GERAL

Criança não é bicho de estimação

Referência da literatura infanto-juvenil, Tatiana Belinky revisita a infância, fala de livros e da influência de Monteiro Lobato
Por Gilson Camargo / Publicado em 27 de julho de 2010

Tatiana Belinky

Foto: Acervo Pessoal

Foto: Acervo Pessoal

Nascida em São Petersburgo, na Rússia, em 18 de março de 1919, a escritora Tatiana Belinky viveu apenas dez anos na sua terra natal. Em 1929, durante o colapso provocado pela quebra da Bolsa de Nova York, fugindo das guerras civis que assolavam a então União Soviética e da perseguição aos judeus, ela migrou para o Brasil com o pai, Aron, a mãe, Rosa, e o irmão menor, Benjamin. Na pouca bagagem que a família conseguiu embarcar no navio, Tatiana conseguiu incluir o exemplar de um livro de contos de um dos seus autores russos preferidos. Vieram parar em São Paulo. No novo mundo, o primeiro texto que lhe caiu nas mãos foi uma fábula de Monteiro Lobato, Jeca Tatuzinho. Tatiana queria escrever livros de contos, como faziam seus conterrâneos Turguenev, Tchecov, Gogol e Tolstói, “sem a moral da história que tanto subestima a inteligência dos leitores”. Queria fazer teatro, recontar do seu jeito as histórias e fábulas dos irmãos Grimm lidas pelo pai e que ela reinventava para entreter o irmão mais novo. Ficou encantada com o escritor brasileiro e seu Sítio do Picapau Amarelo. Lobato a acompanharia por toda sua vida literária repleta de imaginação e rebeldia – que inclui a adaptação do Sítio para a televisão durante 12 anos. Aos 91 anos, Tatiana Belinky tem mais de 200 livros publicados, entre antologias, traduções e adaptações livres de clássicos infanto-juvenis, teatro, crônicas, poesia, ficção e didáticos. Coral dos bichos, Limeriques, O grande rabanete, Di-versos russos são seus livros mais celebrados, além do terceiro volume de Um Caldeirão de Poemas, que está no prelo. “Monteiro Lobato inventou a literatura infanto-juvenil com humor e contestação. Sacou de cara que criança não é bichinho de estimação”, diz a autora nesta entrevista repleta de memórias, concedida ao Extra Classe, por telefone, de seu apartamento em São Paulo.

Extra Classe – Como a senhora conheceu o Monteiro Lobato?
Tatiana Belinky – As coisas sempre me procuraram. Elas me acham. Monteiro Lobato, eu nem sabia quem era. Foi quando eu cheguei ao Brasil, tinha pouco mais de dez anos de idade, não tinha nem casa permanente, que caiu na minha mão um texto, Jeca Tatuzinho. Ele escrevera para um folheto de propaganda do laboratório Fontoura, a pedido do dono, Cândido Fontoura, seu grande amigo. Como eu já falava três línguas, me ajeitei com o português com muita facilidade. Sabia que ele era um senhor escritor. O que eu não sabia era a influência e importância que esse Monteiro Lobato teria na minha vida. Começou logo com ele, por incrível que pareça! Meu primeiro encontro com Lobato foi a leitura desse texto. O seguinte foi com a literatura dele, que eu engoli, devorei, li e reli; meus dois irmãos menores que eu, já falecidos, também. Nos tornamos grandes leitores e admiradores de sua obra sem conhecê-lo pessoalmente.

