MOVIMENTO

Lula externa o que está no imaginário de muitos de nós, afirma coletivo de judeus

Integrado por professores, educadores, ativistas e empreendedores, o Coletivo Vozes Judaicas por Libertação elaborou manifesto em defesa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 20 de fevereiro de 2024
Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de Abertura da 37º Cúpula da União Africana, na Etiópia

Foto: Ricardo Stuckert / PR

Não é uma guerra entre soldados e soldados. É uma guerra entre um exército altamente preparado e mulheres e crianças”, lamentou Lula em entrevista coletiva, no domingo, 18, na Etiópia

Foto: Ricardo Stuckert / PR

O Coletivo Vozes Judaicas por Libertação afirma que a dura crítica de Lula à ação militar israelense em entrevista na Etiópia no último domingo, 18, aponta que “a contradição de o povo judaico ser ora vítima e agora algoz é palpável, tenebrosa e desalentadora”.

“Lula externou o que está no imaginário de muitos de nós”, expressam os judeus em manifesto. E concluem: “Apoiamos as colocações do presidente Lula e cobramos que a radicalidade de suas palavras seja colocada em prática”.

A declaração que rendeu à Lula o título de Persona non Grata em Israel dá conta de que o governo sionista se utiliza de um exército extremamente bem preparado para massacrar “mulheres e crianças” e que isto guarda similaridades com o início do morticínio de judeus promovido por Adolf Hitler.

Sem novidade nenhuma

A escalada da crise diplomática que, na realidade, foi considerada em meios diplomáticos como uma nuvem de fumaça para a impopularidade de Netanyahu, se dá com bases em um contexto que não apresenta nenhuma novidade.

Não é de hoje que ações de sionistas extremistas têm sido consideradas muito próximas do praticado por nazistas na Alemanha no final da década de 1930.

Nos primórdios do estado de Israel, em 1948, um manifesto que contava com a assinatura de Hannah Arendt e Albert Einstein foi publicado no New York Times criticando em tom parecido ao de Lula a postura do partido que, hoje, se transformou no Likud, do atual primeiro ministro israelense.

Há 76 anos, o dito sobre os extremistas da ocasião era que estava sendo criado “um partido político intimamente semelhante na sua organização, métodos, filosofia política e apelo social aos partidos nazi e fascista”.

Na crise humanitária atual promovida em Gaza por Netanyahu, antes mesmo de Lula, outros líderes mundiais traçaram críticas parecidas ao governo de Israel por causa dos ataques a civis na Faixa Gaza.

O presidente francês Emmanuel Macron denunciou a morte de bebês palestinos e o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, chegou a comparar Netanyahu a Hitler.

No entanto, a reação de Israel foi longe de ser a mesma.

A contradição de Israel

Jornalista Gilmar Rodrigues

Foto: Arquivo Pessoal

O que dá o tom nazista para o sionismo é o racismo, o apartheid, que é baseado na raça ou na etnia, afirma Rodrigues

Foto: Arquivo Pessoal

O certo é que passados quatro meses do início do conflito entre Israel e o Hamas, a contabilidade da campanha militar promovida pelas Forças de Israel impressiona.

São números que se aproximam de 25 mil crianças que perderam ao menos um dos pais e mais de dez crianças que são mutiladas por dia, com a perda de uma ou de ambas as pernas na Faixa de Gaza, segundo a Fundação Save the Children.

Se os dados apresentados pela ONG como um dos saldos dos 132 dias da ofensiva israelense estão muito longe do holocausto vivenciado pelo povo judeu, não falta exemplos de que há anos está em curso contra o povo palestino acontecimentos muito similares aos da Alemanha nazista.

São estudantes apedrejados no caminho da escola por serem árabes, lojas de palestinos invadidas e depredadas por colonos judeus na Cisjordânia.

Tudo isto já acontecia no Oriente Médio sob as vistas de governos sionistas, antes da ofensiva das Forças de Defesa de Israel pós ataque do Hamas no dia 7 de outubro de 2023.

Uma realidade que, para muitos, dá legitimidade aos paralelos traçados entre o drama vivenciado hoje na região à Alemanha nazista de Adolf Hitler.

O jornalista Gilmar Rodrigues compartilha dessa opinião. Ele acompanha situação na chamada Faixa de Gaza e Cisjordânia por conta do documentário Campo da Paz que está em produção para contar a história de um time de futebol com adolescentes e a dificuldade do esporte na região.

“Lá, ‘morte aos árabes’ integra até gritos de torcida de futebol”, lamenta Rodrigues.

