Resolução do CNJ cria atalho para a carreira da magistratura e precariza o trabalho nos tribunais
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A Resolução 439/2022 assinada no início de janeiro deste ano pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Luiz Fux, vem sendo criticada por servidores do judiciário, advogados trabalhistas e magistrados. A medida autoriza a criação de programas de “residência judiciária”, a exemplo do que ocorre na área médica, em todos os tribunais do país – de primeira e segunda instâncias. E institui a prestação de serviços judiciários por pessoas estranhas aos quadros de carreira dos tribunais.
“Esse tema não é um problema nem do judiciário nem dos servidores do poder judiciário, mas uma questão que deve ser debatida por toda a sociedade. A resolução do CNJ é um processo de desregulamentação e porteira aberta que acaba afetando de morte o concurso público que é uma conquista de toda a sociedade”, aponta Marcelo Carlini, da direção do Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal e Ministério Público da União (Sintrajufe-RS).
A medida, já em regulamentação nos tribunais regionais do trabalho de Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, autoriza os tribunais a criarem programas de “residência judiciária”.
Diferente de programas de estágio, a modalidade é voltada para advogados de fora do quadro de carreira dos tribunais que estejam cursando especialização, mestrado, doutorado, pós-graduação nos cinco anos que antecederem à admissão.
“Descrita de forma genérica e abrangente, a norma abre a possibilidade para que graduados em Direito exerçam diversas atividades hoje a cargo de servidores e servidoras, como assistente de juiz, por exemplo”, destaca o Sintrajufe-RS.
“O conteúdo da Resolução 439/2022 do CNJ, que autoriza os tribunais a criarem programas de “residência judiciária”, não pode ser dissociado daquilo que hoje vivemos como realidade no serviço público. Em especial no Poder Judiciário”, alerta a magistrada do Trabalho do TRT4, Valdete Souto Severo – Leia artigo.
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Assessores biônicos
Para o desembargador Luiz Alberto de Vargas, do Tribunal do Trabalho da 4ª Região (Rio Grande do Sul) a resolução é “muito preocupante”, pois inicialmente institui recrutamento de pessoal para trabalhar em alta função pública à margem do concurso público previsto na Constituição.
“Em segundo lugar, a função de assessoramento ao juiz é das mais importantes no trabalho judiciário e deve ser reservada a funcionário de carreira, assegurando a melhor prestação jurisdicional ao cidadão – e não como atividade precarizada e temporária, não gerando vínculo de qualquer natureza com a Administração Pública, como prevê a Resolução”, destaca.
Para o magistrado, sequer há uma clara delimitação do que esses “assessores biônicos” poderão fazer, “nem do que poderá ser deles exigido, restando uma indefinição grave do seu âmbito de atuação que poderá levar a sérios questionamentos sobre a validade jurídica de seus atos, sobre a utilidade de seu aproveitamento e, mesmo, sobre eventual responsabilização do administrador por desvio de finalidade”.
“Apesar do nome pomposo, a mencionada “Residência Jurídica” nada tem a ver com uma suposta equivalência com a Residência Médica, já que não se constata qualquer real preocupação com formação profissional, tratando-se, aparentemente, de mais uma proposta de redução de gastos com pessoal administrativo na conhecida linha de desmonte dos serviços públicos no país iniciada a partir da Emenda Constitucional n. 95”, acrescenta Vargas.
O concurso público é uma ferramenta fundamental para a garantia dos princípios constitucionais da impessoalidade e da isonomia, acrescenta o advogado trabalhista Henrique Stefanello Teixeira, do escritório Cainelli Advogados, credenciado pelo Sinpro/RS, e assessor jurídico da Federação dos Trabalhadores em Educação (FeteeSul). “São os concursos que estabelecem como regra a atuação imparcial e objetiva da administração pública na busca pelo interesse público, sendo vedados discriminações e privilégios. Ao permitir a contratação de pessoal sem o crivo do certame público, por um lado precariza-se a relação de trabalho do servidor, ao substituí-lo por pessoal mais barato e com menos direitos, e por outro, permite que critérios subjetivos e circunstanciais sejam determinantes para o ingresso de trabalhadores ao poder judiciário”, alerta.
Precarização do trabalho
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“Essa questão dos estagiários de pós-graduação é mais uma burla ao concurso público e segue o caminho da precarização do serviço público. Já enfrentamos no MP do RS e em diversos estados a proliferação de cargos comissionados, terceirização em larga escala e agora essa nova modalidade de superestagiário, à qual somos absolutamente contrários”, destaca Jodar Pedroso Prates, presidente do Sindicato dos Servidores do Ministério Público (Simpe/RS). Ele informa que a Associação (Ansemp) e a Federação (Fenamp) estão mobilizando os servidores pela revogação da medida.
