EDUCAÇÃO

O que levou o PNE à morte?

Entre os motivos apresentados por especialistas faltaram monitoramento, financiamento e a situação política do país atrapalhou
Por Débora Ertel / Publicado em 19 de setembro de 2023

O que levou o PNE à morte

Foto: Arte de Fabio Edy Alves sobre foto de Igor Sperotto

Foto: Arte de Fabio Edy Alves sobre foto de Igor Sperotto

Há nove meses de vencer, o Plano Nacional de Educação (PNE) agoniza à espera do fim. Aliás, na avaliação de quem acompanha o desempenho do cumprimento do PNE, a sensação é de que o plano já morreu. Em junho deste ano, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação divulgou o oitavo balanço do PNE: 86% das diretrizes e metas são descumpridas, e 45% delas estão piores do que em anos anteriores. O cenário de abandono mostra que apenas quatro dos 38 dispositivos progridem em ritmo suficiente para o seu cumprimento no prazo, ou seja, junho de 2024.

Das 20 metas, 13 estão em retrocesso. Têm piores resultados a universalização do atendimento à educação básica, a oferta da educação em tempo integral, a erradicação do analfabetismo, a valorização dos profissionais do magistério, o acesso ao ensino superior e a ampliação do investimento público.

O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) é encarregado de publicar relatórios bienais do PNE por meio do Painel de Monitoramento. No último, no final do ano de 2022, o Inep afirmou que “é forçoso reconhecer que a execução do atual PNE é insuficiente para o alcance das metas até o ano de 2024, encontrando-se, aproximadamente, na metade do caminho ideal”.

O cenário nacional se replica nos estados e, no Rio Grande do Sul, não é diferente. A Comissão Especial da Assembleia Legislativa, criada para monitorar e verificar o cumprimento do Plano Estadual de Educação (PEE), publicado em junho de 2025, constatou que nos pampas também são 13 metas descumpridas.

O relatório, entregue à Secretaria Estadual de Educação (Seduc), mostra que, dos 56 indicadores criados pelo Inep, apenas sete foram alcançados pela educação gaúcha: dois deles de forma parcial e três com possibilidade de serem atingidos até 2025. Quatro indicadores não foram monitorados por insuficiência de dados, e 32, cujo prazo ainda não findou, têm o alcance improvável por conta do ritmo de desenvolvimento apresentado na série histórica analisada.

A Seduc, questionada se monitora o cumprimento do PEE, informa que as metas dos Planos Estadual e Nacional de Educação são monitoradas, elaboradas e implementadas de forma conjunta entre estados e municípios.

Em junho de 2018, a Seduc havia apresentado à Comissão Coordenadora de Monitoramento do PEE uma plataforma digital que seria utilizada para controle, avaliação e observação do Plano. No entanto, a ferramenta não entrou em operação. O que está disponível atualmente no site da Seduc, com data de publicação em junho deste ano, é um monitoramento em nível de rede estadual, sem dados globais do Rio Grande do Sul.

Mas o que explica o fracasso do PNE? O que deu errado de 2014 para cá?

O que levou o PNE à morte

Foto: Igor Sperotto

Gabriel Grabowski, pesquisador

Foto: Igor Sperotto

O doutor em Educação e pesquisador Gabriel Grabowski e a gerente de Políticas Educacionais do Todos pela Educação, Ana Gardennya Linard, têm na ponta da língua as causas da “morte” do PNE. Entre os motivos trazidos pelos especialistas, ambos convergem que faltaram monitoramento, financiamento, e a situação política do país atrapalhou.

Já em 2015, quando tomou posse em outubro, o então ministro da Educação, Aloizio Mercadante, assumiu o cargo admitindo que não seria possível cumprir o PNE. O plano estava vigente havia pouco mais de um ano. A pedra no sapato do MEC era a meta 20, a qual determina investimento de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) na educação até 2024. Infelizmente, Mercadante estava certo. Depois de nove anos do PNE, o PIB investido em educação atualmente é de 5,1%.

O que freou a meta 20 foi a Emenda Constitucional 95, que limitou os gastos do país pelo período de 20 anos, aprovada em 15 de dezembro de 2016. O orçamento da União sofreu cortes e, mais uma vez, a Educação ficou sem recursos.

No ano seguinte, o titular do MEC, Mendonça Filho, já no governo de Michel Temer, mandou embora toda a equipe responsável por dar suporte ao Fórum Nacional da Educação (FNE) e exonerou 14 entidades do grupo de trabalho, substituindo por órgãos ligados ao governo.

Em 2019, o ministro da Educação do governo Jair Bolsonaro, Ricardo Vélez Rodríguez, extinguiu a Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino (Sase), órgão responsável por articular o PNE. Com isso, o monitoramento e a efetivação das metas sofreram outro baque.

Vale lembrar que até o Censo Demográfico de 2020 não pôde ser realizado por conta da pandemia e, depois, teve novos adiamentos por falta de recursos para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), o que também atrapalhou na avaliação do PNE.

Um país que não prioriza a educação, nem segue as leis

Para Grabowski, como popularmente se diz, o “buraco é mais embaixo”. “O Brasil tem um histórico de país que nunca priorizou a educação como política de nação”, dispara. “Somente no século 20 o Brasil começou a pensar em educação, com oferta do ensino técnico em 1919 e criação do MEC em 1934.”

O pesquisador pondera que o país é atrasado em relação ao resto do mundo e tem a cultura de descontinuar projetos conforme os ciclos políticos.

Com o PNE, não foi diferente, e na avaliação de Grabowski, o plano já enfrenta o terceiro ciclo, sendo primeiro com os presidentes Dilma Rousseff e Michel Temer, o segundo com Jair Bolsonaro, e o terceiro, a caminho do fim, com Luiz Inácio Lula da Silva.

Grabowski chama atenção para o período político dos últimos tempos, marcados por reformas e pela crise econômica.

Além disso, ele salienta o fato de o Brasil não levar a sério seus planos, independentemente da área de atuação. Com isso, não há cobrança para que realmente as ações se cumpram.

Sobre essa situação, Ana Gardennya Linard, do Todos pela Educação, faz uma crítica. “Hoje, não se tem uma penalidade em relação a isso. E o não cumprimento diz muito sobre as desigualdades do país que acontecem justamente por não se levar a sério as leis que temos. As leis não são seguidas”, lamenta.

Por conta deste cenário, ela afirma que não há mais como “ressuscitar” o PNE. “O impacto é pago por uma criança que está fora da escola, um jovem que abandona os estudos ou um adolescente que não aprende e não consegue empregos melhores”, retrata.

Projeto de Lei prevê penalização dos governos

Ana Linard comenta sobre o Projeto de Lei 88/2023, do senador Flávio Arns (PSB/PR), que defende uma penalização para os gestores públicos que não cumprirem as metas do PNE. A proposta está em tramitação com a relatoria da Comissão de Educação e Cultura no Senado.

Em audiência pública desta comissão no Senado, em março deste ano, Antonio Lassance, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), denunciou que, desde 2018, o MEC deixou de fazer o monitoramento de atualizações dos dados dos municípios quanto ao cumprimento das metas do PNE.

Segundo Ana, o Tribunal de Contas da União (TCU) prepara uma publicação sobre o cumprimento das metas, documento que deve apresentar um olhar crítico sobre a execução, levantamento que terá também reflexos nos estados, por meio dos tribunais de contas locais.

O último relatório apresentado pelo TCU foi em 2020, quando apontou que as ações eram “incipientes, com baixo nível de governança do MEC na condução de políticas públicas educacionais em prol do atingimento das metas”.

O que levou o PNE à morte

Foto: Acervo/Todos Pela Educação

Ana Gardennya Linard, gerente de Políticas Educacionais do Todos pela Educação

Foto: Acervo/Todos Pela Educação

METAS DO PNE 2014 – 2024 E O QUE ACONTECEU COM ELAS

1 – Universalizar (100%) até 2016 a educação infantil (4 e 5 anos), com cobertura de pelo menos 50% das crianças até 3 anos. (Não cumprida e em retrocesso)

2 – Universalizar o ensino fundamental (6 a 14 anos) e garantir que pelo menos 95% dos alunos o conclua na idade recomendada. (Não cumprida e em retrocesso)

3 – Universalizar até 2016 o atendimento escolar para a população de 15 a 17 anos e elevar a taxa média de matrícula para o ensino médio para 85%. (Não cumprida e em retrocesso)

4 – Universalizar para a população de 4 a 17 anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino. (Não cumprida e com falta de dados)

5 – Alfabetizar todas as crianças, no máximo até o final do 3º ano do ensino fundamental. (Não cumprida e com falta de dados)

6 – Oferecer educação em tempo integral (ETI) em, no mínimo, 50% das escolas públicas, de forma a atender pelo menos a 25% dos alunos da educação básica. (Não cumprida, em retrocesso e com falta de dados)

7 – Fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas. (Não cumprida e em retrocesso)

8 – Elevar a escolaridade média da população de 18 a 29 anos, para alcançar, no mínimo, 12 anos de estudo, para as populações do campo, de menor escolaridade no país e dos 25% mais pobres, e igualar escolaridade média entre negros e não negros. (Não cumprida e em retrocesso)

