Foto: Igor Sperotto
Os números que perfilam o leitor brasileiro seguem pouco animadores, mas o mercado literário vem experimentando uma movimentação que está revelando escritores e atraindo novos leitores, sobretudo jovens.
Foto: Igor Sperotto
Junto com os novos escritores, vêm temáticas até pouco tempo atrás inusuais na ficção brasileira, como racismo, LGBTQIAPN+, identidade de gênero, direito das mulheres, pobreza, sustentabilidade. Esse, digamos, lado B das letras é nomeado bibliodiversidade. A aclamação é irrestrita.
A bibliodiversidade fala com os excluídos. Autores geralmente abrigados em pequenas editoras ou mesmo independentes estão conseguindo alcançar essa massa de brasileiros órfãos de representação. Em se tratando de Brasil, é um feito.
Clô Barcellos é jornalista, designer, artista plástica e sócia-fundadora da Editora Libretos, juntamente com seu marido, o também jornalista e escritor Rafael Guimaraens. No catálogo, estão Negra Jaque, Dudu Sperb, Nathy MC, Fátima Farias, entre outros autores do plantel da Libretos. “Lá atrás, todas as bancas vendiam a mesma coisa. O leitor perguntava: ‘Não tem literatura negra?’. Eu tinha… Nós já defendíamos a bibliodiversidade. Estou achando maravilhoso esse caminho, a gente não para”, vibra Clô.
Diversidade
Oscar Henrique Cardoso é jornalista, escritor e fundador da Agbara, editora focada em publicar autoras e autores negros. Recentemente, Oscar esteve na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Ele ainda não desceu das nuvens.
“Fiquei impressionado com o que vi: muito negro e negra autografando, debatendo religiosidade, afrodescendência. Vi muita diversidade, muito povo, não era só elite. Espero que aqui em Porto Alegre a gente possa ter esse encantamento. Acho que a Feira do Livro deveria interagir mais com as comunidades; o livro tem que ser transversal”, defende o editor.
Foto: Luciana Éboli
A Agbara não participou da Feira. “Vendemos o almoço para poder jantar. Todos falam em empreender, empreender… Mas vai num banco buscar uma linha de crédito: é um inferno! A realidade é muito dura”, ilustra Oscar.
Escritora, multiartista e presidente da Associação Gaúcha de Escritores (Ages), Liana Timm percebe claramente o crescimento da bibliodiversidade. “Acho que está havendo uma grande transformação. Não sei para onde vai, mas está acontecendo”, afirma.
Liana enxerga dois movimentos que ajudam a explicar o atual momento do mercado literário. A multiplicação de autores independentes e o surgimento de pequenas editoras, combinados, proporcionariam a cena para o surgimento de narrativas diversas. Segundo Liana, outro aspecto que incentiva os independentes e os pequenos é a exploração a que as editoras fortes submetem o escritor.
Em geral, as editoras oferecem ao autor apenas 4% da venda de um livro. Já foi melhor. Há alguns anos, o autor da obra embolsava em torno de 10% das vendas. A livraria costuma receber 50%. Ou seja, quem, de fato, transpira para que a obra exista é o mais mal remunerado.
“Todo mundo despertou, e isso é muito importante. Agora, com essa diversidade, nós estamos vendo o quanto perdemos”, lamenta Liana.
Com cerca de 200 associados, atualmente a Ages é comandada por nove mulheres. A escritora, professora da Ufrgs e diretora de Integração Universitária da Ages, Jane Tutikian, ministra oficinas de escrita criativa, terreno fértil para a bibliodiversidade acontecer.
“Num estado democrático, a diversidade é e deve ser sempre respeitada. Ora! O livro tem um caráter democrático. Ele é a melhor forma de o escritor estar entre seus semelhantes”, define.
“Rotulação”
Foto: Igor Sperotto
Natalia Borges Polesso ganhou projeção nacional em 2016, quando seu Amora venceu o Prêmio Jabuti na categoria Contos. O livro reúne 33 contos em que o universo lésbico perpassa situações cotidianas, familiares, delicadas, violentas. Ela vê com naturalidade uma certa “rotulação” que recai sobre determinados temas.
“Lembro muito bem de uma entrevista com Angélica Freitas (poeta) dizendo assim: ‘Eu gosto quando a estante da livraria é marcada como LGBT, porque daí eu sei onde ir, onde achar a literatura’. E isso, pra nós, pessoas LGBT, que estamos sedentas de leituras em que a gente se veja representada, é ótimo mesmo.”
O mercado tradicional das livrarias também sente o boom da bibliodiversidade. “Há uma demanda muito grande. Não apenas criamos estantes dedicadas a tais temas, como o público mudou. Nosso acervo teve de ser adaptado, o que é ótimo”, conta o jornalista, livreiro e proprietário da Bamboletras, Milton Ribeiro.
Questão de mercado
Foto: Marco Nedeff/ Divulgação
O Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) informou, via assessoria, que “o mercado editorial não tem dados e nem estudos sobre a incidência da diversidade no mercado literário”. A Câmara Brasileira do Livro (CBL) não quis se manifestar.
Maximiliano Ledur, presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro, que organiza a Feira do Livro de Porto Alegre, considera o debate sobre temas como antirracismo, diversidade de gênero e sustentabilidade de extrema importância para a construção de uma sociedade mais justa, inclusiva, igualitária, sustentável, ecologicamente responsável e mais consciente. “Trazer o debate desses temas para a Feira do Livro é uma obrigação”, pontua.
Para o dirigente, o papel desses temas no cenário literário vai além do entretenimento. “Eles têm o poder de educar, informar e transformar os leitores, despertando reflexões críticas sobre nossa sociedade e incentivando ações positivas em prol da igualdade e da sustentabilidade.” E são uma nova perspectiva de mercado. “Promover a inclusão de diferentes perspectivas e histórias pode atrair novos públicos e, com isso, contribuir para o crescimento do mercado”, acrescenta.