Quais são os interesses das fundações e institutos empresariais com a BNCC e o “novo” ensino médio?
Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado
A maioria das políticas educacionais brasileiras sofrem descontinuidade na troca de governos, tanto esfera federal, estadual, bem como municipal. Porém, algumas poucas sobrevivem a sucessões, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – que sobrevive ao quinto ministro da educação – e o “novo” ensino médio.
Neste contexto, devemos nos questionar: por que algumas políticas sobrevivem e outras não nas mudanças de gestores educacionais? Por que muitos gestores das pastas da educação são nomeados sem pertencer nem conhecer o campo da educação? Por que as fundações e institutos empresariais têm tanto interesse nestas reformas? Por que a BNCC avança e o PNE não?
Para entender e analisar os interesses e a influência das teses empresariais sobre as políticas de educação de uma forma geral, e sobre a BNCC especificamente, é necessário acompanhar a atuação dos organismos internacionais, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (Ocde) e o Banco Mundial (BM), assim como a ingerência das fundações, institutos e consultorias brasileiras. Entre tantas, destacam-se: Fundação Lemann, Instituto Ayrton Senna, Instituto Natura, Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Instituto Unibanco, Fundação Itaú Social, Fundação Roberto Marinho, Fundação SM e Itaú BBA.
A União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e o Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed) representam os gestores da educação no Movimento, além da participação de parlamentares. Um recente exemplo foi o 17º Fórum Nacional da Undime, realizado em agosto deste ano, na Bahia, que contou com “parceria institucional” destas fundações e institutos, ente outras.
Outro importante grupo de instituições participantes do movimento são as organizações prestadoras de serviços pedagógicos como o Centro de Estudos, Pesquisas, Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec); a Comunidade Educativa Cedac e o Laboratório de Educação – todas financiadas por grandes bancos e grupos econômicos, tais como: Itaú, Unibanco, Bradesco, Santander, Votorantim e Carioca Engenharia.
Há, também, uma avalanche de consultorias educacionais que reforçam as concepções empresariais, um gerencialismo na educação com o “novo”, “moderno”, “eficiente”, “eficaz” e “responsável” em detrimento da experiência e formação dos profissionais das próprias instituições acadêmicas e escolas.
A Ocde funciona atualmente como “uma espécie de ministro da educação do mundo”, alinhando, tanto para governo como para o setor empresarial, as políticas de avaliação – por meio do Pisa – e, indicando quais países estão cumprindo orientações de áreas como educação e economia, indicando territórios mais atrativos para investimentos privados.
No Brasil, o empresariado criou o Movimento pela Base e se autodefine como “um grupo não governamental de profissionais da educação que desde 2013 atua para facilitar a construção de uma Base de qualidade” por meio de debates, estudos e pesquisas com gestores, comunidade escolar e a sociedade, baseando-se, em “casos de sucesso” internacional, como o Cammon Core, a base nacional americana.
A convite das instituições que integram o Movimento pela Base e a Fundação Lemann (criada 2002), um grupo de parlamentares viajou para os EUA, em 2013, para participar do Seminário Liderando Reformas Educacionais e Fortalecendo o Brasil pra o século 21, organizado pela Universidade de Yala, em parceria com a Fundação Lemann, a principal financiadora. No retorno, o deputado Alex Canziani (PTB-PR), presidente da Frente Parlamentar da Educação e integrante do Movimento pela Base, declarou que o objetivo da viagem era conhecer as “vantagens da unificação do currículo escolar” a partir da experiência do Cammon Core, para “que possamos, através dos secretários de educação, dos secretários municipais e do próprio MEC, fazer uma discussão sobre o currículo. O que nós queremos para o jovem brasileiro? O que nós queremos que nossas crianças aprendam em cada um dos anos que passam na educação básica do nosso país”.
Ou seja, eles pensaram o melhor para os jovens e as crianças, enquanto nós – professores, estudantes, comunidade escolar, universidades, especialistas em educação – não fomos nem convidados e muito menos envolvidos no processo até o presente momento.
Em 2018, logo após o segundo turno das eleições para governadores, deputados federais e senadores, nove governadores (inclusive do RS), aceitaram o convite para fazerem uma espécie de curso de Gestão Pública na Universidade de Oxford. A turma se juntou a 56 autoridades, políticos de vários partidos, empresários e especialistas, como propósito de melhorar a qualidade dos recursos humanos em seus governos. No dia 25 de fevereiro, o governador gaúcho assina convênio entre o Estado e a Fundação Lemann para ações na educação.
Este protagonismo das fundações, institutos e Consultorias é sistemático e em várias dimensões: na política, na gestão, nas avaliações educacionais, nas remodelações de currículos, na formação de professores, na oferta material didático e no financiamento da educação. Neste contexto, a BNCC e a reforma do “novo” ensino médio, servem como instrumentos de aprofundamento da lógica empresarial na gestão da escola pública.