EC – Até o dia em que ele foi à sua casa…
Tatiana
– O telefone tocou lá em casa: “aí é a casa do Gouveia”? Confirmei e quis saber quem queria falar com ele. “É o Monteiro Lobato”, disse, com a voz seca. “E aqui é o Rei George”, eu respondi, pois pensei que fosse um trote. Ele riu e confirmou, “aqui é o Lobato mesmo. Eu li um artigo do Júlio Gouveia sobre literatura infantil e gostaria de conhecer esse Júlio. Posso ir aí”? Ele nos procurou. Tocou a campainha e o Júlio atendeu. Lobato olhou pra ele, apontou o dedo e disse: “na tua idade, eu tinha a tua cara”. Acontece que quando levei o Júlio lá em casa para apresentar aos meus pais, quem atendeu foi meu pai. Ele abriu a porta e, igualzinho ao Lobato, apontou o dedo e disse para mim: “então, achou um com a minha cara…”. E eles eram o mesmo tipo, sobrancelha espessa, um tipo brasileiro, meio português. A visita foi um ótimo bate-papo. Meu irmão, que na época tinha 11 anos, custou a acreditar que estava diante do escritor, ficou paralisado, não queria mais largar a mão do Lobato. Quando ele conseguiu se desvencilhar daquele aperto de mão interminável, Benjamin, o meu irmãozinho, levantou a mão direita e disse: “nunca mais eu lavo esta mão”. Nos conhecemos naquela ocasião e depois disso fizemos muitos contatos, estivemos na casa dele, um contato muito interessante, muito rico. E eu, que quando pequena queria ser bruxa, depois que conheci o Sítio do Picapau Amarelo e o Monteiro Lobato resolvi ser a Emília, porque ela é muito mais bruxa que as bruxas tradicionais. Enfim, eu não sabia o quanto ela faria parte da minha vida. Ainda sou bruxa, mas sou Emília um pouquinho também.

EC – Antes de adaptar o Sítio para a tevê, vocês faziam teatro. Como foi essa experiência?

"Antes de Lobato, não existia literatura para crianças. Ele inventou aquele jeito de escrever e colocou todo seu humor e contestação na Emília. Ela era o próprio Lobato"

Foto: Acervo Pessoal

“Antes de Lobato, não existia literatura para crianças. Ele inventou aquele jeito de escrever e colocou todo seu humor e contestação na Emília. Ela era o próprio Lobato”

Foto: Acervo Pessoal

Tatiana – Começamos a atuar no Teatro Municipal, encenando peças que depois percorriam as outras salas, iam até o subúrbio, escolas, hospitais. Quando encenamos Os três ursos, adaptação da fábula americana, veio o convite para fazer um programa fixo na TV Tupi. A emissora tinha programas de auditório, brincadeiras, mas nada para crianças. O diretor da Tupi assistiu nosso teatro e nos convidou. Nosso grupo, que era amador, semiamador digamos, devia simplesmente fazer na tevê o que fazíamos no palco, e ele se encarregava da transmissão. Já havia três câmeras, enfim, um meio-cinema. Primeiro fizemos um pequeno programa chamado Fábulas Animadas, claro, sem a moral da fábula, porque eu não gostava. Desde pequena eu achava um desaforo. O que é isso? Me contam uma boa história e querem me dizer o que eu tenho que entender… Depois a Tupi pediu um programa brasileiro, num formato maior. Imediatamente Júlio e eu concluímos que tinha de ser O Sítio do Picapau Amarelo. Os primeiros dois capítulos quem escreveu foi o Júlio: A pílula falante e O casamento da Emília. Ele não queria contrato, por que sabia o que estava fazendo e eu também, a gente se entendia muitíssimo bem. Júlio, que era diretor artístico e apresentador, fez duas exigências: nada de contrato nem intervalo comercial, porque ele, como psicólogo, educador, achava inadequado contar uma boa história e interromper na melhor parte para promover um produto qualquer. Na televisão, aceitaram tudo. O programa durou 13 anos.

EC – Vocês produziram outros programas teatrais?
Tatiana – O teleteatro ao vivo, que começou com o Sítio, logo já tinha mais três programas. Um era o que chamaria hoje de minissérie, um romance em 60 capítulos, duas vezes por semana. Outro era um programão de domingo, no começo chamado Era uma vez, que era teatro mesmo, de uma hora e meia, duas horas. Nossos programas tinham um ibope altíssimo. Mas logo começou a chover telefonemas de pais pedindo pra trocar o horário, das 10h para a tarde de domingo, porque de manhã as crianças não queriam ir pra missa. Mudamos para as 16h e o nome virou Teatro para a juventude.

EC – Qual a importância de Lobato para a literatura infantil?

"Meu pai era muito da poesia, era performático. Lia e interpretava como um artista. Por isso, eu cresci no meio de poesia e vivo assim até hoje. Na poesia, eu nado de braçadas"

Foto: Acervo Pessoal

“Meu pai era muito da poesia, era performático. Lia e interpretava como um artista. Por isso, eu cresci no meio de poesia e vivo assim até hoje. Na poesia, eu nado de braçadas”

Foto: Acervo Pessoal

Tatiana – Ele foi o precursor da literatura infantil, porque sacou de cara que criança não é bichinho de estimação, que criança é gente e gente muito inteligente, muito digna de respeito, com muito senso de humor. Então ele começou a escrever daquele jeito, como ninguém escrevia para criança, nem lá fora. O humor dele e a contestação, enfim, toda a atitude do Lobato, ele pôs em O Sítio do Picapau Amarelo e, principalmente, na Emília. Aliás, uma vez ele contou que quando estava “tipando” como ele dizia, escrevendo à máquina as histórias do Sítio, a Emília ficava ao lado dele dando palpites, fazendo sugestões, criticando. Até que um dia o Lobato perguntou, “mas afinal de contas, quem é você?”, e a Emília respondeu: “Eu? Eu sou a Independência ou Morte”. A Emília era isso. Ela era o próprio Monteiro Lobato.

EC – Que outros autores a influenciaram?
Tatiana – Sou um feixe de influências. De Lobato, de fábulas, como de tudo que nos cerca, que eu já li, reli e esqueci. São muitas e de muitas origens, ocidentais, americanas e até chinesas e japonesas. Já tinha lido muita coisa aos dez anos de idade, um monte de livros, tinha diários, desde os oito tinha um caderno onde anotava minhas coisas. Já escrevia. Não havia muito livro para criança, mas havia boa literatura de bons escritores. Eu mesma lia poesia de autores que não escreviam para crianças, mas para criança que lê desde pequena, que conversa sobre livros em casa, não é problema pegar livro e ler. Sabe que a única coisa que eu trouxe comigo como imigrante foi um livro que tenho até hoje? É um livro de contos de Turguenev, tenho até hoje ele todo esfrangalhado. Tchekov, dos grandes russos, é o meu preferido desde menina, porque escreveu de tudo para todo mundo. É o inventor da short story, anterior a todos os outros, foi ele quem inaugurou o gênero, e com tamanha variedade de assuntos e tamanha sensibilidade. Eu traduzi muita coisa dele, principalmente os contos curtos, porque o meu cavalo-de-batalha sempre foi o público jovem, crianças e adolescentes.

ECA senhora sempre teve acesso aos livros, especialmente por influência do seu pai, que era médico e gostava de poesia. Como foi a sua infância na Rússia?

"História com moral é vacina contra a leitura. Não precisa explicar para a criança o que ela deve ou não entender. Deixe que ela resolva sozinha. Dê oportunidades"

Foto: Acervo Pessoal

“História com moral é vacina contra a leitura. Não precisa explicar para a criança o que ela deve ou não entender. Deixe que ela resolva sozinha. Dê oportunidades”

Foto: Acervo Pessoal

Tatiana – Minha casa era cheia de livros. Nunca vi nem avô nem avó sem um livro na mão, pai, mãe… Pouco fui à escola na Rússia. Frequentei uma escola alemã e li, claro, poesias, alguma coisa em alemão, mas a maior parte em russo. Meu pai era muito da poesia, era performático. Lia e interpretava como um artista. Então eu me criei no meio de poesia e vivo assim até hoje. Na poesia, eu nado de braçadas.

