A mulher encarcerada é condenada duas vezes, pela justiça e ao abandono
Foto: Cláudio Fachel/Palácio Piratini
Foto: Cláudio Fachel/Palácio Piratini
Era por volta das 10 horas de domingo do dia 28 de maio. A equipe realizou o trajeto Porto Alegre – Guaíba, cidade da região metropolitana, pela BR-290 através da ponte móvel. O caminho é de muita vegetação e trechos com vista para o Lago Guaíba, cartão postal da cidade. Do carro é possível ver barcos em docas e terrenos com acesso direto à água, poucos prédios e também muitas casas precárias de madeira.
Após 30 minutos, o carro atravessa a rodovia, e segue pela Estrada Municipal Elzo Macedo, uma rua de chão batido cercada por mato. Da janela se vê uma construção estadual em andamento, casas, árvores e descampados.
Uma virada à direita e a maior penitenciária feminina do estado se apresenta. “Aqui vai ser difícil conseguir motorista para voltar”, respondeu o condutor do veículo de aplicativo, depois de perguntarmos sobre se seria tranquilo a volta, da mesma forma.
NESTA REPORTAGEM
Domingo é um dos dias de visitas para as 315 mulheres que cumprem pena na Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba (PEFG). Por volta das 12h30 conhecemos o homem que pediu para não ser identificado e que chamaremos de Pedro. Ele veio de carro de Alvorada visitar a esposa, que cumpre pena nesta instituição. Assim como 46% das presas gaúchas, a mulher dele responde pelo crime de tráfico de drogas.
No Brasil, segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública, são 54% o percentual de mulheres encarceradas pelo mesmo motivo. Ao longo dos últimos dez meses, ele diz ser um dos poucos a fazer este trajeto todo domingo.
“Como que eu vou te falar, na galeria dela são 100 presas, vamos botar que 90 não ganham visita […]. No começo, quando comecei a vir ver ela, de marido na galeria era só eu. Um baita pátio lá dentro, era eu com ela, e mais duas detentas só com uma mãe. Nem todo mundo ganha visita”, afirma Pedro.
De acordo com o companheiro, realizar visitas íntimas à mulher na PEFG não é difícil. “São três quartos divididos, aí tu chega ali e dá pra se trancar. É no mesmo dia da visita. No caso do Central era por horário, mas aqui não, porque são poucas visitas. Aí é bem mais acessível. Lá (no Central) o fluxo é muito grande”.
O depoimento dele bate com os dados que a reportagem obteve da Susepe, a partir da Lei de Acesso à Informação (LAI), sobre a quantidade de visitas gerais e íntimas das casas penitenciárias Feminina de Guaíba e Cadeia Pública de Porto Alegre (CPPA), totalmente masculina, as mais populosas do RS. Apesar de não terem detalhado os tipos de visita, como o solicitado, os dados diferem muito. No ano de 2022, cada homem preso do Central recebeu em média 24 visitas, ou seja, duas por mês.
Já na PEFG, no mesmo ano, foram apenas oito visitas por detenta, em média. Ou seja, não chegando a nem uma por mês. Em 2021, o número de visitas era ainda menor, em torno de três por detenta. Os homens, portanto, recebem quatro vezes mais visitas do que as mulheres encarceradas, se comparados os dados dos dois presídios.
Foto: Paola De Bettio
Foto: Paola De Bettio
Restrições
Ao nosso lado, um homem de poucas palavras fumava um cigarro. Perguntamos se ele estava esperando sua vez de entrar, mas não. Disse que estava ali para acompanhar a esposa, que visitava uma sobrinha, presa recentemente.
Outra visitante era uma mulher jovem que aparentava ter em torno de 20 anos. Ela desceu do carro sozinha e vestia blusa vermelha e calça cinza. As cores das roupas permitidas aos visitantes estão anunciadas nos avisos dispostos na entrada do portão de visitas da PEFG, que contêm ainda os dias e horários de visitação e o que é permitido levar para as detentas.
“Vai fazer uns três meses que eu tento vir visitar, e por diversos motivos, o acesso não é tão simples assim. Toda vez tem alguma coisa que impede, hoje foi a vestimenta, a cor da minha calça”, conta Fábio (nome fictício), de 47 anos. Ele tenta visitar a namorada desde que ela foi transferida para a Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, por envolvimento com drogas.
A calça de moletom cinza mescla era muito próxima do branco – cor proibida – e o blusão cinza chumbo era escuro demais. Fábio desabafa e diz sentir que essa é uma segunda pena imposta à companheira. Ele lembra, inclusive, que ganhou a calça que usava quando também esteve preso e a mãe dele ia visitá-lo com uma calça da mesma cor.
