Foto: Reprodução
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“O que ele vive nos toca profundamente, porque intuímos que o Coringa não é a descrição de uma trajetória individual, mas o resultado de um mundo que se organiza dispensando, sistematicamente,milhões de pessoas como ele”.
O Coringa (The Joker), filme de Todd Phillips, é uma dessas obras de arte impossíveis de esquecer. Há uma força elementar nesse filme, uma erupção vulcânica, um tsunami que nos envolve de tal maneira que, ao final, há algo dentro do espectador que se deslocou para sempre. É esse resultado que, aliás, nos dá uma sensação de mal-estar indefinível, algo como a ideia de se saber derrotado inapelavelmente pelo mundo.
Quando assisti ao filme, havia na sala alguns pais e mães que acompanhavam seus filhos adolescentes. Erro de tipo, se poderia dizer. O filme não é sobre “vilões e heróis”, não trata de “aventuras”, nem da trajetória de um “fora da lei”. O filme, um dos mais densos que já vi, é sobre nós, sobre a sociedade que estamos construindo, sobre o mundo que nos cerca e que pode nos reduzir a pó muito antes da morte.
Nesse particular, há algo de comum entre O Coringa e Bacurau – o outro grande filme do ano. Em ambos os roteiros, há pessoas que resistem diante do processo pelo qual são tratadas como realidades invisíveis. É contra a redução à condição fantasmagórica que Arthur Fleck (em interpretação pungente de Joaquin Phoenix) e os moradores de Bacurau se insurgem. A diferença é que o filme brasileiro constrói um final catártico, o que nos purga e autoriza certa esperança, enquanto o filme americano nos coloca diante de uma distopia realizada, um final de tempo, sem evasão possível.
Arthur Fleck tem um trabalho precaríssimo onde se veste de palhaço para anunciar produtos na rua. Ele sonha ter seu próprio show como stand up, mas não tem oportunidades nem talento para tanto. Vive miseravelmente e depende dos serviços do Estado para ser tratado de uma grave doença neurológica que o faz rir sem controle. Essa risada que se prolonga sem corte nos atravessa a alma já no início, porque rir é expressão de felicidade, de contentamento, mas, para Arthur, o riso é motivo de dor, incompreensão e mais exclusão. O Coringa é um ser humano amalgamado em um prato de ferro, com uma infância retorcida pela loucura da mãe e pela ausência do pai. Alguém que todos humilham, porque lhe é impossível exigir respeito ou um mínimo de consideração. O que ele vive nos toca profundamente, porque intuímos que o Coringa não é a descrição de uma trajetória individual, mas o resultado de um mundo que se organiza dispensando, sistematicamente, milhões de pessoas como ele.
João Carlos Brum Torres, em aguda análise sobre o filme (“Poderá o Coringa ser interpretado como um dos sinais de nossa transição a uma nova época histórica?”), sustentou, entre outros pontos, que nossa época experimenta os efeitos colaterais da crescente substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto (Marx) inerente à robotização crescente, na indústria e no setor de serviços, que tem implicado a desimportância social de amplos segmentos da população, produzindo ressentimento e desesperança. Sim, essa parece ser a base mais ampla pela qual os avanços tecnológicos desconstituem as diferentes sociabilidades modernas, implodem a própria noção de globalização, permitindo a emergência de um mundo virtual demarcado não mais pelas realidades comuns da produção, da informação e da cultura, mas pela emergência de seres isolados, desprovidos de projetos e de compromissos sociais habitando em “bolhas” de irreflexão. De um lado os “vitoriosos”, de outro “os que não importam”, todos socialmente estimulados ao preconceito e autorizados à perversão.
Arthur Fleck irá encontrar a si mesmo na possibilidade autoral da violência, desfecho presumível em que a dor se desdobra e traz ao mundo seu gêmeo. O que vemos, então, é a definição de um ser insensível, algo progressivamente monstruoso, que encontra o seu sentido na decisão de matar. Quando percebemos a transmutação já é tarde, não há mais o que fazer com os nossos próprios sentimentos de comiseração. A loucura de Arthur foi vertida em sangue e, nas ruas, há multidões que se reconhecem, precisamente, na loucura e no sangue. O que, talvez, seja uma das imagens mais estonteantes e desafiadoras de nosso tempo.
* Marcos Rolim é Doutor em Sociologia e jornalista. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe