MOVIMENTO

Aumento dos feminicídios tem a mão do Estado

Por Gilson Camargo / Publicado em 17 de agosto de 2022

Foto: ALRS/ Divulgação

“O relatório da Força Tarefa Contra os Feminicídios é fruto da mobilização e da escuta da sociedade – e aponta o aumento dos feminicídios devido à falta de orçamento público e desestruturação da Rede Lilás”

Foto: ALRS/ Divulgação

Advogada, especialista em direitos humanos e violência política de gênero, Ariane Leitão compõe a assessoria técnica de segurança pública e políticas públicas para as mulheres do parlamento gaúcho e coordena a Força Tarefa de Combate aos Feminicídios da Assembleia Legislativa que expõe a tragédia anunciada do aumento dos feminicídios no Rio Grande do Sul. Autora do livro Tráfico de Mulheres: a exploração sexual no Brasil e a violação aos direitos humanos, Ariane foi secretária estadual de Políticas para as Mulheres do RS durante o governo de Tarso Genro (PT), quando idealizou e implantou a Rede Estadual de Enfrentamento à Violência Doméstica e Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência (Rede Lilás). Essa rede de proteção às mulheres vítimas de violência foi desarticulada nos últimos anos, o que somado aos sucessivos cortes de investimentos em políticas públicas vem pressionando as estatísticas de aumento da violência doméstica no RS – quarto estado em assassinatos de mulheres por sua condição de gênero em 2020, aponta. “Entre as principais razões para o aumento dos feminicídios no estado, a ausência de orçamento público é o que mais salta aos olhos, marcadamente nos últimos três anos. Em 2019, o governo estadual executou pouco mais de R$ 32 mil em políticas para as mulheres”, revela nesta entrevista. “As mulheres estão morrendo sem medida protetiva porque não conseguem acessar os serviços. A rede de proteção foi desmontada no estado”, alerta.

Arte: SSPRS/Divulgação

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Extra Classe – No relatório de 2019 a Força Tarefa já denunciava a desarticulação da rede de apoio no combate à violência doméstica no estado. O que mudou?
Ariane Leitão – No relatório preliminar, fruto da mobilização e da escuta da sociedade, fizemos 12 atividades regionais, ouvindo autoridades e o movimento de mulheres e feministas nas regiões. O retorno foi o diagnóstico de antes da pandemia. Já apontava a falta de orçamento público para as políticas para as mulheres, a ausência de casas de abrigamento e acolhimento para vítimas de violência doméstica, mulheres e crianças, e a desestruturação da Rede Lilás, além do sucateamento dos equipamentos públicos destinados ao atendimento de mulheres e seus dependentes que sofrem com violência. A ausência de orçamento público é o que mais salta aos olhos no ano de 2019 e vai seguir nos anos 2020 e 2021. Naquele ano, o governo estadual executou pouco mais de R$ 32 mil em políticas para as mulheres.

EC – O que representa essa redução no orçamento?
Ariane – A curva é descendente. Considero esse um dos dados mais alarmantes que nós pudemos denunciar no relatório sobre 2021 e divulgado agora. O governo do RS executou nos demais anos, mas são ridículos os valores do orçamento público executado nesta área. E isto reflete exatamente a situação caótica que nós estamos vivendo no RS hoje, com mortes de mulheres de forma muito forte. Não tem um final de semana que não tenha até mais de uma mulher morta e não há retorno nem respostas contundentes do poder público, que vem normalizando as mortes de mulheres em relação à sua condição de gênero. Vem normalizando e banalizando a vida das mulheres e a violência contra a vida das mulheres. Se antes da pandemia a situação era ruim, depois piorou ainda mais. A questão da imposição do isolamento social no ano 2020 faz com que a violência contra as mulheres e as crianças e idosos cresça de forma vertiginosa não só no Brasil mas em todo o mundo.

Arte: ALRS/ Divulgação

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EC – Como o governo federal tem lidado com essa realidade?
Ariane – As políticas específicas de enfrentamento à violência ganharam um caráter de essencialidade através dos organismos de direitos humanos e aqui no Brasil a gente viu um movimento totalmente ao contrário do que o resto do mundo, do que a ONU Mulheres indicou. O governo federal cortou ou contingenciou milhões do orçamento público das mulheres e fez com que os feminicídios crescessem no Brasil, assim como todas as formas de violência contra as mulheres e não apresentou alternativa de enfrentamento a essa situação. Ao contrário, manteve uma postura de estímulo à violência e até mesmo de deboche em relação ao que acontecia com as mulheres e as crianças dentro de casa em virtude do isolamento e da convivência permanente com esses agressores.

EC – Cortou ou contingenciou quanto?
Ariane – Entre janeiro de 2019 e julho de 2021 o governo federal deixou de utilizar R$ 376,4 milhões do que tinha disponível para a execução de políticas para as mulheres, que era R$ 1,1 bilhão. Ou seja, deixou de aplicar um terço dos recursos previstos no orçamento da União, carimbados especificamente para esse conjunto de políticas públicas para as mulheres já autorizado pelo Congresso. O que nós vemos é uma ação deliberada de não só cortar, mas não executar o orçamento público. Esse valor que não foi executado poderia garantir por um ano o pagamento do auxílio emergencial de R$ 375,00 para quase 84 mil mães chefes de famílias. Permitiria construir, equipar e manter funcionando por meio século a Casa da Mulher Brasileira nos moldes em que foi inaugurada no Distrito Federal. Em 2022, o orçamento do governo federal para o combate à violência contra a mulher é o menor desde o início da gestão Bolsonaro: R$ 89 milhões a menos que o orçamento de 2020, um corte de 68%.

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“Não tem um final de semana que não tenha até mais de uma mulher morta e não há retorno nem respostas contundentes do poder público, que vem normalizando as mortes de mulheres em relação à sua condição de gênero”

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EC – Houve subnotificação de violência doméstica na pandemia?
Ariane – Verificamos um crescimento de todas as violências contra as mulheres neste período, ainda que as notificações ao poder público não expressassem isso. Nós sabíamos, as próprias autoridades gaúchas diziam isso. A dificuldade de acesso aos espaços de denúncias em virtude do isolamento e da permanência em casa com os agressores fizeram com que essas notificações, os boletins de ocorrência, caíssem. Mas os números de violência cresceram, ainda que o poder público não tivesse consciência ou a dimensão desses números pelas dificuldades das mulheres chegarem até esses locais. Em 2020 foram 1.350 mulheres vítimas de feminicídio no Brasil e em 81% dos casos os assassinos foram seus companheiros ou ex-companheiros, evidenciando a gravidade do problema da violência dentro de casa.

EC – O que representam os feminicídios não enquadrados?
Ariane – Em 2020, foram registrados 3.913 homicídios no Brasil. Destes, 1.350, ou uma média de 34,5%, foram considerados feminicídios, de acordo com a Lei. Uma parcela de 14,7% dos homicídios femininos foram cometidos pelo parceiro ou ex-parceiro e não foram enquadrados como feminicídio. Em números absolutos, totalizam 377 mulheres. Por isso os números podem ser maiores. Chamamos a atenção também para os homicídios de mulheres registrados como “guerra do tráfico” ou “guerra entre traficantes”, que vêm ocultando cri mes de feminicídio.

EC – Como se dá o recorte racial dos feminicídios?
Ariane – O Anuário de Segurança Pública de 2021 revelou que 61,8% das vítimas de feminicídio em 2020 eram mulheres negras. O feminicídio no Brasil está vinculado à questão racial e a gente abre o relatório de 2020/2021 chamando a atenção não só para o machismo institucional, mas para essa questão do racismo institucional em que as vidas de mulheres e de mulheres negras não são consideradas um tema relevante a ser enfrentado. Não vemos aplicação de orçamento público.

