Foto: Valter Campanato /Agência Brasil
Tradicionalmente em março, há uma agenda de debates e reflexões relacionados ao dia internacional da mulher que podem afirmar valores igualitários e cumprir um papel na construção social de relações de gênero não hierárquicas.
Um dos pontos que merecem a atenção, particularmente no Brasil, é o avanço da agenda neoconservadora quanto à moral sexual, notadamente em temas como a negação de direitos reprodutivos das mulheres, a valorização dos estereótipos de gênero, com o consequente elogio da passividade e da submissão femininas, o estímulo à homofobia e, mais recentemente, a proposição da abstinência sexual aos jovens, como política pública destinada a reduzir a gravidez na adolescência.
A gravidez na adolescência constitui, de fato, problema social grave. Na literatura especializada, considera-se que a gestação na adolescência é situação de risco para gestantes e recém-nascidos. As evidências mostram que gestantes adolescentes possuem mais intercorrências médicas durante a gravidez e mesmo após o parto, quando comparadas com gestantes adultas.
Ana Cristina Garcia Dias e Marco Antônio Pereira Teixeira no texto de revisão “Gravidez na adolescência: um olhar sobre um fenômeno complexo” citam estudos que associam à gravidez na adolescência complicações como as tentativas de abortamento, anemia, desnutrição, sobrepeso, hipertensão, pré-eclâmpsia e desproporção céfalo-pélvica.
Os autores lembram que a gravidez na adolescência pode se dar em um quadro de comportamentos de risco, o que costuma envolver o uso do álcool e outras drogas, além de um acompanhamento pré-natal precário. Mostram, ainda, que a gestação na adolescência está associada à prematuridade, ao baixo peso ao nascer, à morte perinatal, epilepsia, deficiência mental, transtorno do desenvolvimento, baixo quociente intelectual, cegueira, surdez, aborto natural, além de morte na infância.
Em 2016, dos quase 3 milhões de nascidos vivos no Brasil, 481 mil eram filhos de mães entre 15 e 19 anos, o que significa 16% de todos os nascimentos. Uma taxa de 68,4 nascimentos para cada mil adolescentes, contra uma média mundial de 44 por mil. O fenômeno, embora diga respeito a todas as classes sociais, se concentra entre as meninas de famílias pobres.
Elas têm cinco vezes mais chances de engravidar do que meninas de famílias ricas. Uma vez mães, a grande maioria delas encerra seus estudos, o que tende a perpetuar e mesmo a agravar a pobreza transgeracional.
O governo federal pretende enfrentar o problema com um programa nacional em defesa da abstinência sexual. A ideia básica é a de influenciar os adolescentes nas escolas para que evitem qualquer relação sexual antes do casamento. Trata-se de repetir aqui as políticas de “abstinência apenas até o casamento” (Abstinence-Only-Until-Marriage – AOUM) em vigor nos EUA e fortalecidas pelo governo Trump que tem, também, desmantelado os programas de prevenção à gravidez na adolescência (Teen Pregnancy Prevention – TPP).
Em nenhum momento, claro, o governo procurou saber se programas dessa natureza funcionam nem seus ministros se interessaram em conhecer as centenas de estudos que já avaliaram o impacto das políticas de abstinência implantadas nos EUA.
Aos que se interessam pela matéria, recomendo dois estudos de revisão: a) Santelli e colaboradores, de 2017, “Abstinência apenas até o casamento: uma revisão atualizada das políticas e programas dos EUA e seu impacto” (Abstinence-Only-Until-Marriage: An Updated Review of U.S. Policies and Programs and Their Impact) e b) Fox e colaboradores, de 2019, “Financiamento para a educação apenas com abstinência e prevenção de gravidez na adolescência: a ideologia estatal afeta os resultados?” (Funding for Abstinence-Only Education and Adolescent Pregnancy Prevention: Does State Ideology Affect Outcomes?)
O que trabalhos como esses revelam é que programas de abstinência sexual para jovens não funcionam. As evidências científicas mostram que esses programas não retardam o início da vida sexual dos jovens, nem reduzem comportamentos de risco. O que eles fazem, efetivamente, é ampliar a desinformação sobre sexualidade e métodos de contracepção. Os resultados concretos são, assim, mais e não menos casos de gravidez na adolescência e mais e não menos casos de contaminação de adolescentes por Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs).
Os programas de abstinência americanos implementados por pressão do fundamentalismo religioso evidenciaram, no mais, violações aos direitos dos adolescentes, estigmatizando e excluindo muitos jovens a partir do emprego de noções religiosas como “compromisso com a castidade” (commitment to chastity), pelo que adolescentes que se iniciam sexualmente estariam imersos no “pecado”. Tais programas tendem, também, a estigmatizar jovens homossexuais, bissexuais e trans, reforçando os danos causados pelos estereótipos de gênero, o que fragiliza as meninas.
Iniciar-se sexualmente ou adiar essa experiência são decisões igualmente legítimas e respeitáveis. A preocupação pública central deve ser a de se garantir que os jovens tenham todas as informações sobre sua sexualidade, incluindo as formas de contracepção e de proteção contra ISTs e que sejam sensibilizados a evitar comportamentos de risco. Não se faz isso com discursos moralistas, mas com educação sexual.
* Marcos Rolim é Doutor em Sociologia e jornalista. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe