OPINIÃO

A nossa inércia

Por Cristiano Fretta / Publicado em 26 de julho de 2022

Envios diários

Envios diários

Foto: Francisco Ferreira/Pexels

INÉRCIA: “Os golpes mudaram; é necessário que a resistência também mude, deixando em segundo plano o aspecto sempre sedutor da autorreferecialidade e incorporando diálogo com todos os setores da sociedade civil”

Foto: Francisco Ferreira/Pexels

Isaac Newton (1643-1727) postulou, em sua primeira lei, que todo corpo continuará em seu estado de repouso ou movimento retilíneo uniforme a menos que seja aplicado sobre ele uma outra força.

Isso significa que, em uma freada abrupta, um passageiro tende a permanecer no mesmo movimento do carro até que uma outra força, no caso o cinto de segurança, haja sobre ele. É a famosa inércia.

[índice]É impossível que o conceito de inércia newtoniana não seja, mesmo que analogicamente, transplantado para a realidade de outras áreas do conhecimento, como as dinâmicas políticas, por exemplo.

O desmonte da educação no Brasil tem sido ao longo dos últimos anos um carro em movimento que nunca chegou a encontrar algo que o parasse.

O caminho do desmonte, da precarização, das duvidosas mudanças curriculares em prol da iniciativa privada sempre esteve livre aos motoristas do caos.

Desmonte do ensino superior

No dia 22 de julho, a Unisinos, universidade mantida pela congregação dos jesuítas, confirmou o encerramento de 12 dos 26 cursos do seu Programa de Pós-Graduação, acarretando a demissão de dezenas de professores.

Seus cursos de pós-graduação são reconhecidos nacional e internacionalmente.

Foram fechados os PPGs de arquitetura, biologia, ciências contábeis, ciências sociais, comunicação, economia, enfermagem, engenharia mecânica, geologia, história, linguística aplicada e psicologia.

Em nota, a instituição afirmou que “houve significativa redução do número de matrículas, resultado da crise econômica do país, da redução expressiva de financiamento público para o ensino superior e da pandemia.”

A universidade, claro, tem todo o direito de gerir os seus negócios da forma que lhe aprouver.

No entanto, a nota deixa claro que mesmo a educação superior privada precisa de aporte de dinheiro público para seguir com seu funcionamento normal.

Estamos vivendo, sem dúvida, o pior quadro de investimento em educação da década.

No caso do ensino superior, para se ter uma ideia, os investimentos no orçamento discricionário – aquele que o governo tem o poder de cortar – caíram de R$ 13 bilhões em 2018 para 8,2 bilhões em 2021.

O caminho do desmonte não ocorre da noite para o dia: é necessário que toda uma política de sucateamento seja arquitetada para que, por fim, as estruturas comecem a desmoronar.

Tem sido assim também, por exemplo, na cultura e no nosso inquestionável processo eleitoral.

Inércia e sucessão de golpes

E o que os mais diversos setores progressistas da sociedade fizeram? Encapsularam-se em discussões teóricas em redes sociais, que são lícitas, claro, mas que nunca chegaram a ter como consequência uma articulação coesa da sociedade civil em defesa dos princípios democráticos.

Em 2016, muitos observaram atônitos a um golpe de estado. A mobilização nas ruas, por meio de sindicatos e outras entidades representativas, esteve muito longe de ter qualquer tipo de efeito prático.

Em 2018, o “Ele não” foi, de fato, uma manifestação popular contra a eleição daquele que seria o pior presidente da história deste país.

Mas, depois disso, o que tivemos? Notas de repúdio, abaixo-assinados virtuais e, principalmente, silêncio cúmplice.

A direita, muito mais eficiente em utilizar os algoritmos e as milícias digitais em prol de seu projeto protofascista não precisou se preocupar com quase nada na esfera do mundo das ruas.

Caminho livre para o caos

O que havia era uma estrada praticamente livre, quase sem obstáculos, notas de repúdio voando pelo caminho.

Não houve, por exemplo, uma frente nacional pela educação – algo coeso, articulado, que contasse com nomes importantes da cultura brasileira, pressionando o Executivo e o Legislativo, atrapalhando as pautas reacionárias.

Ficamos, cada um à sua maneira, em nossos feudos de decepção, apatia e presunção intelectual, talvez esperando uma força redentora que fosse nos devolver, embrulhado em papel vermelho, o tempo em que éramos mais felizes.

É claro que dinâmicas políticas e sociais não podem ser simplesmente estancadas: por mais insuportavelmente toscas e retrógadas que elas possam ser, há sempre uma força em qualquer tendência coletiva de uma sociedade.

No entanto, talvez esteja na hora de a sociedade civil legalista fazer uma autocrítica e se dar conta de que falhou miseravelmente em defender os princípios basilares da nossa democracia.

Somos da Razão, mas existe a Força. Somos da Constituição, mas existem os canhões.

E em 2022 a eles não se resiste usando as mesmas faixas dos anos 60.

Os golpes mudaram; é necessário que a resistência também mude, deixando em segundo plano o aspecto sempre sedutor da autorreferecialidade e incorporando diálogo com todos os setores da sociedade civil. Talvez essa seja a grande lição da chapa Lula-Alckmin.

Corpos em movimento

Isaac Newton viveu em um mundo muito diferente do nosso. Físico, preocupou-se em descrever aquilo que ele considerava as leis gerais dos movimentos dos corpos.

Nossas instituições democráticas, nosso bem-estar social, nosso direito à alimentação e à cidadania também devem ser compreendidos como corpos que precisam ser preservados.

E, para que estejam adequados às exigências complexas de nossos tempos sombrios, não podem ficar em inércia, sob pena de não conseguirem alcançar os outros corpos que querem derrubá-los.

É necessário levarmos para as práticas sociais, dessa forma, a terceira lei de Newton: para toda força de ação existe uma força de reação. Sejamos reação.

Cristiano Fretta é professor de Português e Literatura.

Comentários