Foto: Elza Fiuza/ABr
“Agora, se trata de deslegitimar a escola, pública e privada, atacando os professores que estimulam o senso crítico de seus alunos, que tratam do racismo, da misoginia e da homofobia, que sustentam posições em favor dos direitos consagrados pela Constituição e pela legislação brasileira, incluindo a defesa do ECA que o presidente eleito declarou que irá “jogar na privada”.
Nem todos perceberam, mas a extrema-direita brasileira alterou seu discurso sobre a escola. Até há alguns anos, as posições mais conservadoras com relação à Educação no Brasil repetiam que os professores haviam “perdido sua autoridade” e que esse processo estava vinculado à emergência dos novos direitos propostos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O ECA, como se sabe, não retira uma vírgula da autoridade dos professores, mas sempre incomodou a tradição, porque afirmou direitos no âmbito das relações familiares. Vale dizer, as crianças passaram a ser concebidas como pessoas em desenvolvimento, cujos direitos fundamentais deviam ser respeitados por todos, a começar por seus cuidadores. Assim, o Brasil rompeu, finalmente, com a tradição pela qual se imaginou que crianças e adolescentes fossem seres semoventes, sem palavra ou direitos, para quem a simples vontade dos pais deveria ser incorporada como lei absoluta.
Tais posições, compartilhadas, inclusive, por muitos professores, passaram a responsabilizar os pais pelas dificuldades enfrentadas em sala de aula. Por esse caminho, houve quem sustentasse que era a desatenção dos pais, sua negligência, que dificultava a aprendizagem; que as crianças eram “mal-educadas”, porque seus pais não haviam lhes oferecido a disciplina e os valores morais básicos, coisa que os professores não poderiam assegurar etc.
Esse discurso mudou. Agora, o problema para os conservadores brasileiros são os professores. Muitos deles são, segundo a fobia em curso, perigosos “doutrinadores”, guerrilheiros comunistas dispostos a promover a lavagem cerebral em ingênuos alunos. Recentemente, na campanha eleitoral, apoiadores de Bolsonaro compartilharam vídeos apócrifos com histórias lamuriosas sobre “pais que perderam seus filhos para o comunismo” graças ao ardil de professores que transformaram suas amáveis crianças em perigosos subversivos dedicados à luta de classes. Seria para chorar de rir não fosse o fato de que milhões de pessoas acreditam em coisas do tipo ou mesmo piores. Uma parcela da população, é bom lembrar, acreditou que Haddad, quando prefeito de São Paulo, teria mandado distribuir mamadeiras com bicos em formato de pênis nas creches com o alegado propósito de “combater a homofobia”, uma história que só existe na mente doentia dos que a inventaram.
Agora, se trata de deslegitimar a escola, pública e privada, atacando os professores que estimulam o senso crítico de seus alunos, que tratam do racismo, da misoginia e da homofobia, que sustentam posições em favor dos direitos consagrados pela Constituição e pela legislação brasileira, incluindo a defesa do ECA que o presidente eleito declarou que irá “jogar na privada”.
Ao invés de fortalecer a autoridade dos professores, a extrema direita quer lhes subtrair o direito à palavra que consiste basicamente em liberdade de cátedra. Uma tentativa do tipo constou na “Constituição” de 1969, imposta pela ditadura no Brasil. Naquele texto, o art. 176, § 3º, VII, assegurava para o ensino “a liberdade de comunicação de conhecimentos no exercício do magistério, ressalvado o disposto no artigo 154”. O art. 154, por seu turno, assinalava: “O abuso de direito individual ou político, com o propósito de subversão do regime democrático ou de corrupção, importará a suspensão daqueles direitos de dois a dez anos (…)”. Uma redação que autorizaria um processo por subversão contra um professor que dissesse o óbvio; que o Brasil vivia em uma ditadura, por exemplo.
O Escola sem Partido, acreditem, é um projeto de lei que propõe fixar em todas as salas de aula no Brasil um cartaz com “mandamentos” aos professores, todos restritivos à liberdade de cátedra. Por trás desse alarido, que servirá apenas para constranger e ameaçar professores, há um objetivo de fundo que poderá ser aprovado pelo Congresso. Refiro-me ao projeto do “Homeschooling”, a ideia de que os pais devem ter o direito de não matricular seus filhos na escola, que abordei no texto “Crianças fora da escola, a distopia de Bolsonaro” (leia em: https://goo.gl/8xeNwh) e que ampara também a absurda ideia de EaD para o ensino fundamental defendida pelo presidente eleito.
Há centenas de projetos do tipo tramitando nos municípios, nos estados e na União, além de daqueles que pretendem alterar a LDB. Um deles, o PL nº. 7180/2014, estabelece o “Respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa”. Comentando esse projeto, a professora Renata Aquino (Uerj) lembrou o caso de um professor que estava explicando aos alunos o Feudalismo. Descreveu, então, a situação dos servos, submetidos ao trabalho compulsório, sem direito de ir e vir e, frequentemente, punidos fisicamente pelos senhores feudais. Uma aluna levantou a mão e fez o seguinte comentário: “acho que a minha mãe é uma serva, porque ela apanha do meu pai, não pode sair de casa quando quer e tem que limpar, cozinhar e arrumar a casa todos os dias, obrigatoriamente”. O que deve fazer o professor diante de situações desse tipo? “Respeitar os valores familiares”, respondem os conservadores.
* Marcos Rolim é Doutor em Sociologia e jornalista. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe