O golpe a contrapelo: ecos de 1964 em nossos dias
Foto: Arquivo Público do Distrito Federal
No célebre ensaio de 1940 “Sobre o conceito de história”, o escritor e filósofo alemão Walter Benjamin impõe ao historiador o dever de escovar a história a contrapelo: em vez da história oficial dos vencedores, operada por meio de uma linha aditiva em que o historiador positivista vai adicionando fatos e datas um após o outro, faz-se necessário um novo olhar para o passado, um olhar capaz de reorientá-lo, a fim de redimir a história dos oprimidos.
Nesse processo, quem cria a história não é o passado, mas o presente e suas indagações, que iluminam, selecionam e recompõem as narrativas que amparam e sustentam esse mesmo presente. Para Benjamin, a história que narramos a nós mesmos para criarmos nossas relações de identidade e pertencimento nunca é uma cadeia linear de acontecimentos, porém uma catástrofe única, um acúmulo de ruínas, um espaço em disputa, o qual é preciso escavar para descobrir, nos escombros do processo histórico, a saturação de momentos de perigo que se apresentaram aos sujeitos das diferentes épocas, de modo a despertar nas pessoas do presente as centelhas da esperança.
Nesta segunda-feira, 1º de abril, nosso país terá de se ver frente a frente com a desastrosa efeméride dos 60 anos do Golpe Civil-Militar, que, com amplo apoio da mídia, da sociedade conservadora e do empresariado da época, instalou uma Ditadura que calou, constrangeu, torturou e matou brasileiros durante vinte anos.
Uma vez que o passado nunca é passado, mas pura potência narrativa a ser resgatada das ruínas para se apresentar como modelo e horizonte para os nossos olhos, cabe refletir sobre a permanência, no imaginário nacional, do ideário de que os militares seriam uma espécie de tábua de salvação nos momentos em que não conseguimos lidar com nossas responsabilidades, diferenças, traumas coletivos e desafios.
Para além da conivência dos meios de comunicação de massa, do empresariado e de certos setores conservadores travestidos de religião que atestam, como escreveu Benjamin em plena Segunda Guerra, que “o estado de exceção” é na verdade a regra geral, convivemos no país com uma organização militar que facilmente se confunde com a própria nação, como se houvesse, para os fardados, uma relação de metonímia, de parte pelo todo, no qual as forças que compõem exército, aeronáutica e marinha representassem a totalidade do Brasil.
Não é à toa que, dentro das nossas contradições, a República foi proclamada por Deodoro da Fonseca, um marechal monarquista, ao qual se seguiu, no primeiro golpe da recém-nascida constituição republicana, o mandato do seu vice, Floriano Peixoto, gravado nos livros com a doce alcunha de Marechal de Ferro. Ainda dentro da nossa história republicana, fomos presididos pelos militares Hermes da Fonseca, Getúlio Vargas, Gaspar Dutra, pela sequência de Ditadores pós-golpe de 64 (Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo), até chegarmos no capitão reformado, expulso do exército por planejar atentado terrorista, Jair Bolsonaro, provando como a trama da história, quando não desmantelada pela educação e por condições mais dignas de vida, pode ser sempre revivida e recitada, dando corpo a novas tentativas de golpes e revisionismos ufanistas.
Nesse processo, fica patente o quanto os períodos de Democracia no Brasil puderam ocorrer nos momentos em que os militares sofreram desprestígio, embora gostem de contar para si mesmos que foram os responsáveis pela consolidação e permanência dos regimes democráticos. Contar muitas vezes a mesma história não a torna verdade, mas é capaz de convencer os sujeitos da dignidade das próprias mentiras.
Em um país cuja transição democrática se deu em um processo de anistia irrestrita a torturadores, em diferentes momentos premiamos os saques dos militares à nossa dignidade com todo um Brasil paralelo de privilégios: as forças armadas gozam de sistema de saúde, educação, justiça e aposentadoria próprios e vantajosos, suas filhas são pensionistas ad aeternum, as tropas dispõem armas, de propriedades e estão sempre à espera de que alguma voz exaltada que se diz popular as convoque para organizar e calar a nação. Se a cadela do fascismo está sempre no cio, alimentamos nossos sabujos de caserna com a esperança de quando ou não poderão vir à luz.
Do ponto de vista do cidadão que deseja e apoia uma intervenção militar, existe a nostalgia dos mais velhos pela época em que eram jovens e acreditavam participar do dia a dia nacional (seja prosperando com a ajuda do curto milagre econômico, seja se contrapondo ao regime). Como a memória não deixa de ser um exercício de fantasia e ficção, nesses há a saudade de um tempo e de uma potência de vida perdidos.
Já setores amplos da classe média, incapazes de lidar com a diversidade, com a abertura e as constantes mudanças da sociedade contemporânea, evocam nos militares a possibilidade de um tempo de ordem, de limites claros entre o torto e o direito, entre o que se considera certo e errado, um mudo irreal, branco e preto, no qual os ressentidos ocupariam seu “devido” lugar, teriam prestígio e encontrariam sentido para suas frágeis individualidades, amparo para os fracassos de quem não consegue se inserir em um conjunto social formado pela incerteza e pela diversidade.
Isso lembra como, apesar de atravessarmos as mesmas datas no calendário (e todo calendário é um monumento para a consciência histórica), nem sempre habitamos os mesmos tempos e não é à toa que as hordas que invadiram os palácios dos poderes em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, quebraram relógios e marcaram a data como uma homenagem a outra intentona frustrada, a dos asseclas de Trump nos EUA, mostrando como, além de colonizados pelo imaginário militar da pátria mãe gentil, também o somos por um American Way de fazer baderna.
Walter Benjamin escreve que é dever do sujeito histórico fixar uma imagem do passado no momento do perigo, encarando a história “não como um tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras”. Se cada geração carrega consigo certa força messiânica capaz de possibilitar à humanidade redimida a apropriação total do seu passado, a capacidade dos oprimidos de salvar a memória e dar redenção aos nossos antepassados violentados e escravizados pelos diversos regimes de exceção, não podemos jamais esquecer daquela longa noite de vinte anos, cujos ecos ressoam e ressoarão eternamente aos nossos ouvidos, entre 31 de março e 01 de abril de 1964.
Sem anistia para os opressores: em honra dos nossos mortos e torturados, é nosso dever combater e denunciar torturas e torpezas, além das frustradas tentativas de golpe que redundariam nos mesmos dispositivos de crueldade.
Em honra dos nossos mortos e torturados.
E de nós mesmos.
Arthur Beltrão Telló é Mestre e Doutor em Letras, professor da PUCRS e do Colégio Gabarito
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