OPINIÃO

O professor e a tecnologia: aprendizagem não é só uma brincadeira

Por Plínio Melgaré / Publicado em 4 de março de 2022

Foto: Pexels

“Antes mesmo das tecnologias contemporâneas, o papel da docência estabelecia um papel de mediação ativa dos alunos e alunas com os conteúdos a serem desenvolvidos”

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Uma rápida passagem pelas redes sociais e se percebe: há inúmeros “professores”. Profissionais das mais diversas áreas criam canais, produzem conteúdo, disponibilizam-no nas redes e se autodefinem como… professores.

Há algum tempo, professor tinha carteira de trabalho assinada por um empregador. Um vínculo com uma instituição de ensino, após um período de formação, tornava a pessoa professor (professora) de profissão, de carteia assinada. E havia o reconhecimento de uma autorictas. No hibridismo contemporâneo, em que as realidades virtuais e analógicas simbioticamente se relacionam, essa realidade se dilui.

No mundo digital, os rituais são perdidos, a volatilidade sobressai. Como ações simbólicas, os rituais formam uma comunidade, ainda que sem comunicação. Os rituais radicam em códigos, que permitem às pessoas se (re)conhecerem e se sentirem pertencentes em seus sinais e identidades.

Mas a instantaneidade dos fluxos informacionais e comunicativos contemporâneos provoca um desgaste comunitário e a própria desorientação da pessoa.(1) E, diante do “enxame digital”, onde há muito ruído, uma multidão se autoexplora, pensando-se livre. “O socius (“social”) dá lugar ao solus (“sozinho”). Não a multidão, mas sim a solidão caracteriza a constituição social atual. (…). A solidariedade desaparece”.(2)

Por força da pandemia, a educação, até então predominantemente presencial, viu-se jogada no universo digital e as suas tecnologias. Apenas a aceleração de um processo inexorável. Mas a questão não radica no uso da tecnologia. Senão que em uma racionalidade e uma lógica reducionista que pretende colocar o professor na arena digital, dominada por youtubers, podcasters, instagramers e suas retóricas muitas vezes despreocupadas e irresponsáveis.

Enfim, um produtor de conteúdo adaptado à linguagem digital. E o professor da era tecnológica transforma-se e é identificado como mediador, curador de conteúdo e outros termos semelhantes.

Ora, o professor há muito é um agente mediador. Antes mesmo das tecnologias contemporâneas, o papel da docência estabelecia um papel de mediação ativa dos alunos e alunas com os conteúdos a serem desenvolvidos.

A mediação do processo de aprendizagem se perfectibiliza através de uma ação pedagógica ativa, que reconstrói o mundo através das relações contextuais daqueles que participam do processo de aprendizagem.

Curador de conteúdo? Não há novidade. Afinal, quem define a bibliografia que suporta os planos de ensino e de aula? Quem indica livros e artigos para as classes?

O problema, pois, é acentuar essas atividades como substitutivas de uma docência responsável, emancipadora, reflexiva, e que se constitui a partir da relação de alteridade com os sujeitos que dialogam e compõem o ambiente educacional.

Fascínio tecnodigital

A curadoria de conteúdo e a simples mediação, diante das tecnologias já existentes e de acordo com certos modelos de ensino propostos – em especial por instituições de ensino pertencentes a grupos econômicos –, são tarefas passíveis de realização por robôs. E assim, dá-se largos passos para a despersonalização do processo de aprendizagem e da educação.

A Universidade e a Escola não podem perder de vista seu compromisso com o conhecimento tradicional, humanista, acumulado secularmente. A leitura, a escrita – meios tradicionais de aprendizagem – ainda são decisivos para o exercício do pensamento. Ao contrário de uma exaltada linguagem digital que, por vezes, codifica a palavra e estreita o pensar.

Processos como a gameficação ou outras metodologias que mais se aproximam do “distrativo” podem ser falhas na aquisição e desenvolvimento de conteúdos culturais básicos. Afinal, aprender não é só uma brincadeira, um jogo.

Ainda, há de se estar alerta diante de um fascínio tecnodigital. Como se as novas tecnologias de informação e comunicação resolvessem o problema do aprendizado. E com elas, a euforia de um universo constituído tão somente pela autoeducação, indiferente a qualquer conhecimento institucionalizado, que prenuncia uma “educação feliz, livre das hierarquias, dos pesos e das servidões do passado”.(3)

A aquisição da informação disponível na internet, cujo processo exclui o esforço, é sedutora. E transmite a falsa ideia de um conhecimento satisfatório. Afinal, por que uma educação que demanda trabalho, alguma dose de sacrifício, se há tecnologia para que sejamos supostamente livres empreendedores do próprio aprendizado e sem esforço?

Não se pretende desligar a sala de aula da tecnologia, que oferta muitas possibilidades para o professor – até mesmo a sua extinção. Mas o desafio, quem sabe, reside na construção de pontes entre a cultura acadêmica, universal, e os fluxos informacionais existentes.

Sob pena do naufrágio do comum, do coletivo, em nome de um individualismo exacerbado, que vende a ideia de um sujeito empreendedor de si mesmo (aluno de si mesmo?), respaldado por uma falsa ideia de liberdade, convertida em controle e vigilância típicas de uma sociedade neoliberal, dataficada e hiperconectada.

NOTAS:
(1) Ver La desaparición de los rituales. Herder Editorial: Barcelona, 2020.
(2) Byung-Chul Han. No enxame – perspectiva do digital. Trad. Lucas Machado Petrópolis: Vozes, 2018, p. 33.
(3) Nesse sentido, ver Gilles Lipovetsky. Agradar e tocar – ensaio sobre a sociedade da sedução. Trad. Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2019, p. 350.

Plínio Melgaré é advogado e professor da Escola de Direito da PUCRS e da FMP.

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