EDUCAÇÃO

Future-se: a ciência à luz de velas

O educador Rodrigo Medina Zagni, sobre a proposta do MEC para as universidades: "o Future-se aponta para uma miragem de futuro e nos arremessa em direção a Idade Média"
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 8 de agosto de 2019
Rodrigo Medina Zagni é doutor em Práticas Políticas e Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo. Primeiro vice-presidente da setorial

Foto: YouTube/Reprodução

Rodrigo Medina Zagni é doutor em Práticas Políticas e Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo. Primeiro vice-presidente da setorial

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Rodrigo Medina Zagni é doutor em Práticas Políticas e Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo. Primeiro vice-presidente da setorial São Paulo do Sindicato Nacional dos Docentes em Ensino Superior (Andes). Também é professor na Escola Paulista de Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde é colega de trabalho de Abraham Weintraub, o atual ministro da Educação do Brasil, que se encontra licenciado. Mas, as coincidências entre ambos param por aí. Zagni é um duro crítico das políticas defendidas pelo ex-colega de sala dos professores. “Uma tarefa tão importante que é essa de conduzir a política educacional de um país como o Brasil, deveria estar sob alguém muito mais preparado”, diz. Para Medina, Weintraub dá um tom esquizofrênico ao MEC e acredita que o recém lançado programa Future-se, na realidade deveria ser chamado “Fature-se”.

Extra Classe – Qual futuro da educação brasileira com o programa Future-se apresentado recentemente por Abraham Weintraub, ministro da Educação do governo Bolsonaro?
Rodrigo Medina
– Bom, em primeiro lugar, essa perspectiva de futuro coloca nosso horizonte em um passado imediato, não é? O Future-se aponta para uma “miragem de futuro” e nos arremessa em direção a Idade Média. Se concebermos, por exemplo, a situação da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) de ter luz cortada por falta de pagamento em razão dos cortes e contingenciamentos que feriram de morte as universidades federais nos últimos meses, vemos que estamos obrigados a fazer ciência sob luzes de candelabro. É esse o futuro que nos está sendo imposto. A gente não tem verba para manter laboratórios, insumos para pesquisa, programas de extensão. Ou seja, não há futuro que não seja uma educação desfeita como direito social e embalada como mercadoria venal em relações de consumo. É isso que se pretende nesse programa que eu acho que, melhor dizendo, deveria levar o título de Fature-se. É a venda de um serviço social que será entregue para a ampla exploração do setor privado. É a conversão da educação em mercadoria, com todas as letras.

ECColunista do Extra Classe, Gabriel Grabowski, em um artigo diz que a educação brasileira está em coma induzido. É por aí?
Medina
– Em parte. Mas, ela (a educação) resiste no fazer de valorosos companheiros e companheiras que trabalham na educação desde o ensino fundamental e médio, no ensino infantil, até no ensino superior. Ensinar, pesquisar, seguir lançando luzes sob temas que insistem esses poderes que falamos querer ocultar, antes de qualquer coisa já é resistência, são atos de resistência. Nós não vamos abnegar, nós não vamos arrefecer nessa luta. A educação como política pública, como já falamos, está efetivamente sob ataque, tolhida de recursos, eu até posso usar essa alegoria de uma educação em coma, que começou a se agravar profundamente após o golpe político jurídico-parlamentar  de 2016. Mas, esse pessoal que falei não está em coma num leito de hospital. Nós estamos nas ruas fazendo educação e fazer educação já é um ato de resistência.

EC – Recentemente o professor Fernando Cássio – que organizou do livro Educação contra a barbárie (Boitempo) – usou o conceito “barbárie gerencial” que joga para esfacelar os sistemas públicos de ensino. O Future-se, na sua opinião, se insere nesse processo?
Medina – Se insere, sim. A gente tem uma espécie de esquizofrenia nas declarações do ministério da Educação que se explica dentro de uma certa racionalidade. Explico: parece esquizofrênico o ministro da Educação defender o princípio constitucional da autonomia universitária para um clamar da autonomia financeira, dizendo que as universidades devem custear elas mesmas os seus valores. Mas, por outro lado, ataca a própria autonomia universitária, o princípio constitucional da autonomia universitária, interferindo e ameaçando em interferir diretamente nos assuntos administrativos dessas instituições.

EC – Exemplos parecem que já temos de sobra, não é?
Medina
– Recordemo-nos que no próprio dia 15 de maio quando um levante nacional da educação tomava as ruas desse país foi promulgado um decreto que colocava sob os auspícios da Casa Civil, diretamente, a nomeação de pró-reitores, diretores de unidades acadêmicas e a possibilidade da Casa Civil demitir reitores, exonerar da função, diretamente. Ou seja, mais uma vez, o governo tratorou o princípio da autonomia universitária e colocou as federais sob os auspícios da Casa Civil, assessorada pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Só para se ter uma ideia do grau de autoritarismo político que nós estamos presenciando, os reitores biônicos estão sendo apontados à revelia de processos de consulta pública, de eleição em conselhos universitários. Ou seja, passando o trator e com isto por cima de nós que labutamos para construir aquilo que entendemos ser uma universidade verdadeiramente democrática, socialmente referenciada, laica, gratuita em todos os seus labores e, efetivamente, uma universidade popular. Tudo isto está sob risco nesse momento.