Fábio chegou à Penitenciária quase junto conosco e da mulher jovem de blusa vermelha citada. Mas, diferentemente dela, acabou entregando somente a sacola que tinha em mãos, sem a possibilidade de passar o dia de visita.
Naquele domingo, diferente de outros, ele foi de Uber, mas acabou não atingindo o objetivo principal. Ele acredita que sofre preconceito por não aparentar ter uma boa condição de vida. “É bem complicado para as pessoas terem acesso aqui. Quem tem carro, um poder aquisitivo mais alto, talvez consiga”, comenta sobre suas tentativas frustradas nesses últimos tempos.
Fábio conta que mora na zona sul de Porto Alegre e chega a levar quase seis horas com os trajetos de ida e volta. Normalmente, ele utiliza até três ônibus para chegar lá. Ainda assim, parte do trajeto precisa fazer a pé.
“Hoje eu gastei R$60 só para chegar até aqui, de Uber. E eu nem sei como vou voltar, porque não tem como chamar um Uber aqui porque eu não tenho crédito no telefone. Então, eu vou ter que caminhar – acho que uns 2km – até o terminal (de Guaíba) para poder pegar um ônibus e ir até o centro de Porto Alegre, para poder, no centro, pegar um até em casa, na Zona Sul”, comenta Fábio.
Ele conta que quando faz o trajeto de ônibus, precisa sair de casa às 5 horas para chegar na penitenciária perto das 9 horas, mesmo morando na cidade ao lado. “Tudo isso sem conseguir fazer o que eu vim fazer. Eu faço a metade, né? Eu deixo a sacola para ela, então, não consigo fazer tudo”, lamenta.
O contato com a namorada antes da prisão era praticamente diário, mas hoje se tornou sem perspectivas, virado em saudade e desafios. Nós perguntamos para ele se o envio de cartas é permitido na Penitenciária Estadual de Guaíba, e ele nos mostra uma que trazia no bolso.
“Só se eu conseguisse entrar. Eu até trouxe, de um dos filhos dela, que tem 12 anos. Tentei deixar ali, mas eles não deixaram porque é só na visita. Ela ia chorar muito, e sempre diz que a criança é tudo para ela.”
“Às vezes parece que tá tudo errado, eu insisto, mas eu vou continuar insistindo, vou vencer, não vou desistir”. Ele conta que é a única pessoa entre os relacionamentos da companheira que tenta contato. Ela já não tem os pais vivos, os irmãos ajudaram nos trâmites legais mas não tentaram visitá-la – pelo que ele sabe -, nem os outros filhos e o pai deles.
Foto: Paola De Bettio
A mulher privada de liberdade sofre o abandono afetivo
Dentro do sistema carcerário, as mulheres sofrem constantemente com o abandono, seja por parte da sociedade, das famílias ou do Estado.
“A gente sempre diz que a mulher tem um sofrimento em dobro quando vai presa, porque muitas vezes há uma desestruturação total da família após a prisão dela. Na maioria dessas vezes a mulher perde a guarda dos filhos por não ter familiares que tenham condições de manter essas crianças com ela”, explica a Defensora Pública Cintia Luzzatto, dirigente do Núcleo de Defesa em Execução Penal da Defensoria Pública (NUDEP) do Estado do Rio Grande do Sul.
A fala da defensora converge com a de Pedro, o primeiro companheiro com quem conversamos na entrada da Penitenciária de Guaíba. “Desde que eu venho aqui, nunca vi a fila até a guarita. Nunca vi. Dia de criança é menos ainda. No dia de criança eu venho e entrego a sacola pra ela (companheira)”, conta.
A defensora aponta a grande diferença que existe entre homens e mulheres encarcerados: “Quando é a mulher que vai presa, muitas vezes, ela é abandonada tanto pelo companheiro, que não se dedica a ir visitá-la e dar o apoio que ela necessita no cárcere, bem como pelo resto da família que geralmente não tem nem condições de ir lá para levar os mantimentos ou mesmo de levar essas crianças para visitá-la, para manter o vínculo”, complementa.
Na segunda reportagem da série sobre encarceramento feminino, a situação da mulher encarcerada é vista de dentro da penitenciária. Para isso, conta com o relato de uma detenta, da diretora da PEFG e da assistente social do presídio.
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Esta reportagem foi realizada na disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da Universidade do Vale do Rio do Sinos – Unisinos, sob a supervisão da professora Luciana Kraemer, no primeiro semestre de 2023.
O Extra Classe e a Unisinos firmaram Termo de Cooperação, no início de 2022, para a veiculação no jornal de reportagens produzidas pelos estudantes da disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da instituição e o acompanhamento dos estudantes na produção das edições mensais impressas do Extra Classe.
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