Precisamos falar sobre a idealização do trabalho do professor
Foto: Unsplash
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É quase consenso que a vida não tem roteiro pré-estabelecido. Mas nós, professores, na maioria das vezes insistimos na crença um tanto quanto subjetiva de que a trajetória dos indivíduos será demasiadamente condicionada pela forma como esses sujeitos se comportam quando inseridos em um currículo segmentado em componentes curriculares e processos avaliativos diversos.
Tendemos a crer que uma pessoa com 17 anos, e que, portanto, se encontra em uma das fases mais complexas de sua vida, seja “entregue” pela escola à sociedade e que o seu comportamento frente à trajetória escolar definirá em larga medida o seu sucesso ou fracasso em várias esferas da vida.
A verdade incômoda é que, neste sentido, talvez estejamos superestimando o alcance de nosso trabalho a longo prazo. Conforme os anos passam, as marcas da escola, tanto no nível cognitivo quanto moral/ético, vão sendo diluídas em uma imensa gama de experiências que o sujeito vai vivenciando nas mais diversas fases de sua vida. Quem éramos nós com 17 anos?
Essa visão idealizada do alcance do próprio trabalho com a qual a maioria dos professores em alguma medida se identifica, no entanto, não pode ser atribuída a algum tipo de ingenuidade inerente à categoria, mas antes à consequência de um intenso processo de idealização forjado nos mais diversos mecanismos e relações em que a atividade docente está envolvida.
Há no imaginário coletivo a convicção de que a juventude representa uma esperança em que convergem as demandas do presente social. Assim, cabem aos estudantes serem uma figura catalizadora das frustrações que emergem dos mais diversos segmentos sociais.
O psicólogo Leandro de Lajonquière, em seu livro Infância e ilusão (psico) pedagógica: escritos e psicanálise e educação, nos chama a atenção de que o adulto educador coloca em seu educando a expectativa de que este vai satisfazer toda a sua potência imaginária, ou seja, será um sujeito sem falhas. Portanto, o trabalho pedagógico funciona intrinsicamente ligado ao campo do ideal, na medida em que seu combustível de funcionamento está relacionado ao imaginário e às expectativas sociais.
Espaço de liberdade
Como diria Riobaldo em Grande Sertão: Veredas, clássico absoluto de João Guimarães Rosa: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.
A visão de que o sucesso é condicionado a um planejamento cartesiano das etapas da vida dialoga intrinsicamente com uma visão mercadológica da existência, na medida em que burocratiza a vida humana e sua natural complexidade em prol de uma concepção de que o fim último de toda trajetória educacional é atingir a maturidade financeira.
Quando a educação não vislumbra os inúmeros outros atores que sobre o estudante irão agir ao longo de sua vida e acaba por superestimar o seu próprio papel, está, na verdade, sendo um agente dessa visão mercadológica.
A escola precisa entender que o espaço de liberdade que ela tanto almeja deve estar presente não só nas discursividades burocráticas, mas também no papel que ela mesma desempenha na sociedade como um todo, sendo, de fato, um local em que não pese sobre si, os professores e os estudantes a responsabilidade de definir a trajetória de tantas vidas em um tempo tão curto.
É evidente que boa parte dos professores não tem sobre si uma visão assim tão idealizada. No entanto, também é evidente que muitas vezes a idealização é a base da construção discursiva de praticamente qualquer ambiente escolar.
Também há que se salientar que um dos componentes essenciais ao bem-estar no trabalho é acreditar em novos horizontes e utopias em relação àquilo que se faz.
Usando um clichê, sim, a esperança nos move e é sem dúvida resistência contra as intempéries. É claro que, em termos de estruturas sociais, a escola pode ser uma excelente ferramenta de combate à desigualdade, principalmente quando consegue funcionar como uma ferramenta de acesso a discursos e provê um diploma que, sim, é importante na escala social e na consequente melhoria das condições de vida. O que a escola não pode, porém, é condicionar somente a ela as expectativas de sucesso ou fracasso de seus estudantes.
A desromantização do trabalho docente também é importante para todos. Ao compreender o real alcance de suas ações, o professor passa também a definir a sua identidade, tendo como base critérios mais racionais e não apenas construções discursivas.
Como consequência, a reinvindicação de seus direitos passa a operar no campo daquilo que é possível em relação aos atores envolvidos em todos os processos educativos, sem demasiadas utopias, mas também sem deixar de reconhecer o seu valor como profissional, em um adequado lugar entre a justiça e o idealismo.
Diminui-se, dessa forma, o terreno da frustração. Os sindicados exercem papel fundamental nesse processo em direção à racionalização da atividade docente, uma vez que os seus princípios de funcionamento se assentam principalmente na noção de classe e respeito às normas trabalhistas.
Portanto, o professor não precisa apenas de palavras afetuosas, palmas da sociedade ou amenidades discursivas: professores precisam de reconhecimento prático – e isso passa, muitas vezes, por reconhecer a si próprio, o seu alcance e seus reais limites dentro das mais diversas realidades.
Cristiano Fretta é professor de Português e Literatura.