OPINIÃO

Uma Porto Alegre de mentira

Por Cristiano Fretta / Publicado em 24 de janeiro de 2024
Uma Porto Alegre de mentira

Imagem: Aquarela de Herrmann Rudolf Wendroth/ Domínio Público

“Talvez, mais do que nunca, Porto Alegre seja uma cidade cuja imagem foi uma construção do imaginário, bem pouco verdadeira”

Imagem: Aquarela de Herrmann Rudolf Wendroth/ Domínio Público

Todo mundo já conheceu ou irá conhecer uma pessoa compulsivamente mentirosa. Ela pode ser um amigo, um colega de trabalho ou até mesmo algum familiar. No meu caso, o contato mais próximo que tive com um mitomaníaco (pelo menos que eu saiba) se deu com um colega do ensino fundamental.

Ele tinha a incrível capacidade de mentir sobre qualquer assunto. Entre as histórias que ele ia criando ao longo do dia, algumas me marcaram bastante, como da vez em que ele disse que seu tio estava debaixo do World Trade Center quando o primeiro avião se chocou contra a primeira torre. “Ele viu pedaços de pessoas caírem do céu, Cristiano”, me disse o colega, mordendo um pastel no recreio. Estávamos na 8ª série.

Outra vez ele disse que viu homens armados correndo na frente da escola, dando tiros para cima. Ah, sim, teve uma clássica: ele inventou que viu a professora de história saindo de um motel com o diretor da escola

Meu amigo mitomaníaco contava suas histórias com uma retórica tão bem construída de gesticulações e tons de voz que era muito difícil não ser fisgado por suas palavras. Coitado dos meus professores…

No entanto, havia uma de suas mentiras que, mesmo sem que ele soubesse, me atingia. Durante alguns anos meu amigo ostentou que seu pai era um homem muito rico, que desfrutava de um altíssimo cargo numa revendedora de carros importados em Porto Alegre.

“Quanto teu pai ganha por mês, Cristiano? Só? Isso o meu pai ganha por dia”, “Que carro teu pai tem? Um Monza 96? Meu pai ganhou semana passada um Corolla novinho”. Eu vivia uma situação econômica relativamente confortável. Meu pai era dono de uma empresa de casas pré-fabricadas que nos permitia comer bem, vestir bem e viajar um pouco.

Meu amigo se esquivava quando o assunto era alguém da turma ir à sua casa: sempre havia uma obra, uma viagem ou alguma outra desculpa qualquer.

No entanto, houve uma vez que eu insisti tanto, que ele, contrafeito, precisou ceder à minha ida até o seu suposto castelo para fazermos um trabalho em dupla de Ciências.

Quando cheguei a seu apartamento, no Higienópolis, não pude conter minha frustração: tratava-se de uma moradia típica de classe média, com os móveis novos e bem arrumadinhos, com uma sala com sofás, estante com fotos e uma televisão.

Havia pouca diferença em relação à minha casa. Fiquei decepcionadíssimo não pelo fato de eu não encontrar um Never Land em Porto Alegre, mas sim por ter como amigo uma pessoa cuja palavra não era nem um pouco confiável. Eu continuaria sendo seu amigo, mas sem acreditar mais nele, pensei comigo.

A mesma ilusão que eu alimentei durante tanto tempo em relação ao meu colega também se dava, descobri, sobre Porto Alegre.

Cresci ouvindo que minha cidade era formada por gente “politizada” – seja lá o que isso signifique –, leitora e culta.

Uma cidade de hábitos europeus, enfim, muito mais próxima de Paris do que de seus bolsões de miséria e descaso do poder público nas periferias.

Eu realmente acreditava nisso. Tinha como crença uma visão quase eugênica dos porto-alegrenses, gente fina, elegante e sincera que debaixo das árvores da Redenção e do Parcão desfilava superioridade cultural.

Essa visão, no entanto, começou a solapar algumas semanas depois da decepcionante visita à casa do meu amigo mitomaníaco.

Eu estava indo em direção à escola pela Rua Augusto Severo quando reparei que em uns 100 metros mais à frente havia um pequeno aglomerado de pessoas. Era uma das manhãs mais frias do ano.

Quando me aproximei, percebi que elas estavam em volta do corpo de Adão, um conhecido morador de rua daquelas bandas. Ele estava deitado de lado, com os olhos abertos, tapado por um fino e surrado cobertor preto. Havia, ao que tudo indicava, morrido de frio.

Passei quase toda a manhã pensando naquele ser humano que, maltrapilho e de olhar triste, vagava pelas ruas do bairro São João. No recreio, contei para meu amigo mentiroso sobre a morte do mendigo. E ele me largou esta: “Lá perto de casa não tem mendigos”.

Será que ele havia esquecido que eu havia ido a seu apartamento ou simplesmente não conseguia controlar seus ímpetos de não dizer a verdade?

