na economia ou nas questões sociais, tanto mais vai apelar para a pauta moral, para factoides como o indulto ao deputado Daniel Silveira (PTB), para uma série de coisas que seja capaz de distrair a atenção pública e promover algum tipo de isenção nos seus principais membros e nos crimes que foram cometidos ao longo dos últimos quatro anos. Nessa medida, o bolsonarismo não tem muito para onde correr porque não tem nada, rigorosamente nada para mostrar. Ou seja, não tem materialidade. O risco à democracia brasileira, portanto, existe.
EC – Por quê?
Calejon – Há um golpe em curso no Brasil que começou a se estruturar lá em 2014, logo depois da vitória da então presidente Dilma Rousseff (PT) e que se agravou com a inelegibilidade do ex-presidente Lula. Foi o que viabilizou a ascensão do bolsonarismo em 2018 e que, agora, entra na sua etapa derradeira, no momento mais agudo, no qual, se vendo confrontado com a possibilidade iminente de uma derrota, vai tentar, por todas as vias, se perpetuar no poder. Isso significa vias ilegítimas, pois o bolsonarismo ascendeu na esteira da Lava Jato, que já foi deslegitimada pelo STF e até pelo comitê de direitos da ONU.
EC – Em que grau, na sua avaliação?
Calejon – Não é tão fácil dar um golpe de Estado, sobretudo se essa classe capitalista transnacional não estiver por trás. O mundo hoje é altamente interconectado, o cenário internacional reage com maior ou menor ênfase, dependendo de onde e por quem esses golpes são aplicados. O bolsonarismo hoje não tem o amparo dessas e das principais forças que o sustentaram. Não é tão fácil, mas, sem dúvida, existe a possibilidade do presidente Jair Bolsonaro (PL) não aceitar uma eventual derrota na eleição e produzir algo muito parecido com o que foi a invasão do Capitólio (Congresso norte-americano) no dia 6 de janeiro de 2021.
Foto: Marcello Casal Jr.
EC – No seu livro Ascensão do bolsonarismo no Brasil do século XXI (Kotter Editorial, 2021), o senhor lista cinco pilares para a hegemonia desse sistema de poder no país. Esse cenário se mantém?
Calejon – Não, hoje há um cenário bem diferente do que se tinha. Entre 2013 e 2018, os principais veículos de comunicação do país, de forma uníssona, estavam empenhados em criminalizar o PT como uma quadrilha e empenhados em caracterizar o ex-presidente Lula como chefe dessa quadrilha, que haveria “quebrado” o Brasil. Essa voz era muito forte, e acabou resultando num desses pilares: o antipetismo. Além desse, foram essenciais também um forte elitismo histórico-cultural, dogmas religiosos, um sentimento de antissistema e uso de novas tecnologias de informação e comunicação. Desses cinco pilares, três arrefeceram demais: o antipetismo é muito menos forte, assim como a sensação de antissistema, que também desabou porque o Bolsonaro caiu no colo do Centrão, ou seja, não é mais capaz de se vender, hoje, como o outsider que vai moralizar a cena política, como na narrativa adotada em 2018. E as novas ferramentas de comunicação também arrefeceram, porque o truque dessa estratégia é seu ineditismo. Quando se tenta fazer o mesmo truque reiteradamente, o organismo social começa a desenvolver resistências, métodos e abordagens para evitar que seja feito com a mesma intensidade e medida. Não é tão fácil consolidar um golpe porque hoje essas forças culturais não estão alinhadas, como estavam por ocasião da crise de 2016. Não há o mesmo nível de adesão midiática, nem adesão popular. Isso, porém, não elimina a possibilidade de que tentem alguma coisa, na marra.
EC – A invasão do Capitólio, em 2021, foi prontamente rechaçada e não prosperou. Mas os Estados Unidos têm uma democracia estável há mais de 200 anos. Aqui, há uma forte tradição golpista. Teremos a mesma maturidade para enfrentar uma eventual situação similar?
Calejon – É uma questão interessante, para a qual não tenho uma resposta categórica. Concordo que o risco de sucesso é maior aqui do que nos Estados Unidos, precisamente por essas diferenças entre as duas democracias. Mas é bom lembrar que grande parte desses golpes registrados aqui foram patrocinados pelos Estados Unidos, a Operação Brother Sam, em 1964, a Operação Condor, nos anos 1970, e a própria arquitetura da operação Lava Jato, que teve participação da CIA. A gente sabe de tudo isso. Então, o risco teoricamente é maior aqui. Porque alguma coisa, e isso sou capaz de dizer com alguma certeza, deve ocorrer em caso de derrota de Bolsonaro: invasão do Congresso, quebra-quebra, eventualmente algum tiroteio. É provável acontecer, dado o nível de ódio e armamentismo que o bolsonarismo promoveu na sociedade brasileira.
EC – O que ainda sustenta o bolsonarismo?
Calejon – Dois pilares, que são forças estruturais. O elitismo histórico-cultural, que é um deles, não é só das elites, é uma força social que organiza a composição dos agentes sociais com base em parâmetros excludentes. Como o próprio nome diz, são forças históricas e culturais. Variam de época e de cultura. O que não varia é a determinação elitista para validar subterfúgios que sustentem o fulano ser inferior ou superior ao cicrano por causa disso ou daquilo. Isso não muda. Vem sendo construído por pelo menos 500 anos, desde a colonização. Os subterfúgios variam de acordo com a história e a cultura. A gente sabe como isso está organizado: em cima da pele preta e parda, em cima da misoginia, do machismo, da homofobia e daí por diante. O dogma religioso, por sua vez, também é difícil de ser contestado justamente porque é dogmático, porque não permite o debate: o dogma religioso atua de forma a cercear o debate, você precisa ter fé em algum deus, senão, será punido. Esses dois pilares ainda dão alguma sobrevida ao bolsonarismo porque são construções muito enraizadas na sociedade e que dificilmente podem ser contestadas ou alteradas em três, quatro anos. É coisa para gerações. O pessoal aí do sul, que diz que gay é inferior, que mulher é inferior, que preto é inferior, aprendeu isso com o pai, com os avós, não vai mudar isso em cinco, dez anos, é uma construção a perder de vista – caso a gente invista maciçamente em educação. Essas questões são muito nevrálgicas para o bolsonarismo e muito difíceis de serem contestadas.
EC – Esses pilares não estariam aptos a fazer triunfar um golpe?
Calejon – O bolsonarismo é a expressão mais ampla de um modelo de sociabilidade que tem como base o dogma, o elitismo, essa racionalidade neoliberal, que determina uma espécie de governo dos homens com base no princípio universal da concorrência. Como já disse, o risco do bolsonarismo não aceitar o resultado da soberania popular nas eleições é altíssimo. Isso está quase dado, na minha opinião. Até porque estará advogando em causa própria, sabe que à derrota vão se seguir processos jurídicos que podem resultar em prisões. Mas o risco de as forças armadas (F/A) brasileiras embarcarem num golpe para defender o bolsonarismo é menor, apesar de existir. Bem menor, eu diria. No mundo de hoje, não há o mesmo tipo de determinação que existia nos anos 1960 para orquestrar golpes militares. Hoje, há as guerras híbridas, as revoluções coloridas, a cooptação da classe média. É difícil fazer por meio da força, caso não se tenha à disposição todos aqueles outros elementos. Neste momento, parece que os militares brasileiros, apesar de sua veia autocrática, não têm os elementos que precisariam para dar um golpe. Sem o endosso dos Estados Unidos, por exemplo. A subsecretária para assuntos políticos do governo norte-americano, Victoria Nuland, esteve nesta semana (dia 26 de abril) em Brasília para dar apoio às urnas eletrônicas. Na mesma semana, os presidentes do Senado (Rodrigo Pacheco – PSD-MG) e da Câmara Federal (Arthur Lira – PP-AL) também respaldaram a lisura do sistema eleitoral brasileiro. São indicativos muito fortes. Portanto, eu não vejo como o bolsonarismo poderia ter legitimidade para um golpe a essa altura do campeonato. Eu apostaria minhas fichas numa derrota de Bolsonaro em outubro, em tumultos provocados nos meses seguintes, lembrando o que ocorreu no Capitólio, mas sem comprometer o processo democrático brasileiro.
Foto: Arquivo Pessoal
EC – Nossa democracia está madura para rejeitar uma aventura autoritária?