“Na última década, o serviço público como um todo no país está sofrendo um profundo processo de “estagiarização” nos quadros de trabalhadores e trabalhadoras. A gente vê um aumento muito grande no número de estagiários tanto de ensino médio quanto de nível superior, principalmente no âmbito dos tribunais. É um processo constante de precarização do trabalho”, observa Emanuel Dall’Bello, Diretor de Comunicação do Sindicato dos Servidores da Justiça do RS (SindjusRS) e Coordenador Regional Sul da Federação Nacional dos trabalhadores do Judiciário nos Estados (Fenajud).
O que deveria ser uma importante janela de oportunidades para o ingresso dos jovens na carreira jurídica e espaço de aprendizado se transformou em substituição de mão de obra, ressalta.
“Na prática, essas pessoas estão assumindo o lugar de servidores concursados”, explica Emanuel. Ao mesmo tempo, as categorias encolheram devido à redução de vagas e dos concursos públicos.
“No TJRS, até o final de 2021 estávamos com uma defasagem de mais de 35% no quadro de servidores e essa defasagem tem sido suprida com o aumento exponencial do número de estagiários. Essa nova realidade, a questão da residência judiciária, é mais uma modalidade que se soma ao processo de precarização desses trabalhadores também, porque eles vão atuar com uma remuneração muito abaixo do que deveriam receber. É uma forma de ingresso muito precarizada, considerando a sobrecarga imensa de trabalho nos tribunais”, alerta o dirigente.
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Déficit de concursados
De acordo com o despacho de Fux, a residência jurídica “consiste no treinamento em serviço, abrangendo ensino, pesquisa e extensão, bem como o auxílio prático aos magistrados e servidores do Poder Judiciário no desempenho de suas atribuições institucionais”.
O programa prevê admissão por processo seletivo público para residente com uma jornada de até 30 horas semanais, pelo período de até 36 meses. A resolução não estabelece limite para o número de ingressos, que receberão uma bolsa de auxílio.
Uma pesquisa do sindicato dos servidores sobre residências jurídicas já existentes no país, em Procuradorias-Gerais de Municípios e Defensorias Públicas, mostra que os valores das bolsas ficam em torno de R$ 2,5 mil.
No Mato Grosso do Sul, o judiciário trabalhista já abriu processo de seleção e até divulgou o nome dos magistrados que serão contemplados com assessores especiais que receberão bolsa-auxílio de R$ 2 mil por mês e vale-transporte por seis meses: Déa Marisa Brandão Cubel Yule, Júlio César Bebber e Flávio da Costa Higa.
Para os servidores do judiciário, a resolução burla a carreira ao criar um atalho para pessoas de fora do quadro exercerem atividades exclusivas da categoria. Uma ironia, considerando que os concursos públicos estão congelados e há um déficit de servidores nos tribunais, aponta Carlini.
“Só no RS, no TRT da 4ª Região, são mais de 400 vagas não preenchidas de servidores, resultado da Emenda Constitucional 95/2016 que suspendeu ou criou uma série de obstáculos para a contratações, substituição de aposentados, concursos. Essa medida vem como uma espécie de substituição de mão de obra dos servidores por uma outra forma de ingresso, extremamente mais barata”.
Ele destaca que os servidores do judiciário entram na carreira exclusivamente a partir de concurso público. Na residência, o ingresso é a partir de uma seleção simples. “O TRT da 24ª Região, por exemplo, estabeleceu a bolsa desse residente num valor que é seis vezes menor que a remuneração de ingresso de um servidor com a mesma qualificação via concurso público”, compara.
Avaliação subjetiva
Foto: Sintrajufe-RS
No TRT da 3ª Região (Minas Gerais) a regulamentação da norma estabelece que a avaliação de desempenho do residente quanto às atividades práticas será por critérios de “interesse”, “eficiência”, “zelo e dedicação”, relacionamento interpessoal e disciplina”. Os critérios ficam muito aquém do que é exigido dos servidores de carreira de acordo com a Lei 8112, do regime jurídico único dos servidores.
“Esses critérios de avaliação, ao contrário do que ocorre com o servidor de carreira concursado, são absolutamente subjetivos. Entra sem concurso público, com salário baixo, precarizado, e ainda fica submetido a uma avaliação subjetiva daquele magistrado que é seu orientador”, aponta o dirigente do Sintrajufe-RS. “Como esse residente será tratado quando prestar concurso para juiz. Ele terá alguma vantagem especial?”, provoca.
Para o advogado e dirigente do Sintrajufe-RS, há uma diferença subjetiva para além da questão da produtividade nos quesitos dos servidores. No caso dos residentes, cobrar produtividade seria uma confissão, pois assim seriam enquadrados como mão de obra. “Essa subjetividade, numa avaliação direta de um “orientador” vincula para além da relação de ensino. Se aproxima de uma espécie de funcionário do juiz”, interpreta.