Mas minha maior surpresa ainda estava por vir. Depois do meio-dia, quando eu fazia o trajeto de volta para casa, o corpo de Adão ainda estava no mesmo lugar, com um saco preto de lixo sobre o seu rosto. Meus amigos e minha cidade mentiam para mim.

E passados tantos anos dessas lembranças, agora já sem idealismos e imaturidades juvenis, percebo que não há como não convivermos com mentirosos. Talvez, mais do que nunca, Porto Alegre seja uma cidade cuja imagem foi uma construção do imaginário, bem pouco verdadeira.

Já fomos uma capital de amplos projetos de planejamento. Sua própria fundação, isto é, o seu reconhecimento como Freguesia de Viamão, em 1772, e sua elevação a capital da Província em1773, por José Marcelino de Figueiredo, se deram no âmbito de interesses políticos contra os espanhóis.

Para dar status de capital àquilo que era então uma pequena vila, muitas obras foram levadas a cabo ainda no século 18, como o Arsenal de Guerra, a primeira Igreja Matriz e o Palácio do Governador, entre muitas outras.

Após a revolução Farroupilha, a cidade se expandiu em direção aos seus arrabaldes e, de década em década, os avanços foram acontecendo, como o surgimento do transporte público, o acesso à água encanada e a chegada da luz elétrica nos anos de 1890.

No final do século 19 e nas primeiras décadas do século 20, Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros e seus intendentes positivistas – apesar, claro, de todas as ressalvas em relação ao autoritarismo e à ideologia em si que podemos fazer aos discípulos de August Comte – arborizaram Porto Alegre e fomentaram a indústria sob o prisma do racionalismo positivista.

É claro que as camadas pobres da cidade não foram protagonistas de uma ideologia que sempre caminhou de mãos dadas com o capitalismo industrial. No entanto, não há de se negar que a ideia da construção de uma Porto Alegre para o futuro foi uma das grandes marcas das gestões positivistas.

Sem querer esgotar o assunto, exalto aqui o nosso incrível Orçamento Participativo e o Fórum Social Mundial, que colocaram Porto Alegre na rota das grandes capitais político-culturais, modelo de participação popular e planejamento social de futuro.

O que sobrou de tudo isso?

A política pública de Porto Alegre hoje parece ser decidida no hall de entrada de algum prédio bonito na Carlos Gomes ou no Moinhos de Vento, cheios de gente branca e empreendedora, comendo canapés servidos por garçons negros.

Os “projetos” parecem vir de camisa polo e sapatênis, uma atmosfera meio Luciano Huck e Coldplay. Gente que só fala em investimentos e lucro e que entraria em ebulição se fosse obrigada a tomar uma lata de cerveja na Lomba do Pinheiro.

Impossível ter paciência com esses atores do capital financeiro que não conhecem nem conhecerão sua própria cidade. É a partir deles que, atualmente, a identidade da capital dos gaúchos ganha ares de serviços privatizados incompetentes e imensos espigões de concreto.

Enquanto o discurso da meritocracia e do lucro brilhava para meia dúzia, a cidade esteve repleta de árvores pelas ruas e milhares de pessoas estavam sem luz elétrica e água.

No final da 8ª série, o meu amigo mentiroso dizia para todos da turma que passaria boa parte das férias em Miami. Tal foi minha surpresa quando, caminhando pelo Centro de Cidreira, praia que minha família frequenta há décadas, me dei de cara com ele.

Seu rosto de espanto foi cômico e não pude deixar de sorrir e balançar a minha cabeça negativamente. Constrangido, após trocarmos algumas palavras, ele me convidou para tomarmos um sorvete. Então, eu perguntei por que ele mentia tanto, ao que ele me respondeu que “não queria ser um guri como os outros, queria ser especial”.

Também admitiu que seu pai era, na verdade, um vendedor de carros. Após essa conversa, passamos boa parte do verão juntos, andando de bicicleta e tomando banho de mar. Fiquei com a sensação de que ele não mentiu mais para mim. No ano seguinte, ele saiu da escola. Hoje, eu o acompanho pelas redes sociais: ainda tenho a sensação de que nada do que aparece por ali é plenamente verdadeiro.

Talvez Porto Alegre precise revelar-se para o senso comum como uma “simples” cidade brasileira. Conhecer, de fato, sua cidade não significa não a amar, mas sim amá-la contemplando sua verdadeira face. Afinal de contas, há como amar aquilo que não conhecemos verdadeiramente?

Precisamos admitir que nossos serviços públicos são péssimos, que nossa população não é “superior” a nenhuma outra. Precisamos admitir, por fim, que somos uma cidade decadente e cheia de problemas. Nossa Porto Alegre. A verdadeira. Está horrível.

Cristiano Fretta é escritor e professor de Português e Literatura

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