Para Camila Rostirola (Unoesc), “a BNCC vai ter relação com as matrizes de referência das avaliações nacionais e, posteriormente, das avaliações estaduais, justamente para garantir que as escolas sigam ela à risca”. Para tanto, as escolas deverão gastar longo tempo para preparar os testes e avaliações, tornando-se centros de comparação entre escolas e professores, fortalecendo a lógica do rankeamento e “culpa” de um único responsável: o professor.
O que se observa, segundo a pesquisadora da Unoesc, no Brasil e em experiências internacionais hoje, é “uma lógica de culpabilização. Quem é o grande culpado pelo aluno não aprender? Pela escola ir mal nas avaliações? É o professor”. Esta responsabilização individual do professor encobre a falta de condições das escolas, o baixo financiamento custo-aluno, a desvalorização da carreira e da profissão docente, mas enfatiza a inadequação da formação inicial e continuada realizada pelas universidades, destacando o uso de metodologias, estratégias e didáticas de ensino ultrapassadas.
Este é o pretexto para que a formação dos professores no processo da BNCC não seja realizada pelas instituições de ensino superior (universidades, centros universitários e faculdades), mas pelas próprias fundações e institutos, por meio de consultorias, redatores, articulares e mobilizadores da base nacional, relegando a formação dos educadores para a última etapa do processo, quando deveria ter sido a primeira.
Sem participação dos principais interessados e sujeitos – estudantes e professores –, a solução mágica será a oferta de material didático pronto (apostilas), elaborado pelo mercado editorial, comprado com recursos públicos da União, estados e municípios, que as escolas e professores deverão adotar, cabendo ao professor restringir-se a operar e executar um currículo pronto, que será fiscalizado e cobrado pelas avaliações de larga escala e internacional.
A BNCC adotou 10 competências gerais para educação básica (ensino infantil, ensino fundamental e ensino médio), com diferentes níveis de aprofundamento, acompanhadas de inúmeras habilidades, nas diversas áreas do conhecimento, por meio de cinco itinerários formativos, reintroduzindo o debate da noção de competências, enquanto referência conceitual para a elaboração dos currículos da educação básica, garantindo a confluência entre as agendas do governo e do empresariado.
Na terceira versão do texto da BNCC a noção por competências é utilizada “no sentido da mobilização e aplicação de conhecimentos escolares, entendidos de forma ampla (conceitos, procedimentos, valores e atitudes”. As “competências socioemocionais”, que a escola deve desenvolver nos estudantes, é na perspectiva da “resiliência”, que na definição da Ocde, provêm de “um ambiente socioeconômico desfavorável e alcançam altos desempenhos, do ponto de vista dos padrões internacionais”. Ou seja, preparar os jovens para as incertezas do mercado de trabalho e para suportar as frustrações de uma vida onde ele só vale o que consumir.
Por fim, a disputada por fundos públicos move o interesse dos grupos empresariais que atuam no segmento educacional. O MEC e o MC&T possuíam orçamentos bilionários cobiçados. As universidades mobilizam R$ 55 bilhões por ano, enquanto as escolas particulares movimentam 67 bilhões, razão que levou grupos mercantis empresariais a interessar-se pela educação básica. O Fundeb, que mobiliza hoje aproximadamente R$ 140 bilhões desperta interesses e ambições nas parcerias público-privadas tão apregoada por gestores públicos e gestores educacionais. Demais programas de apoio e financiamento estudantil, desde o Fies, Proies ao Prouni, passando pelo mercado do livro didático, pelos fundos da ciência e tecnologia, despertam a cobiça destes grupos que passam pelo controle de todo processo educacional, do planejamento a oferta.
Com esta BNCC e o “novo” ensino médio, a educação deixa de ser concebida como direito dos cidadãos brasileiros e passa a ser encarada como um serviço a ser precificado e contabilizado. A palavra de ordem são parceiras público-provadas. Na educação infantil há 1000 creches em privatização e, no ensino superior, com 75% das matriculas nas IES privadas, o Future-se empurra as universidades públicas para gestão das Organizações Sociais (OS). Este é o resultado do processo que se iniciou em 2014. Esta foi uma das razões das mobilizações dos estudantes na primavera secundarista em 2016: “Educação não é mercadoria”. Concordar, reproduzir ou omitir-se frente à subordinação ao mercado econômica e a lógica empresarial significa colaborar com a desconstrução do futuro dos jovens e do próprio país. Muitos não estão refletindo e acabam por fortalecer as concepções e propostas da Ocde, das fundações, institutos e consultorias educacionais de interesse privado e particular. Pelo direito a educação e por uma escola pública com condições e qualidade!
Gabriel Grabowski, filósofo, doutor em Educação, professor e pesquisador, integra a equipe de colunistas do Extra Classe desde janeiro de 2017. Escreve mensalmente sobre questões da dinâmica no meio educacional.