ECONOMIA

Privatização da Eletrobras ameaça centro de pesquisa energética

Se a falta de planejamento de investimentos em linhas de transmissão culminou com o apagão de 2001 na era FHC, a pergunta agora é: pode acontecer um apagão tecnológico no setor elétrico brasileiro?
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 22 de abril de 2021
As bases tecnológicas do Sistema Interligado Nacional (SIN), gerenciado pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico, são resultado de pesquisas do Cepel

Foto: ONS/ Divulgação

As bases tecnológicas do Sistema Interligado Nacional (SIN), gerenciado pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico, são resultado de pesquisas do Cepel

Foto: ONS/ Divulgação

A pesquisa de fundo no setor de energia elétrica brasileira pode estar seriamente ameaçada pela proposta de privatização da Eletrobras, que possibilita a retirada dos principais recursos financeiros do Cepel, os quais tornaram o sistema de geração, transmissão e distribuição elétrica no país um dos mais eficientes do mundo. Se a falta de planejamento de investimentos em linhas de transmissão culminou com o apagão de 2001 no final da era FHC, a pergunta agora é: pode acontecer um apagão tecnológico no setor elétrico brasileiro? Mais do que uma pergunta retórica, o questionamento é pertinente em um país continental como o Brasil e que vê acionistas da Eletrobras, um conglomerado controlado pelo Estado, mudar seu estatuto para retirar importantes programas sociais estratégicos para a nação

A Medida Provisória apresentada em fevereiro pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) que encaminha a privatização da Eletrobras no âmbito da Câmara dos Deputados, a MP 1.031/2021, pode significar uma grande ameaça ao Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel). Instituído em 1974 pela Eletrobras, Chesf, Furnas, Eletronorte e Eletrosul, o Cepel é o braço de Pesquisa e Desenvolvimento tecnológico (P&D) da Holding Eletrobras.

Sob regulamentação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), as empresas que atuam no setor de geração, transmissão e distribuição de energia se obrigam a investir compulsoriamente em projetos de P&D, tendo por base suas Receitas Operacionais Líquidas (ROL). Companhias que atuam na Geração e Transmissão têm por índice 1% do seu ROL e as de Distribuição, 0,5%.

Dos cerca de R$ 200 milhões anuais do orçamento do Cepel, 80% saem dos cofres da holding estatal. Segundo a MP, quatro anos depois que o governo federal abrir mão do controle acionário da empresa com a privatização, esses recursos devem ser reduzidos na ordem de 25% por ano.

O dilema é: poderá o Cepel repor todo esse financiamento em curto e médio prazo via prestação de serviços a novos clientes?

As lições deixadas pelo apagão de FHC

Falta de investimentos e fragilidade do sistema de transmissão combinados com a falta de chuvas levou ao blecaute na era FHC, que privatizou geradores de energia principalmente no Sudeste. Agora está ocorrendo a mesma ingerência, só que em relação à pesquisa

Foto: ONS/ Divulgação

Falta de investimentos e fragilidade do sistema de transmissão combinados com a falta de chuvas levou ao blecaute na era FHC, que privatizou geradores de energia principalmente no Sudeste. Agora está ocorrendo a mesma ingerência, só que em relação à pesquisa

Foto: ONS/ Divulgação

Não necessariamente pode ocorrer um apagão no setor elétrico nacional como o do final do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que, no seu processo de privatização, acabou descuidando do planejamento de investimentos necessários para o país. “Um abandono da responsabilidade estatal antes da privatização. Tipo: ‘Como vamos vender e passar a responsabilidade para os investidores privados, não vamos investir então’”, disse um importante ex-executivo do setor que hoje presta consultorias para as mais variadas empresas de energia no Brasil e, por isso, pediu a condição de fonte anônima.

Nos anos FHC, foram privatizadas geradoras de energia hidroelétricas, principalmente no Sudeste.

Nesse caso, houve uma ironia do destino. A falta do planejamento citado foi fatal. No período em que as hidroelétricas do Sudeste estavam com seus reservatórios de água abaixo do necessário devido à ausência de chuvas, o não investimento em linhas de transmissão ocasionou o grande blecaute que forçou os brasileiros a racionar energia a partir de 1º de julho de 2001.

Colocar a culpa em São Pedro, como fez FHC, não colou. “A falta de um plano de investimentos, agravada pelo sistema de transmissão que não era robusto o suficiente para transferir energia entre as regiões do Brasil, foi a real causa”, afirma o agora consultor.

No fim das contas, os consumidores tiveram que cortar “voluntariamente” 20% do consumo de eletricidade sob pena de ter um aumento no custo final da energia elétrica. A restrição durou até 19 de fevereiro de 2002, quando os reservatórios das hidrelétricas do Sudeste se recuperaram após o período chuvoso.

Riscos de blecaute tecnológico

Para Castro, da UFRJ, não há risco de apagão

Foto: UFRJ/ Gesel/ Divulgação

Para Castro, da UFRJ, não há risco de apagão

Foto: UFRJ/ Gesel/ Divulgação

O apagão que pode advir dessa vez é na pesquisa de fundo, de inovações, algo que fez o Cepel ser referência internacional. Por exemplo, foram estudos desse centro de pesquisas que fizeram com que o Brasil tenha hoje um dos sistemas elétricos mais confiáveis do mundo.

O Cepel emprega, atualmente, 270 pesquisadores que estão distribuídos em 34 centros de estudos e laboratórios.

Foi nessa estrutura que se criaram as bases tecnológicas do Sistema Interligado Nacional (SIN), hoje gerenciado pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). O SIN é um modelo que permite a realocação de grandes blocos de energia de uma região para outra do país para o necessário “socorro” em caso de possibilidades de desabastecimento. Seja por eventuais acidentes ou por questões climáticas, por exemplo.

Um caso perfeito para exemplificar o SIN é exatamente a crise que deu origem ao racionamento de 2001.

Se houvesse linhas de transmissão suficientes para socorrer a Região Sudeste – que estava com seus reservatórios hidrológicos baixos –, modelos e softwares como o Newave desenvolvidos pelo Cepel poderiam evitar o racionamento.

Leva-se em conta aí o fato de o Brasil ser um país de dimensões continentais. Ou seja, se há estiagem em uma região, em outra, certamente, pode haver água em abundância ou energia termoelétrica que pode ser acionada para o provimento nacional.

Novos rumos para o Cepel

Cepel pode virar consultoria de luxo, alerta Custódio, que já foi conselheiro do órgão e dirigiu a Eletrosul

Foto: Hermínio Nunes/ Eletrosul Divulgação

Cepel pode virar consultoria de luxo, alerta Custódio, que já foi conselheiro do órgão e dirigiu a Eletrosul

Foto: Hermínio Nunes/ Eletrosul Divulgação

Nivalde de Castro, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel), entende que, por ter sido originado na Eletrobras e, de certa forma, cativo às demandas da holding, o Cepel acabou não desenvolvendo uma cultura empreendedora, de ir ao mercado. “Na minha modesta avaliação, a estratégia do Cepel diante desse novo cenário é ir a campo”, aponta.

Para Castro, o Cepel pode buscar nichos de mercado. Como exemplos, o professor cita o ambiente da energia nuclear que continuará estatal e possíveis parcerias com o Parque Tecnológico Itaipu (PTI), criado em 2003 pela Itaipu Binacional e que, também, não será privatizada.

O professor da UFRJ diz que o Centro deve entender o momento e passar a ver que “se o setor elétrico precisa do Cepel, o Cepel precisa do setor elétrico”. Para ele, o Cepel tem vantagens que o coloca em uma posição de se firmar como um centro de pesquisa autossustentável, mas considera improvável que algo assim aconteça. “Poderia buscar a possibilidade de ser um certificador de carros elétricos, por exemplo, mas, de longe, não vejo uma cultura”, opina o pesquisador da UFRJ.

Com uma visão holística sobre o setor elétrico nacional, Castro não acredita em possíveis motivos para um “apagão” na busca de inovações para a área. “As empresas são competentes e cada vez mais usam bem os seus recursos de P&D – que foi o catalizador desse processo. O Cepel tem que correr atrás.”

Dentro do Cepel, a avaliação é que a fonte de recursos de outras empresas, fora a Eletrobras e suas subsidiárias, tem crescido gradualmente, mas não fará frente a uma possível saída total da holding em quatro anos.

Ronaldo Custódio, integrante do conselho do Cepel entre 2003 e 2016, discorda em grande parte da visão de Castro. “Segue a linha liberal, mercadológica. É ruim porque tende a transformar um importante centro de pesquisa em uma consultoria de luxo”, critica.