EC – Como foi a sua adaptação à escola em um país estranho?
Tatiana – Primeiro fomos a uma escola alemã, achando que seria mais fácil, porque já falávamos alemão, mas lá a disciplina era muito rígida, batiam nos meninos. Já a Mackenzie, escola americana, de presbiterianos, era o paraíso, onde fizemos o primário para adaptação. Mas eu cheguei lá e fui correndo para a biblioteca escolher um livro e levar pra casa. Entreguei para a bibliotecária e ela disse que aquele não era um livro para menina. Eu não entendi. Então existem livros próprios para meninos e outros para meninas? Fui pra casa e me queixei pro meu pai, contei o episódio e perguntei o que devia fazer. “Mas você não precisa fazer nada, eu é que vou fazer”, ele disse. Ele, que era poliglota, escreveu dois bilhetes em português, um para a diretora e outro para a bibliotecária: “Minha filha Tatiana está autorizada a tirar da biblioteca o que ela quiser”. Levei triunfante. Causei grande escândalo. Nada, era apenas literatura. Fiquei livre para retirar meus livros e famosa por causa desse modernismo dos meus pais.

EC – Desde pequena, queria escrever para crianças e jovens. Por quê?
Tatiana – Quando eu era criança, comecei muito cedo a ter contato com o livro e depois porque me ‘aconteceu’ um irmãozinho quando eu já tinha dez anos. Ele me ensinou sobre a criança mais do que muito livro e mais do que muito professor. Minha mãe trabalhava, era também dona de casa, mas ocupadíssima. E eu, desde trocar fraldas e dar mamadeira, era quem cuidava, levava para a escola. Com meu irmão do meio, três anos mais novo, também aprendi muita coisa, mas era de igual pra igual. Já o pequeno foi uma enciclopédia pra mim. Ele era muito interessante, muito esperto, inteligente, aliás, como são todas as crianças.

EC – O que é indispensável numa história para crianças?
Tatiana – O que é muito importante para um livro ser interessante é a emoção. Aliás, a minha bisneta, que agora já tem filho e tudo, quando tinha sete anos disse: “Sabe Tati, livro que não dá pra rir, não dá pra chorar, não dá pra ter raiva, não dá pra ter medo, não tem graça”. Falou e disse. Eu quero emoção. Qualquer emoção. Tem que ter estética, que não quer dizer bonitinho, pode ser até feio. Ética, obviamente, e humor, que eu acho indispensável, mas que é um conceito elástico. Há humor bom, humor mau, humor fino, grotesco, tem até humor afrobrasileiro…

EC – Em uma época com tanta oferta de informação, o que os pais devem fazer para estimular as crianças para a leitura?
Tatiana – Não venha dizer o que pode ou não, o que é bom e o que é mau. História com moral é vacina contra a leitura. Deixe a criança resolver sozinha, dê oportunidades. Exponha o livro à criança, leve à biblioteca, a criança fica louca na Bienal. E também leia em casa. Você pode ler para a criança, mas, ao ver livros pela casa e ver o pai, a mãe, os avós, ou qualquer um lendo para si mesmo, ela fica curiosa. Nunca diga para a criança não ser curiosa. Incentive a curiosidade e não tente enganar, porque criança não é boba, quando você começa a enrolar, ela percebe. Não precisa dizer que mentira é pecado mortal. Mas não minta com coisas bobas, com enrolação.

EC – Que parcela cabe à escola na formação de leitores?
Tatiana – Para começo de conversa, os professores têm que aprender a ler. Muitos dos que mandam as crianças ler, eles mesmo não leem. Agora já está melhor, mais civilizado, mas eu vi escolas com armário fechado à chave para a criança não pegar no livro. A melhor coisa é não mandar a criança ler. Pare de mandar. Encolha esse dedo. Existe um livro que eu gosto de recomendar, não ganho nada com isso a não ser o prazer de recomendar, porque ele é muito bom. É um livro francês, se chama Como um romance (de Daniel Pennac, tradução de Lenny Werneck, Ed. Rocco, 1997), compacto, inteligente e com senso de humor. A primeira frase é: “O verbo ler não comporta imperativos”. Assim como os outros dois verbos, amar e sonhar. São coisas que não se manda alguém fazer. No fim, o autor cria uma espécie de dez mandamentos sobre a leitura, a criança e o jovem. E o primeiro mandamento é: Se não quiser, não leia.

 

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