EC – Em média, no RS 40% dos homicídios contra mulheres são feminicídios que têm como autores maridos ou companheiros das vítimas. Por que tantas mulheres estão sendo mortas sem medidas protetivas em um contexto de violência doméstica continuado?
Ariane – O Tribunal de Justiça do RS divulgou que são expedidas 335 medidas protetivas por dia no estado. São 14 por hora. E mesmo assim 90% das mulheres que morreram vítimas de feminicídio não tinham medida protetiva. Em 2020, tivemos 221 homicídios contra mulheres e desses 80 foram feminicídios, ou seja 36% dos casos. O RS foi o quarto estado em números de feminicídios apenas no primeiro semestre daquele ano. Em 2019, foram 255 assassinatos de mulheres, dos quais 97 foram feminicídios (38%). São números relevantes e desconsiderados pelo poder público, porque não há ação efetiva. O que vemos é as autoridades dizerem “denunciem”, mas as mulheres não estão morrendo porque não denunciam.

EC – Por que elas estão morrendo?
Ariane – Porque não existe o serviço público para atendê-las. Porque a Lei Maria da Penha não é cumprida, porque a medida protetiva que ela pede muitas vezes não conta com a rede em funcionamento, que é a Rede Lilás. O desmonte dessa proteção está levando mulheres à morte sem medida protetiva. É porque a credibilidade no serviço público está tão falha, as mulheres estão tão incrédulas de que a Lei Maria da Penha ou que a própria medida protetiva vá protegê-la que elas nem fazem esse pedido. Ou seja, elas nem conseguem chegar até lá. Até porque essa rede não existe. Quando a rede não existe não tem como dizer para a mulher ir denunciar nem analisar por que elas estão sendo mortas dentro de um contexto de violência familiar conhecido.

EC – Qual é a análise possível?
Ariane – A análise é: as mulheres estão morrendo sem medida protetiva porque a rede não funciona e se a rede não funciona as mulheres não conseguem chegar até o serviço público para solicitar essa medida protetiva. O que nós temos no RS hoje são somente os serviços ligados à segurança pública em funcionamento. A delegacia da mulher, a Patrulha Maria da Penha, a polícia civil e Brigada Militar. O restante da rede, que são o Centro de Referência da Mulher, as casas de acolhimento, o deslocamento dessas vítimas em segurança, com transporte específico, o acompanhamento psicológico, jurídico e social dessas famílias, esse restante do serviço simplesmente não existe no RS. Mais do que isso: o pouco que existe vem sendo sucateado e fechado.

Foto: Claudio Fachel/ Palácio Piratini

“A segurança pública é o único espaço de governo que vem trabalhando essa questão das políticas para as mulheres, ou seja, esse governo tem uma política de somente tratar as mulheres a partir de uma perspectiva de segurança pública, depois que a violência já aconteceu”

Foto: Claudio Fachel/ Palácio Piratini

EC – De toda a rede, somente os serviços ligados à segurança pública, como a Patrulha Maria da Penha, funcionam. Por quê?
Ariane – A segurança pública é o único espaço de governo que vem trabalhando essa questão das políticas para as mulheres, ou seja, esse governo tem uma política de somente tratar as mulheres a partir de uma perspectiva de segurança pública, depois que a violência já aconteceu. Nós não somos sujeitas de direitos ou observadas como cidadãs ou merecedoras de políticas públicas que não tenham a ver com violência. Não temos ações vinculadas à educação, trabalho, saúde, geração de renda. A condição das mulheres no governo Eduardo Leite é tratada somente no espaço de segurança pública, a partir de uma condição de violência ou, pior ainda, uma condição de morte. Se não fossem elas, nós não teríamos nenhuma ação do governo gaúcho no que tange à proteção da vida das mulheres. Só que é uma atuação que acontece já na consequência. Não tem prevenção da violência doméstica. São 23 delegacias da mulher desde 2019, a Patrulha Maria da Penha teve um pequeno aumento, com 114 municípios cobertos. Mas falta formação tanto em relação às patrulhas que são um papel da Brigada Militar, quanto à polícia civil, a ausência de formação de mulheres e homens que trabalham nesse sentido, sobretudo mulheres. Há denúncias da atuação de homens atendendo mulheres vítimas de violência, o que é totalmente reprovado, dá errado, não estão recebendo formação, entram num processo de revitimização, violento, que reproduz o machismo institucional, o racismo e a violência estruturais.

EC – Qual é o ponto central da desestruturação da rede de proteção?
Ariane – O desmonte permanente da Rede Lilás, que não é só de atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, mas de enfrentamento a essa violência com ações de prevenção. O Centro Estadual de Referência da Mulher Vânia Araújo, que foi totalmente reformado e  reinaugurado em 2013, é o equipamento público principal  para a organização da Rede Lilás e foi fechado no final de 2021. Inicialmente foi transferido para um buraco, literalmente um buraco, no estacionamento do Centro Administrativo Fernando Ferrari e agora não sabemos onde está. O RS que sempre se orgulhou desse centro, porque ele permaneceu aberto, enfrentando todos os governos, mesmo governos que não tinham essa política para as mulheres como prioridade como foi o caso do Sartori. O governo Leite conseguiu se superar, sendo o pior do último período da história recente em relação à vida das mulheres. Fecha o Centro de Referência, e a partir daí a gente consegue fazer esse diagnóstico de uma forma mais pontual, ou seja, o desmonte permanente da Rede Lilás, culminando com o fechamento do Centro de Referência da Mulher, onde as vítimas de violência são atendidas e encaminhadas para os demais serviços, inclusive mais do que a própria Delegacia da Mulher, porque dali ela poderia ser encaminhada para todos os serviços da rede.

EC – Não há controle social?
Ariane – O governo inviabilizou a eleição do Conselho Estadual da Mulher, portanto, o controle social não está sendo feito no que tange às políticas para as mulheres. Nos parece muito adequado para um governo que não aplica o recurso público em política para as mulheres não ter exatamente o organismo que faria esta fiscalização como está assegurado no direito constitucional. Estamos em agosto do último ano do governo Leite e não temos o Conselho Estadual das Mulheres em funcionamento.

EC – O perfil das vítimas de feminicídio mostrado no relatório remete a uma série de implicações sociais decorrentes desses crimes. Por exemplo, 69,4% das mulheres que foram mortas por seus companheiros tinham entre 18 e 49 anos de idade e 66,3% tinham filhos. Como ficam os órfãos do feminicídios?
Ariane – É um número muito grande de crianças e adolescentes que ficam órfãos nesse contexto de feminicídios. No RS, em 2021, 129 crianças e adolescentes ficaram órfãos de mãe e 15 ficaram órfãos de mãe e pai, o que é resultante dessa tragédia do feminicídio. Essa parcela da população que, assim como suas mães não foram enxergadas como sujeitos de direitos ao não terem sua vida protegida, as crianças não contam com nenhum apoio do poder público. Não temos conhecimento de qualquer ação que o poder público faça para o atendimento dessas crianças, que por extensão também são vítimas. Uma situação calamitosa, extremamente delicada, porque envolve a vida de crianças e adolescentes pelas quais o Estado e a sociedade como um todo são responsáveis. Não temos respostas efetivas nem mesmo dos órgãos de controle, que são o Ministério Público e o próprio Tribunal de Contas, mas sobretudo o MP que atua na defesa dos direitos das crianças que não podem solicitar defensoria pública. Existem dois projetos de lei específicos tramitando na ALRS e na Câmara Federal: o PL 356/2021, do deputado Fernando Marroni (PT), que institui a política estadual de proteção e atenção integral aos órfãos do feminicídio; e o PL 976/2022, da deputada  Maria do Rosário (PT) que institui pensão especial a crianças e adolescentes órfãos de feminicídio.

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