Transferência forçada e mentalidade racista

“A mentalidade é muito semelhante. O que dá o tom nazista para o sionismo é o racismo, o apartheid, que é baseado na raça ou na etnia”, afirma Rodrigues.

Rodrigues diz que começa pela linguagem e passa pela ideia de retirada de uma população em massa, se referindo ao livro do historiador Nur Masalha, a Expulsão dos Palestinos (Editora Sundermann).

No conceito de “transferência” no pensamento político sionista desenvolvido entre os anos de 1882 a 1948, “os caras já falam em retirada dos palestinos da região antes mesmo do estabelecimento do Estado de Israel. Os termos eram exatamente estes, que era necessário transferir a população árabe-palestina para outro país árabe, preferencialmente para o Iraque, para a Síria ou coisa assim”, registra o jornalista.

É nesse contexto de segregação que se inseriu, na ótica de Rodrigues, as duras críticas de Lula da Silva (PT).

Lojas quebradas, crianças agredidas

Se há 85 anos milícias nazistas se reuniram para invadir e destruir lojas de judeus no que foi conhecida como a Noite dos Cristais na Alemanha e na Áustria, “há pelo menos uns 20 anos colonos armados judeus entram nas lojas dos palestinos, quebram as coisas, fecham as ruas, dentro da Cisjordânia, em áreas que não integram o tratado original de criação do estado de Israel”, observa Rodrigues.

O jornalista teve contato com essa realidade na cidade de Hebrom, considerada pelas Nações Unidas (ONU) como território palestino, mas onde o governo de Israel mantêm militares para a proteção de colonos judeus.

Na localidade, onde por acordo a retirada das tropas israelenses deveria ter sido feito até junho de 1998, mas até hoje não ocorreu, as hostilidades atingem até crianças palestinas que vão para a escolas sob ofensas e até apedrejamento.

“Xingam as crianças com termos tipo ‘árabes porcos’. As impedem de passar. Jogam pedras”, ilustra Rodrigues.

Hostilidades diárias

Gabriel Mathias Soares viveu por três anos em Hebrom quando integrou missões humanitárias do Programa de Acompanhamento Ecuménico do Conselho Mundial de Igrejas na Palestina e em Israel (CMI-EAPPI) e das Equipes Cristãs de Ação pela Paz, agora Equipes e Comunidades de Ação pela Paz (CPT).

Foto: Gabriel Mathias Soares/Arquivo pessoal

No sul de Hebron, na vila de At-Tuwani, soldados israelenses escoltam crianças palestinas sob ameaça constante de agressão de colonos judeus israelenses fanáticos de um posto avançado no bosque de Havat Ma’on. Como os colonos tem quase imunidade, essa escolta foi arranjada por mandato judicial. Mas mesmo assim, soldados muitas vezes se atrasam, não aparecem, ou se recusam a caminhar ao lado das crianças palestinas, seguindo apenas atrás dentro de seu veículo militar, afirma Gabriel Mathias Soares

Foto: Gabriel Mathias Soares/Arquivo pessoal

Gabriel Mathias Soares viveu por três anos em Hebrom quando integrou missões humanitárias do Programa de Acompanhamento Ecuménico do Conselho Mundial de Igrejas na Palestina e em Israel (CMI-Eappi) e das Equipes Cristãs de Ação pela Paz, agora Equipes e Comunidades de Ação pela Paz (CPT).

As hostilidades contra palestinos eram diárias, enfatiza ele que é historiador e hoje reside em Santa Catarina.

“Eu vivi ali, eu conheci as crianças que viviam ali, que eram daquela cidade. Não teve uma, absolutamente nenhuma, que eu nunca vi deixar de ser presa, detida, ou agredida por colonos ou por soldados. O nosso vizinho e outro menino eu vi serem detidos por razões nenhumas, simplesmente detidos, presos”, recorda Soares.

Há casos, lembra, que, “por molecagem”, um ou outro menino jogava pedras nas barreiras feitas por soldados israelenses e toda a comunidade escolar acabava sendo alvo de bombas de efeito moral e gás lacrimogênio.

“As vezes, as escolas eram invadidas por soldados que iam lá para prender crianças; outras vezes, as próprias residências dessas crianças eram invadidas à noite para que elas fossem detidas”, fala o historiador.

A situação de constante ameaça de agressão de colonos judeus contra crianças palestinas rumo à escola chegou ao ponto de soldados israelenses terem que as escoltar no sul de Hebron, na vila de At-Tuwani.

“Como os colonos têm quase imunidade, essa escolta foi arranjada por mandado judicial. Mas mesmo assim, soldados muitas vezes se atrasam, não aparecem, ou se recusam a caminhar ao lado das crianças palestinas, seguindo apenas atrás dentro de seu veículo militar”, conclui Soares.

Confira a íntegra do manifesto do Coletivo Vozes Judaicas por Libertação

Dando um passo além nas contínuas denúncias dos crimes cometidos por Israel contra os palestinos, o presidente Lula causou furor ao fazer uma comparação entre o que ocorre hoje em Gaza e o que Hitler fez com os judeus durante o nazismo.

A comparação entre genocídios é sempre delicada pois a experiência vivenciada por cada povo afetado é inigualável. Cada um representa uma narrativa singular e dolorosa na história das comunidades vitimadas. Logo, não há como estabelecer qualquer hierarquia entre genocídios. É impossível estabelecer uma métrica objetiva para determinar o ‘pior’ genocídio da história. Categorizar historicamente vítimas maiores ou menores é uma perigosa armadilha de reprodução de racismo.

A contradição de o povo judaico ser ora vítima e agora algoz é palpável, tenebrosa e desalentadora. Lula externou o que está no imaginário de muitos de nós. Uma comparação que causa muita dor a judias e judeus de todo mundo, que tiveram as suas vidas cindidas pelo genocídio dos judeus na Europa, e agora veem um crime similar sendo cometido, supostamente em seu nome. Enquanto coletivo de judias e judeus, temos antepassados que foram vítimas do Holocausto nazista, e entendemos que nosso imperativo ético é nos posicionarmos contra o genocídio do povo palestino e contra a utilização da nossa defesa como justificativa.

Se a criação e fundação de um Estado judaico foi uma medida de sobrevivência num mundo sitiado, ela logo se tornou um pesadelo. O Estado de Israel não trouxe emancipação verdadeira aos judeus pois a sua existência é mantida às custas da negação da autodeterminação dos palestinos. As lideranças israelenses seguem promovendo um massacre contra palestinos e ainda ameaçam a vida de judeus e judias em todo o mundo. Israel representa hoje a maior fonte de insegurança para todos os judeus do planeta ao usar nossa identidade como fachada e justificativa para sua campanha de terror.

Por isso, defendemos e acreditamos que as palavras de Lula são de grande importância pois levantam questões relacionadas à urgência da ação, como um chamado definitivo dirigido a todos para agir diante do que ocorre em Gaza neste momento. Frente à incapacidade da ONU e de várias organizações internacionais em conter a violência perpetrada por Israel em Gaza, destaca-se a importância vital da postura demonstrada por líderes internacionais como Lula, que levantam suas vozes contra o que é já considerado por incontáveis especialistas como um genocídio contra o povo palestino.

As palavras têm poder. Se a forma como Lula se expressou na ocasião foi pouco cuidadosa – tropeçando justamente neste ninho de comparações forçadas – sua fala tem o objetivo de atingir a imaginação e provocar uma crise moral sobre Israel. O pedido de impeachment protocolado pelos deputados bolsonaristas é uma medida descabida, assim como as acusações de antissemitismo – cujo real objetivo é deslegitimar o governo e a diplomacia brasileira. Não acreditamos que judeus brasileiros estão em risco por causa de sua declaração.

Apoiamos as colocações do presidente Lula e cobramos que a radicalidade de suas palavras seja colocada em prática. Seria um gesto diplomático de relevância gigantesca romper todas as relações entre o estado brasileiro e Israel, em especial as relações militares que também fortalecem a barbárie em terras brasileiras, com a compra de armas e tecnologias de controle social que são usadas para atingir a vida do povo negro nas favelas. Convocar o embaixador brasileiro em Tel Aviv foi um passo ainda insuficiente nessa direção.

Por fim, convidamos a todas e todos, mas principalmente ao governo brasileiro a atender as demandas do movimento internacional de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), liderado pelas bases da sociedade civil palestina. O povo palestino tem pressa e nossas ações têm poder.” 

NOTA DO EDITOR: O Coletivo Vozes Judaicas por Libertação é integrado, entre outros, pelo professor Bruno Huberman, da PUC-SP; pelo cientista social Gabriel Regensteiner; pela pesquisadora Beatriz Kalichman; pela professora Flávia Odenheimer, das escolas Stance Dual e Fábrica-Escola de Humanidades, de São Paulo; do instrutor Yuri Haasz; pela professora Ully Kotler, da Escola Grão de Chão, de São Paulo; pelo professor André Kohan, do Instituto de Psicologia da Universidade São Paulo; pela articulista Shajar Goldwaser, do The Intercept; pela especialista Juliana Westmann; pela técnica acadêmica da USP Iris Brochsztain; e pela gestora Iara Haasz, coordenadora da Politeia – Escola Democrática Universidade de São Paulo.

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