9 – Elevar a taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais para 93,5% até 2015; erradicar o analfabetismo absoluto; e reduzir em 50% a taxa de analfabetismo funcional. (Não cumprida e em retrocesso)

10 – Oferecer, no mínimo, 25% das matrículas de educação de jovens e adultos (EJA), nos ensinos fundamental e médio, na forma integrada à educação profissional. (Não cumprida)

11 – Triplicar as matrículas da educação profissional técnica (EPT) de nível médio, assegurando a qualidade da oferta e pelo menos 50% da expansão do segmento público. (Parcialmente cumprida)

12 – Elevar a taxa bruta de matrícula (TBM) na educação superior para 50% e a taxa líquida de escolarização (TLE) para 33% da população de 18 a 24 anos, com expansão para, pelo menos, 40% das novas matrículas no segmento público. (Não cumprida e em retrocesso)

13 – Elevar a qualidade da educação superior e ampliar a proporção de mestres e doutores do corpo docente para 75%, com, no mínimo, 35% de doutores. (Parcialmente cumprida e com lacuna de dados)

14 – Elevar gradualmente o número de matrículas na pós-graduação stricto sensu, para atingir 60 mil títulos/ano no mestrado e 25 mil/ano no doutorado. (Não cumprida e em retrocesso)

15 – Garantir, em regime de colaboração dos entes federativos, que os professores de educação básica possuam formação específica de nível superior. (Não cumprida)

16 – Formar, em nível de pós-graduação, 50% dos professores da educação básica e garantir formação continuada para 100%. (Parcialmente cumprida e com lacuna de dados)

17 – Valorizar profissionais das redes públicas de educação básica, com equiparação do rendimento médio ao dos demais profissionais com escolaridade equivalente até 2020. (Não cumprida e em retrocesso)

18 – Assegurar, em dois anos, planos de carreira para os profissionais da educação básica e superior públicas. Para os profissionais da educação básica, adotar como referência o Piso Salarial Nacional Profissional. (Não cumprida, em retrocesso e com lacuna de dados)

19 – Assegurar, em dois anos, as condições para uma gestão democrática da educação nas escolas públicas. (Não cumprida, em retrocesso e com lacuna de dados)

20 – Ampliar o investimento em educação pública para o mínimo de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) do país no quinto ano da lei (que instituiu o PNE) e para 10% no final do decênio (2024). (Não cumprida e em retrocesso)

Mas se o cenário atual não é nada animador, o que vem pela frente?

O que levou o PNE à morte

Foto: Acervo Pessoal/Divulgação

Angelita Lucas, do Comitê Gaúcho da CNDE

Foto: Acervo Pessoal/Divulgação

A construção do novo PNE 2024-2034 já está começando. O Fórum Nacional de Educação no mês de julho divulgou o regimento geral e as orientações para a organização das etapas estadual e municipal. O calendário prevê que as cidades promovam suas conferências até 29 de outubro e o estado, até 19 de novembro. A etapa nacional está marcada de 28 a 31 de janeiro.

Para que o futuro seja diferente, a representante do Comitê Gaúcho da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE) Angelita Lucas defende que a primeira ação seja a revogação do teto de gastos para a educação.

“Porque o último PNE tinha tudo para ser implementado, mas esbarrou pela falta de insumos para alcançar a qualidade”, analisa. “Caso contrário, será de novo uma carta de intenções”, alerta.

Angelita, ainda, destaca a falta de participação da sociedade nas cobranças das metas e na participação dos debates sobre qual educação o país quer.

Mas a educadora também pondera que a população se sente desanimada, pois não há cumprimento das políticas públicas que deveriam fazer parte de plano de Estado e não de um partido, sujeito à mudança quando há troca de governo.

“A sociedade precisa ter o retorno deste debate que ela fez, de ele estar implementado de forma efetiva”, defende.

Grabowski lembra que a Constituição Federal determina que a educação é responsabilidade do Estado, da sociedade e da família. “Inclusive as universidades, a imprensa. Ninguém ficou cobrando isso. Então todos são responsáveis, pois o PNE foi aprovado por unanimidade”, reflete.

Por fim, Ana vê a retomada das conferências e as avaliações sobre os motivos que deram errado no PNE atual como uma grande oportunidade para um plano melhor, que realmente seja cumprido. Ela ressalta que os educadores tinham esperança que houvesse pequenos e grandes avanços em nível de educação básica, o que não aconteceu. “Agora, temos uma nova chance, uma nova oportunidade para chamar os três entes da federação para que cumpram a lei e não passem vergonha novamente”, finaliza.

 

 

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