Calejon – Se a aprovação do Bolsonaro estivesse acima de 40%, digamos, na faixa dos 45%, esse risco seria maior. Mas ele tem hoje um teto bem mais baixo, na casa dos 30%, talvez menos, em virtude da gestão desastrosa. Só para ter uma ideia, Bolsonaro se aliou ao coronavírus contra a população brasileira. Acho muito difícil, num cenário desses, que as instituições não se voltem contra o bolsonarismo. Ele ainda está na presidência e já vemos o STF tomando medidas mais incisivas, de caráter criminal. E é o mesmo STF que, há alguns anos, condenou basicamente a esquerda inteira. Hoje, parece que já entendeu que o jogo é outro, que o estado de coisas já não é o mesmo e está se posicionando claramente contra o bolsonarismo. É um indicativo do que vem por aí. Todas as forças políticas mais estruturais, Centrão, STF e Forças Armadas, a partir do momento em que Bolsonaro for derrotado nas urnas, retiram o apoio imediatamente. O bolsonarismo, na minha opinião, desidrata de vez. Da noite para o dia. Se a diferença de votos entre Bolsonaro e seu principal adversário hoje fosse de 1 milhão de votos, um pouco mais, talvez houvesse margem para alguma coisa, e ainda assim seria complicado. Mas o que está se desenhando é que Bolsonaro terá algo em torno de 40 a 45 milhões de votos e seu adversário mais direto, o ex-presidente Lula, deve ter algo bem próximo de 60 milhões. São os números atuais. Isso coloca as instituições brasileiras numa posição relativamente inexorável de ter que confrontar o bolsonarismo. Teremos observadores do mundo todo, até porque a gestão Biden também quer se certificar da derrota de Bolsonaro, porque isso dá menos força para um eventual retorno do ex-presidente Donald Trump em 2024. Isso dificulta muito.
EC – O Congresso Nacional, dominado pelo Centrão, não pode sustentar uma aventura golpista?
Calejon – Não creio. O Centrão é a área mais fisiológica do Parlamento, mas não necessariamente a mais reacionária. Eu acredito que essa reflexão depende do Congresso que será eleito em outubro, não com a base atual. Esse Congresso ainda é fruto de toda aquela carga antipetista que, em alguma medida, já arrefeceu.
EC – Mas na transição, entre o resultado das eleições e a posse, em janeiro, o Congresso será o mesmo de hoje.
Calejon – Sem dúvida. Mas qual seria a medida prática para adotar no caso de uma tentativa de virar a mesa? Que procedimento cautelar seria possível? Não existe. Principalmente se a diferença de votos exceder a casa dos 10 milhões de votos. A partir do final de outubro, teremos momentos de tensão, de instabilidade. Mas não vejo nada que o Parlamento possa fazer, como no impeachment em 2016, até porque os golpes modernos dependem de uma conjugação muito específica de fatores, sobretudo em um país tão importante como o Brasil. É mais fácil fazer isso numa pequena república no meio da Ásia. O Brasil interessa tanto à China quanto à Rússia, tanto aos Estados Unidos quanto à União Europeia. Não tem o que um Parlamento ou um tribunal possa fazer, num caso desses.
EC – A fragilidade dos partidos no Brasil não seria uma agravante para o cenário eleitoral?
Calejon – Sim, mas as federações podem dar alguma coerência à questão partidária no Brasil. Não acabar, mas pelo menos reduzir o clientelismo na nossa política. Não acredito numa alteração radical da composição do Congresso, mas a trágica gestão do Bolsonaro deve dar uma chacoalhada. Acho difícil que o campo progressista tenha menos de 130 deputados, arriscaria até 150 parlamentares, o que daria cerca de 30% da Câmara. Isso melhora substancialmente a governabilidade de uma eventual gestão do campo democrático.
Imagem: Kotter/ Divulgação
EC – Os pilares estruturais que sustentam o bolsonarismo vão nos manter reféns permanentes do fantasma do autoritarismo?
Calejon – Esse aspecto é nevrálgico, não só para os próximos anos, mas para as próximas décadas. Essas forças estruturais não vão desaparecer, é verdade. Dialeticamente, ajudaram o bolsonarismo a ascender e, ao mesmo tempo, se beneficiaram dessa ascensão. Em estado de menor ou maior latência, continuam e vão continuar presentes na vida social e política do país. Vamos ter de continuar alertas e tendo de negociar com esse risco porque a democracia é assim. Pressupõe a negociação, a mediação, o uso da política para evitar a guerra e o conflito. No posfácio do meu último livro (Tempestade perfeita: o bolsonarismo e a sindemia Covid-19 no Brasil, 2022), eu sustento que se continuarmos subvertendo os valores democráticos cada vez que o resultado das urnas não interessa a uma classe transnacional, aos setores industriais e da mídia hegemônica, se continuarmos estimulando o dogma religioso no cerne da vida política, e isso não é crítica a nenhuma doutrina religiosa, quero deixar bem claro, mas apenas ao dogma como parte da vida social e política, se continuar assim o Brasil caminha para se tornar uma teocracia miliciana de caráter dogmático-religioso. Basta ver o que está acontecendo hoje: o Ministério da Educação sendo pautado por pastores evangélicos. Existe uma dimensão miliciana e dogmático-religiosa já presente na política brasileira. É preciso olhar com muito cuidado para isso porque a situação tende a se agravar, com ou sem o atual presidente no poder. O Bolsonaro é muito mais um sintoma do que propriamente a causa dessas forças.