EC – Mas, voltando a questão da “barbárie gerencial”…
Medina
– Na “lógica” do ministro, se as universidades são autônomas, devem buscar no setor privado – a defesa que ele fez no lançamento do Future-se – meios para a manutenção das suas atividades, ensino, pesquisa e extensão. Sublinhe-se que o ministério da Educação quase nunca menciona essa tríade, esse tripé que é indissociável nos fazeres de uma universidade. A ênfase é posta em noções de ensino como se fossem mera reprodução de conhecimento e, por essa agenda política, a pesquisa toda ela entregue ao mercado e ao setor privado. Ambos deveriam custear, no lugar do Estado, este que é um dos pilares do que a gente pode denominar soberania nacional: o desenvolvimento técnico-científico.

EC – Parcerias público privadas (PPPs) possam contribuir com a educação brasileira?
Medina – É preciso distinguir claramente o que é a gestão de negócios privados do que é a política na sua matriz, mesmo aristotélica, invocando aqui no pensamento grego clássico o conceito de política associado ao fazer em prol do bem comum. Na gestão de negócios privados a gente tem todas as ações direcionadas à consecução do lucro de um número limitado de acionistas. Sem querer satanizar o setor privado, não se trata disso, se trata de dizer que a educação que é direito de todos e dever do Estado está sob os auspícios deste e deve estar sob os auspícios de políticas públicas que normatizem o setor em prol de atingir esse direito de todos o que, repetindo mais uma vez, é dever do Estado. Tanto é, que políticas educacionais estão diretamente relacionadas a índices de desenvolvimento econômicos. A gente está falando de capacitação de mão de obra, para o mundo da produção, até lá na ponta nos processos tecnológicos que vão ser implementados no mesmo mundo da produção alavancando as economias nacionais, ok? Então devem estar sob os auspícios do Estado exatamente em função disso, para que se tenha efetivamente cidadania e, na medida em que, por direito, os indivíduos podem ter escolhas para o desenvolvimento de suas potencialidades.

EC – Em geral?
Medina
– Submeter diretamente o fazer científico ao mercado, por meio de Parcerias Público Privadas ou quaisquer outros instrumentos – as universidades públicas são responsáveis por mais de 90% das pesquisas científicas no Brasil – aos interesses do capital é um perigo.  Eu pergunto quais interesses tem o capital, vamos falar do protagonismo mais concretamente do setor especulativo do setor financeiro, nos despossuídos, na população preta, pobre, que habita os bairros periféricos das grandes cidades brasileiras? Onde estará o protagonismo desses “de baixo” nas agendas de pesquisas científicas segundo o interesse do capital? Onde estarão os LGBTs, onde estarão os transexuais, onde estarão as mulheres massacradas nessa sociedade misógina, machista? Há de se pensar efetivamente em nome de quem a universidade age em seus fazeres numa conjuntura como essa. Não que a universidade não padeça desses problemas desde o seu surgimento no Brasil, mas ela está em disputa desde muito tempo e esses ataques recentes (do governo Bolsonaro) que estão sendo os mais severos na nossa história recente se dão em um momento que as universidades federais ousaram inverter uma chave histórica e atender no seu alunado, até 60% de alunos provenientes das classes D e E, um feito histórico. Esse ataque se trata, na realidade, de uma tentativa de retomada oligarca da universidade brasileira.

EC – Falamos no atual ministro da Educação. Ele é seu colega de docência na Unifesp. Quais as suas impressões pessoais sobre Abraham Weintraub?
Medina – Olha, eu pouco cruzei com ele nos corredores da Escola Paulista de Política e Economia; compartilhamos o ofício de professores, mas posso dizer do meu profundo descontentamento em ter um ministro da Educação que demonstrou pouco ou nada conhecer sobre as universidades ao dizer bobagens, absurdos como se houvesse em nossos ambientes balbúrdia e gente pelada. Eu nunca vi e ele também nunca viu, porque nós damos aulas no mesmíssimo lugar, um ambiente bastante respeitoso entre professores e alunos. Também descontenta o seu solene desconhecimento sobre o que é a vida acadêmica. Ele não tem experiência de orientação em etapas iniciais de uma pesquisa, como iniciação científica; não orientou um mestrado, não orientou um doutorado. Então, uma tarefa tão importante que é essa de conduzir a política educacional de um país como o Brasil deveria estar sob comando de alguém muito mais preparado do que ele. Isso sem falar dos atos risíveis onde ele se porta como se fosse um Youtuber, dançando com um guarda-chuvas ou deitado numa rede. Ou seja, ele é uma figura anedótica, que não faz muito esforço para se fazer respeitar, inclusive. No meio acadêmico é praticamente impossível se fazer respeitar assim.

 

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