Foto: Reprodução Instagram/Marília Mendonça
Foto: Reprodução Instagram/Marília Mendonça
A universidade e suas extensões, que também chamam de academia, sempre teve a desculpa de que certos fenômenos sociais, políticos e culturais só podem ser observados com distanciamento com o passar do tempo.
Academia é academia. A calma é da natureza da atividade dessa gente. Às vezes, não poucas, essa é uma desculpa preguiçosa dos que ainda esnobam o pop nas suas mais variadas manifestações.
Mas há exceções, mesmo que encobertas pelo silêncio dos pernósticos. Vamos tratar de uma dessas raridades em que pesquisadoras da universidade refletem sobre o que muita gente letrada, estudada e doutorada despreza.
Havia, sim, em algum lugar da academia, quem olhasse para essa moça da foto, que não precisava de um ajudante de ordens para carregar sua mala e seu violão.
Um dia depois da morte de Marília Mendonça, uma xará da artista escreveu no Face Book, para espanto dos esnobes, que um grupo de uma universidade gaúcha já havia refletido sobre os assombros produzidos pela arte da sertaneja.
Marília Verissimo Veronese, professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação (PPG) em Ciências Sociais da Unisinos, escreveu:
“Lá em 2018, minha então bolsista de iniciação científica Marina Guerin e a colega e também minha bolsista Samanta Marques começaram a escrever um texto sobre o ‘feminejo’, e eu e a Julice Salvagni fomos interpeladas a entrar na escrita”.
Julice é socióloga, professora da UFRGS. O roteiro resumido é este: a inspiração das bolsistas aciona duas professoras, e a provocação resulta em conversas que levam à elaboração de um texto coletivo.
É quando a Marília da Unisinos fica conhecendo a Marília goiana de Piedada de Caratinga. Em 2018, Marília Mendonça tinha 23 anos e começava a estourar como cantora.
A Marília gaúcha lembra que o pretexto do grupo era o de abordar a presença de mulheres “cantando novos temas num gênero musical antes totalmente masculino e que até feminicídio tinha nas letras”.
As bolsistas analisaram dezenas de letras de músicas. A turma teorizou, pesquisou sobre as mulheres e a música e deu a obra por concluída.
O texto das quatro mulheres foi enviado a uma consagrada revista da academia, que publica pensatas científicas, e aconteceu o que vocês já podem estar imaginando: foi recusado. Por um conselho de homens?
Mesmo que o funil de publicações dessa área seja estreito, é de pensar na ‘casualidade’ da recusa de um tema que pode ter surpreendido e assustado os editores. O feminejo havia sido barrado na porta.
Nem todos viam como deveria ser vista a goiana que desestruturou o esquemão de décadas da música sertaneja, em que a mulher é apenas objeto temático da cantoria chorosa dos homens.
Marília lidera o surgimento de cantoras da sofrência, com abordagens femininas e feministas das suas histórias, relacionamentos, sonhos e dilemas. A voz das mulheres invadia um espaço de machismo exacerbado.
Depois da tragédia em Minas, muita gente disse e escreveu que não conhecia Marília. Não há problema nenhum, até porque ela atuava num nicho em que os homens tornaram tudo repetitivo e raso.
A questão é outra. É a empáfia muitas vezes contida nessa manifestação de ignorância superior. Se eu desconheço Marília, eu me coloco acima desses dramas terrenos provocados pela morte de uma artista popular e sertaneja.
Percebe-se agora que Marília Mendonça talvez tenha sido o maior fenômeno, não só da música, mas da cultura pop brasileira deste início de século, com apenas 26 anos. Por mobilizar multidões ao vivo e virtualmente, pelo impacto da inovação temática e pelos vínculos afetivos poderosos que estabeleceu com seu público de todas as classes sociais.
Compreender o fenômeno Marília Mendonça é entender a capacidade que a arte tem de assombrar o espaço que ocupa. Estamos apenas começando a falar de Marília. Além de cantar, é preciso soletrar seus versos.
O texto das pesquisadoras que enxergaram o poder do vozeirão de Marília lá em 2018 sairá em livro mais adiante. No comentário que fez no Face Book, a professora Marília já havia avisado:
“Te dedicamos, Marília! O nosso ‘Feminejo’ sairá em tua memória”.
Moisés Mendes é jornalista. Escreve quinzenalmente para o Extra Classe.