Cyberbullying na escola é caso de polícia e oportunidade pedagógica
Arte: Gerada por IA/Canva
Arte: Gerada por IA/Canva
Com o avanço das tecnologias de Inteligência Artificial (IA) instituições de ensino em todo o planeta buscam formas de lidar com os benefícios e ameaças da novidade da moda.
Se algumas já começam a usar a IA – mais especificamente o ChatGPT – em sala de aula e têm obtido lições valiosas para o melhor uso pedagógico da ferramenta, outras em situações como a recente disseminação de imagens forjadas para simular a nudez de pelo menos 16 alunas de um tradicional colégio de Porto Alegre, criam um clima de apreensão.
Assim como na capital gaúcha, casos expressivos já ocorreram no Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte são a versão digital do já conhecido bullying e classificado como cyberbullying. Ambos, desde 15 de janeiro deste ano, passaram a ser crimes na legislação brasileira. Trata-se da lei 14.811/2024 sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que apresenta importantes alterações no âmbito criminal como a inclusão dos delitos de bullying e cyberbullying no Código Penal. (leia no final da matéria)
Escola e família contra o cyberbullying
Para a psicóloga, psicopedagoga e neuropsicóloga Luciana Garcia, além do bullying e o cyberbullying serem encarados como crime, “existe um papel muito importante, tanto da escola como da família”.
No mesmo sentido, Oswaldo Dalpiaz, presidente do Sindicado do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinepe/RS), ao falar sobre o ocorrido na última semana em Porto Alegre, é categórico: “O que nós vimos aí foi um fato demasiadamente desumano”, sentencia.
A presidente da Comissão de Educação da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (ALRS), Sofia Cavedon (PT) vê o acontecimento por dois vetores, prevenção e criminal, e anuncia que no início de abril o colegiado deverá iniciar uma reflexão para fomentar políticas públicas que tratem o problema.
Educação sem limites
Pesquisadora do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Luciana entende que é fundamental que tanto a família quanto o ambiente escolar forneçam “uma educação e uma formação emocional e social para que as nossas crianças e adolescentes, desde lá da educação infantil, sejam formadas baseadas na autoconfiança, na promoção da autoestima, na empatia, na cooperação com os demais”, declara.
Para Dalpiaz, são os atos humanizadores que contribuirão para pelo menos mitigar o mau uso da tecnologia em casos como o da escola de Porto Alegre e de outros que têm proliferado em instituições de ensino mundo afora.
“Essas crianças, esses adolescentes (responsáveis pelas deepfakes pornográficas), têm acompanhamento educativo por parte dos pais? Se não tem, eles se sentem livres para fazer o que bem entendem. E a imaginação de um jovem, um adolescente dessa idade é ilimitada. Faz isso por maldade? Eu acho que não. Faz isso por curiosidade, por inovação, para se mostrar, para ser melhor, para apresentar-se melhor de todos. Mas termina nisso. Infelizmente, quem preparou tudo isso, cometeu um ato infracional muito sério. Porque mexeu com a integridade e com a saúde dessas meninas”, explica Dalpiaz.
Desligar o piloto automático
Já para a deputada Sofia, se o primeiro caminho a ser buscado é o da prevenção pela educação, com diretrizes respaldadas na legislação, o que chama de vetor criminal não pode ser desconsiderado.
É por isso que a parlamentar informa que, para a reunião que a Comissão de Educação está formatando, os órgãos de segurança do estado (Polícia Civil e Brigada Militar) serão chamadas para participar.
“Tem aí outra dimensão que é as escolas, as direções, os professores, saberem como agir, o que devem fazer, para quem pedir ajuda, denunciar. Afinal, como no caso recente de Porto Alegre que está em investigação, a gente está tratando com menores de idade, com criança, adolescente, que têm seus direitos”, informa Sofia.
Ela entende que “a meninada precisa saber que isso é crime, que tem previsão legal, que tem imputação de responsabilidade, que tem redes que os manipulam, redes que os insuflam”, pontua.
Na questão da prevenção, em paralelo, a necessidade do que a deputada denomina de “desligar o piloto automático dessa meninada”, com mais orientação.
“Eles fazem no oba-oba, no vamo-vamo, na mobilização de grupos. A gente tem que desligar esse piloto automático e fazer eles refletirem, saberem que estão incorrendo em crime, no caso de menores são atos infracionais. Eles e as famílias”, assevera.
O bullying e o cyberbullying como crimes
A lei 14.811/2024 traz mudanças no âmbito criminal como a inclusão dos delitos de bullying e cyberbullying no Código Penal.
Em uma realidade que coloca o Brasil como o segundo país que registra o maior número de casos de bullying e cyberbullying , atrás apenas da Índia, conforme pesquisa do Instituto Ipsos, a nova legislação reforça a proteção a crianças e adolescentes.
Nos casos em que as condutas não constituam um delito mais grave, no mínimo uma multa é prevista.
Se o crime for cometido por meios virtuais, o cyberbullying, além de multa, o criminoso pode pegar de dois até quatro anos de prisão.
A nova regra também prevê agravantes se o bullying for cometido em grupo, se houver uso de armas ou se houver outros crimes violentos.
Os crimes que estão no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) passam a ser considerados hediondos, sem direito a fiança ou perdão da pena.
Estão também na mesma categoria o auxílio ou incentivo ao suicídio ou automutilação, usando a internet, tráfico de crianças e adolescentes e sequestro de pessoas menores de 18 anos.
Com a nova lei, sobe para até oito anos de prisão a pena para quem exibe ou facilita a exibição de pornografia infantil, como o que ocorreu na escola particular de Porto Alegre onde alunos usaram IA para montar vídeos falsos de colegas nuas.
No entanto, por se tratar de menores de idade que cometeram o ilícito, a situação que ainda está sob investigação é considerada ato infracional equiparado a crime.
Assim, adolescentes respondem por meio de medidas socioeducativas nas varas da Infância e Juventude. Já no caso de crianças, os responsáveis legais são processados.
No entanto, a punição pode endurecer quando tudo acontece no ambiente virtual, o cyberbullying.
Caso a intimidação ocorra por meio da Internet, nas redes sociais, aplicativos ou jogos, a pena segundo o advogado e diretor do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec), André Lucas Fernandes, ela é “espelhada” no caso de adolescentes infratores.
“Não necessariamente a penalização vai ser a mesma de adultos, mas o juiz da Vara da Criança e Adolescente vai levar em conta os dados do caso concreto”, explica Fernandes.
Nesse caso, as medidas socioeducativas previstas pelo ECA que envolvem desde a advertência, reparação de dano, serviço para a comunidade, chega também à liberdade assistida, a semiliberdade e internação.
“Aí, quando a gente fala em internação, seria meio que um paralelo a essa ideia de reclusão, né? E sim, então, portanto você vê que a lei foi bastante rígida nesse sentido”, reflete o dirigente do IP.rec.
Ele de certa forma lamenta. “Se você dá uma olhada sobre quem capitaneou a lei no Congresso, como a senadora Damares Alves (Republicanos/DF), se vê aí uma vertente mais punitivista. Acho que é uma crítica que pode ser feita”, conclui Fernandes.
O endurecimento, no entanto tem uma lógica. Para especialistas no tema, o cyberbullying é mais danoso do que o bullying presencial.
Concretamente, não é possível que a vítima se distancie fisicamente da intimidação que se torna mais constante no ambiente virtual.
Unesco
Enquanto a regulamentação do uso das ferramentas de IA ainda é discutida por governos em vários países e regiões do mundo, a Unesco se antecipou e publicou em setembro de 2023 a primeira Orientação Global sobre IA Gerativa na Educação e Pesquisa, documento disponível apenas em inglês.
A Unesco orienta um limite de idade de 13 anos para o uso de ferramentas de IA em sala de aula e demanda para que os governos invistam na formação de professores para o uso da tecnologia.
Apesar das vantagens e oportunidades destacadas nas suas recomendações, a agência da ONU salienta diversas preocupações.
Uma dela é o despreparo dos sistemas educacionais. A Unesco entende que o setor não está capacitado adequadamente para a integração ética e pedagógica das ferramentas de IA em rápida evolução.
Em grande parte, isso se dá pela ausência de regulamentações nacionais, na avaliação da entidade.
Em junho de 2023, a Unesco alertou que o uso de IA generativa nas escolas estava entrando em um ritmo muito rápido e sem debate público, verificações ou regulamentações.
Uma publicação recente, registrou a agência, denunciou que o lançamento de um novo livro didático requer mais autorizações do que o uso de ferramentas de IA generativa em sala de aula.
Segundo Gabriela Buarque, coordenadora no Grupo de Trabalho de Inteligência Artificial e Novas Tecnologias no Laboratório de Políticas Públicas e Internet (Lapin), a publicação é até agora o principal instrumento que versa sobre a temática.
“Na verdade, por ser um assunto muito novo, as autoridades, tanto no Brasil como nos outros países, ainda estão investigando como usar adequadamente a ferramenta, solucionar problemas, ou, pelo menos, mitigar os riscos.
Gabriela que é advogada, pesquisadora e Secretária-Geral da Comissão de Inovação, Tecnologia e Proteção de Dados da OAB de Alagoas, lembra que já existem respostas jurídicas para casos como a proliferação de deepfakes pornográficas nas instituições de ensino do Brasil.
O que diz a legislação brasileira até agora
Código Penal
Artigo 146 – Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais: Pena – multa, se a conduta não constituir crime mais grave.
Intimidação sistemática virtual (cyberbullying)
Parágrafo único. Se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real: Pena – reclusão, de 2 (dois) anos a 4 (quatro) anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave.
Artigo 216-B – Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa.
Estatuto da Criança e do Adolescente
Art. 241-C – Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica, por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, possui ou armazena o material produzido na forma do caput deste artigo.