GERAL

Bicheiros e contraventores investem em cassinos on-line e apostas esportivas

No Brasil, sites de apostas esportivas viram empresas de fachada para a exploração de jogos e caça-níqueis, um negócio milionário de cartas marcadas que atua na ilegalidade e não paga impostos
Por Pedro Nakamura / Publicado em 16 de março de 2023

Foto: Igor Sperotto

No centro de Porto Alegre, casas de apostas são fachadas para a exploração da jogatina por contraventores

Foto: Igor Sperotto

As apostas esportivas foram legalizadas em 2018, mas sua exploração no país segue proibida, pois não houve regulamentação. Contraventores brasileiros aproveitaram esse limbo jurídico para montar sites de jogos de azar a partir de empresas de fachada no exterior e investir em casas de apostas e caça-níqueis de calçada. O resultado dessa combinação é um negócio altamente lucrativo e livre de tributação. O aceno para a legalização também atraiu casas estrangeiras e reduziu a fatia de lucros das apostas irregulares, como o jogo do bicho. Em 2022, a indústria dos jogos de azar movimentou perto de R$ 20 bilhões no Brasil, enquanto os sites de apostas esportivas faturaram três vezes esse valor

Uma tabacaria na Rua dos Andradas, próxima à Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre, estampa na fachada a logomarca do site de apostas esportivas Imperial Bet. Nos fundos, atrás de uma porta discreta, há caça-níqueis.

À frente da loja, um banner exibe os 25 animais do jogo do bicho e a listagem dos resultados do dia da Loteria da Sorte, mantida por um cartel de bicheiros ao menos desde os anos 1990. Anúncios semelhantes dessa mesma zooteca se espalham por lotéricas, bares e cassinos clandestinos da cidade inteira.

NESTA REPORTAGEM
O grupo responsável pela Loteria da Sorte reunia 11 bicheiros em 1992, segundo uma reportagem do jornal Zero Hora, que, à época, revelou como operava o cartel da contravenção no Rio Grande do Sul.

Em 2002, uma denúncia do Ministério Público afirmou que seis homens seriam os principais banqueiros do bicho gaúcho, formando uma espécie de segunda geração do mesmo “Grupo da Sorte”.

Na ocasião, a ação, que acusou 17 pessoas de explorarem a jogatina, foi julgada improcedente por falta de provas.

Agora, o Extra Classe identificou que, desses acusados, ao menos dois podem estar na ativa no mesmo cartel, e que a contravenção ligada à zooteca em Porto Alegre diversificou seu negócio para as apostas esportivas.

Esse tipo de exploração é proibido, assim como outros jogos de azar, apesar da modalidade ser legal no país desde 2018.

Isso porque, até hoje, o governo federal não criou regras para a operação de casas de apostas esportivas em território nacional, o que inclui as bancas espalhadas por Porto Alegre.

“Está legalizado, mas não regulamentado, então não há operador autorizado”, explica o advogado Roberto Brasil, sócio do escritório Brasil Fernandes e autor do livro Direito das Loterias no Brasil (Ed. Fórum, 2020, 118 p.). “Então, não se pode operar apostas esportivas no país, com exceção daqueles hospedados na internet e no exterior, e que não paguem prêmios a territórios nacionais”, avalia.

O próprio site Imperial Bet teria sido “montado pelos bicheiros”, segundo um cambista ouvido na condição de anonimato. A reportagem visitou mais de 10 bancas da capital entre a zona norte e o Centro Histórico.

Um dos apontadores explicou que enviava os recibos de apostas do bicho via WhatsApp para um contato chamado “Ernani Loterias”, mesmo nome de uma lotérica de Alvorada administrada por Ernani Luiz Paz, apontado como um dos principais banqueiros do bicho de Porto Alegre em 1992 e pelo MP na década seguinte. O empresário não foi localizado para comentários, já que o CNPJ de sua empresa foi baixado junto à Receita Federal em 2018.

Foto: Igor Sperotto

Sites de apostas esportivas são chamariz para máquinas caça-níqueis escondidas nos fundos de estabelecimentos no centro da capital

Foto: Igor Sperotto

Vanderlei Nogueira, o VGN, que também foi investigado como bicheiro pelas autoridades no início dos anos 2000 e absolvido, é outro que seguiria na ativa.

Hoje, Nogueira é acusado pela Polícia Civil de lavar dinheiro da contravenção usando uma agência de empresariamento de jogadores de futebol, que negocia atletas com clubes como Grêmio e Juventude.

A apuração corre em sigilo, mas Nogueira não esconde suas ligações nas redes sociais. No LinkedIn, mantém um perfil antigo em que se apresenta como diretor do Resultado Certo, site já desativado que exibia sorteios da zooteca – e que foi indicado por um dos cambistas ouvidos para a consulta de resultados na internet.

Em 2020, Nogueira também se associou ao site de apostas esportivas Estadium, o qual patrocinou os clubes Ceará (CE), Vila Nova (GO), Paraná (PR) e Santa Cruz (PE) ao longo daquele ano.

VGN até abriu uma banca na Zona Norte com o mesmo nome do site, decorada com o logotipo da casa de apostas em um banner, porém o espaço logo foi fechado pela Polícia Civil. Contatado por meio de sua empresa de agenciamento de jogadores, a “BCFV Assessoria em Esportes”, o empresário não deu retorno.

Contravenção on-line 

Além da Imperial Bet, mais sites atuam em bancas da capital. Mantidos por um contraventor que opera uma tabacaria na Rua Júlio de Castilhos, os sites Sullbet e Esportes Betsul são a opção esportiva em várias lojas do Centro Histórico, que também exploram bingos, caça-níqueis e oferecem a zooteca do Grupo da Sorte.

O Extra Classe visitou três desses pontos em janeiro, mas identificou poucos apostadores. “Muita gente que jogava no bicho ou em máquina na rua, hoje joga nas apostas esportivas e na internet”, explica o jornalista Magnho José, presidente do Instituto Jogo Legal (IJL) e editor do Boletim de Notícias Lotéricas (BNL Data). Apesar da ilegalidade, o setor empregava 450 mil pessoas em 2022, de acordo com um levantamento do IJL/BNL Data.

Após a visita a cassinos clandestinos da capital gaúcha, a reportagem apurou que os caça-níqueis usados na cidade, da marca taiwanesa AIC Games, custam entre R$ 4,2 mil e R$ 5,3 mil cada. Isso requer um investimento de cerca de R$ 36 mil para se operar oito máquinas, que é o mínimo necessário para manter o negócio.

As informações sobre os custos dos equipamentos clandestinos foram repassadas por um vendedor indicado pela própria AIC como representante da empresa no Brasil.

Paraíso fiscal contraventores

Foto: Igor Sperotto

A Loteria da Sorte é mantida por um cartel de bicheiros em Porto Alegre desde os anos 1990

Foto: Igor Sperotto

Já um cassino on-line que oferece apostas esportivas, por outro lado, pode custar uma entrada de R$ 8 mil com mensalidades a partir de R$ 1 mil. Esse é o preço, por exemplo, cobrado pela XSA, empresa da Paraíba que oferta a “criação de bancas de jogos on-line”.

Já a Imperial Bet e Sullbet contratam uma plataforma pernambucana do mesmo ramo, chamada SGA.

A companhia foi contatada pela reportagem, que se passou por uma pessoa interessada em pesquisar preços no mercado de plataformas de apostas. Uma consultora explicou que a empresa, a qual seria registrada para operar jogos de azar na ilha de Curaçao, um paraíso fiscal no Caribe, “sublicencia” sua autorização aos clientes, de modo que eles possam operar on-line no Brasil como se fossem sediados no estrangeiro.

O Extra Classe, no entanto, verificou que não há autorização concedida por licenciadores da ilha aos clientes da SGA que operam na capital.

A empresa oferece até sistemas para bilhetes e cambistas, o que é ilegal. “(Oferecemos sistemas para) a rua, que é bilhete e cambista, e on-line, que é 100% on-line, com cassino e cassino ao vivo”, explicou a consultora.

“O ideal para aquele que se associa à SGA é dispor de um capital inicial de pelo menos R$ 150 mil, considerando a taxa de adesão, as despesas com marketing, divulgação, capital de giro, etc.”

Contatada mais tarde por e-mail para se posicionar sobre a regularidade da operação da SGA, a consultora não respondeu. Os sites Imperial Bet e Sullbet também não retornaram aos pedidos de informações. contraventores, contraventores, contraventores, contraventores, contraventores, contraventores, contraventores

Faturamento bilionário de contraventores

A entrada da contravenção nas “bets” ocorre em meio à perda de espaço para grandes sites já consolidados no exterior, como Bet365 e Betsson, os quais ocuparam o mercado nacional de apostas esportivas a partir de 2018.

“Não sei números por não ser um mercado regulado, mas conheço operadores do jogo do bicho que afirmam categoricamente que o jogador migrou para as apostas esportivas”, diz José.

Na metade de 2022, só 24% dos acessos mensais a casas de jogos iam para operadores brasileiros, ainda que irregulares, de acordo com um levantamento interno de uma casa de apostas europeia obtido pela reportagem.

Conforme estimativas realizadas pelo Instituto Jogo Legal (IJL), só no ano passado, o mercado ilegal de jogo do bicho, bingos e cassinos movimentou em torno de R$ 20 bilhões no Brasil, enquanto as apostas esportivas faturaram por volta de R$ 60 bilhões.

A tendência segue uma curva vista em Portugal desde 2016, após o país legalizar os jogos de azar. Antes ocupado apenas por negócios ilegais, em três anos, 69% do mercado passou para as mãos de operadores autorizados, que até 2021 repassaram quase 400 milhões de euros em tributos aos portugueses.

Atualmente, muitas casas de apostas pagam no Brasil só o IOF, um imposto de 6,86% sobre transações para o exterior. Entre as que operam nas ruas e movimentam capital ilícito, não há tributação. Ou seja, como não existe tributação sobre jogos de azar, somente sobre algumas operações financeiras relacionadas à jogatina, essas casas de apostas atuam no limbo, faturam alto e não pagam impostos.

Foto: Polícia Civil/RS

Em 2020, a Polícia Civil gaúcha preendeu apostas, dinheiro, drogas e armas na capital e na Grande Porto Alegre

Foto: Polícia Civil/RS

Por isso, os sites de apostas se tornaram uma diversificação atraente para contraventores por trazerem menor custo e risco, além de dificultarem investigações por causa do atual vácuo regulatório. É um mercado que cresce sem fiscalização ou restrições à publicidade, já que a atividade foi legalizada sem ser regulada.

Em 2018, uma lei estipulou o limite de quatro anos para a criação de regras para a operação de casas de apostas. O então presidente do Brasil, Jair Bolsonaro (PL), no entanto, desrespeitou esse prazo legal, que venceu em dezembro de 2022.

Além disso, o governo anterior atrasou para o governo Lula o debate legislativo sobre a legalização dos jogos de azar.

Uma proposta chegou a ser aprovada pela Câmara Federal no começo de 2022, mas estacionou, aguardando votação no Senado após Bolsonaro afirmar que vetaria o projeto.

Nos bastidores da Câmara, a proposta de regulamentação dos jogos de azar enfrenta a resistência do lobby da bancada evangélica e tem, naturalmente, o endosso de empresários e contraventores. A iniciativa, contudo, além de gerar tributos e formalizar empregos, pode criar uma espécie de anistia.

“O que possivelmente vai acontecer é que muitas condenações por crimes de lavagem de capitais da contravenção serão extintas porque a lei penal retroage em benefício do réu”, explica um delegado da Polícia Civil que investiga os contraventores em Porto Alegre.

STF deve julgar constitucionalidade dos jogos de azar

Além do projeto de lei aprovado na Câmara e que está parado no Senado, uma ação aguarda julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2016 e também pode descriminalizar os jogos de azar.

Após o Ministério Público do RS processar por contravenção Guilherme Tarigo Heinz, de São Leopoldo, um tribunal de segunda instância no estado decidiu que o artigo da Lei de Contravenções Penais que proíbe a prática, promulgado em 1946, seria inconstitucional por afrontar a liberdade individual e o direito à livre iniciativa.

O MP recorreu e o caso chegou ao STF (Recurso Extraordinário 966177) e, desde então, enquanto a decisão não sai, processos penais sobre a exploração de jogos de azar estão suspensos no país, o que gerava uma fila de 4,69 mil ações só em abril de 2022, segundo o BNL Data.

“Os integrantes de uma turma recursal mudaram um entendimento tradicional na matéria e consideraram que a contravenção penal de explorar jogos de azar é atípica, ou seja, não haveria fundamento constitucional para considerá-la crime”, explica o promotor João Pedro Xavier, da Procuradoria de Recursos do MPRS.

“O que está parado hoje são os recursos que tratam disso, o que não quer dizer que, se houver um cassino clandestino, a polícia não possa ir lá prender o responsável e recolher tudo”, esclarece.

Foto: Polícia Civil/RS

Governo Lula enviará à Casa Civil proposta de tributação de jogos, medida que deve arrecadar até R$ 6 bi por ano

Foto: Polícia Civil/RS

Tributação dos jogos

A jogatina no Brasil foi proibida pela primeira vez em 1946, por meio do Decreto-Lei 9.215 baixado pelo então presidente Eurico Gaspar Dutra, por “levar o ser humano à degradação”. O chefe do Executivo, no entanto, estaria mais preocupado com assuntos domésticos do que com a integridade dos brasileiros, já que a pressão vinha da primeira-dama, Carmela Dutra, do ministro da Justiça, Carlos Luz, e do arcebispo dom Jayme Câmara.

O decreto de Dutra acabou com a noitada de 71 cassinos, entre os quais o Copacabana Palace e o Cassino da Urca, no Rio de Janeiro, por onde desfilavam estrelas como Carmen Miranda, Ary Barroso e Josephine Baker.

Passados mais de 70 anos, o ex-presidente Michel Temer (MDB), ao deixar o governo, resolveu legalizar as apostas esportivas on-line.

A Lei 13.756/2018, que dispõe sobre o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) e sobre a destinação do produto da arrecadação das loterias, sancionada no final de 2018, estipulou prazo até 12 de dezembro do ano passado para a regulamentação das casas de apostas. O prazo não foi cumprido por Bolsonaro, o que deu margem para a proliferação do jogo, especialmente os sites de apostas sediados em paraísos fiscais.

No início de março, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que enviará proposta de regulamentação e tributação dos jogos para a Casa Civil. A medida deve arrecadar até R$ 6 bilhões anuais de impostos.

O Projeto de Lei 442/1991, de autoria do deputado federal Renato Vianna (PMDB/SC), prevê a criação do Sistema Nacional de Jogos e Apostas, legalizando cassinos, bingos, videobingos, jogos on-line, corridas de cavalos e o jogo do bicho.

A proposta, forjada por pressão dos lobbies de grupos estrangeiros proprietários de resorts e dos empresários interessados na exploração de cassinos, bingos e jogo do bicho, já foi aprovada na Câmara Federal, passou por comissões no Congresso Nacional e está parada no Senado.

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