Acionistas liquidam com programas sociais

Centro de Operações do ONS no Rio de Janeiro

Foto: ONS/ Divulgação

Centro de Operações do ONS no Rio de Janeiro

Foto: ONS/ Divulgação

Entre as funções de Estado da companhia e do centro de pesquisas, estão o Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (Procel), o qual é gerido por uma Secretaria-Executiva ligada à holding, e o mais recente Luz para todos, o Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso da energia elétrica.

O Procel e o Luz para todos, aliás, também estão ameaçados. E não é apenas pelo processo de privatização da estatal.

A última assembleia dos acionistas da Eletrobras, realizada em 28 de janeiro, fez alterações no estatuto da holding. Além de desobrigar a manutenção do Cepel, o que foi além do que a própria MP de Bolsonaro prevê, os acionistas da Eletrobras decidiram pela exclusão da sua obrigação de manter os programas sociais – inclusive o Procel e o Luz para todos.

A Eletrobras e o papel de Estado

“Tem que ter uma cabeça muito pequena para não ver que um centro de pesquisa como o Cepel é importante e estratégico”, critica Zimmermann, ex-ministro de Minas e Energia

Foto:Antônio Cruz/ Agência Brasil

“Tem que ter uma cabeça muito pequena para não ver que um centro de pesquisa como o Cepel é importante e estratégico”, critica Zimmermann, ex-ministro de Minas e Energia

Foto:Antônio Cruz/ Agência Brasil

Custódio, que também foi diretor de Engenharia e Operações da Centrais Elétricas S.A., a Eletrosul, uma das subsidiárias da Eletrobras, acredita que essa possibilidade pode acarretar falta de recursos para as chamadas pesquisas de fundo. “As empresas privadas, cada vez mais para atender aos seus acionistas, querem resultados no curto prazo. A pesquisa de fundo dá um retorno lento”, ressalta.

De acordo com o engenheiro, o mínimo que deveria acontecer era o Estado brasileiro assumir a responsabilidade sobre o Cepel. “Países avançados fazem isso”, afirma. Nesse sentido, ele destaca que a MP 1.031/2021 aponta a possibilidade de retirada de investimentos da Eletrobras no Cepel, mesmo com a ideia de ações pulverizadas, sem a existência de um acionista majoritário.

O ex-ministro Márcio Zimmermann destaca a importância do Cepel na história do Brasil. “Tem que ter uma cabeça muito pequena para não ver que um centro de pesquisa como o Cepel é importante e estratégico”, lamenta. Ex-diretor de Pesquisa e Desenvolvimento do Cepel, ele já passou pelos cargos mais estratégicos do setor elétrico do país. Foi diretor de Engenharia da Eletrobras, presidente da Eletrosul, secretário nacional de Planejamento e Desenvolvimento Energético, secretário-executivo e, posteriormente, titular do Ministério de Minas e Energia (MME).

Na opinião dele, um centro de pesquisas de fato não sobrevive somente com a venda de serviços e produtos. “A pesquisa, a busca de inovação, também pode resultar em experimentos falhos, o que não deixa de ser importante”, explica Zimmermann.

O ex-ministro cita exemplos de instituições de excelência internacional que têm respaldo estatal. “Quando em visita oficial aos Estados Unidos, fiquei sabendo que o Departamento de Energia de lá, que equivale ao nosso ministério, tinha um orçamento de US$ 29 bilhões para P&D”. No Brasil, o orçamento do Ministério de Minas e Energia para 2021 é de R$ 8,9 bilhões.

Nos investimentos norte-americanos, estão o Oak Ridge National Laboratory e o National Renewable Energy Laboratory. São as organizações daquele país que mais se assemelham ao Cepel. O orçamento para o funcionamento desses centros recebe cerca de 80% do governo norte-americano.

Zimmermann lembra, ainda, do Korea Electric Power Research Institute (Kepri). O instituto é uma espécie de subsidiária da Korea Electric Power Corporation (Kepco), a estatal do país asiático.

Um ponto é consensual entre as opiniões de Castro, Custódio e Zimmerman: no decorrer de sua história, a Eletrobras e, por consequência, o Cepel, ao prestarem os seus serviços, cumpriram também papéis de Estado.

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