A Sinfonia da Vila Mapa
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Há 27 anos a música transforma vidas na Lomba do Pinheiro, oferecendo oportunidades e cultura para a comunidade local e brindando Porto Alegre com espetáculos de altíssimo nível da Orquestra Villa-Lobos.
Ao sinal da maestrina, soam os primeiros acordes da canção Aquarius, que entrou para o repertório mundial no filme Hair (1979), de Milos Forman. São entoados por flautas, violinos e violoncelos, mesclados à instrumentos eletrônicos e muita percussão. Em seguida, bailarinos entram em cena, contorcendo seus corpos em uma coreografia que evoca a liberdade reivindicada pelo movimento hippie. Por último, a menina negra de miniblusa vermelha toma o microfone e dispara com seu vozeirão: “When the moon is in the Seventh House/And Jupiter aligns with Mars”…
A performance, premiada com o troféu Açorianos de Melhor Espetáculo em 2018 e disponível na íntegra em canais da internet, é obra de estudantes de ensino fundamental da periferia de Porto Alegre. São os atuais integrantes da Orquestra Villa-Lobos, nascida e sediada em uma escola municipal cujo nome homenageia o compositor brasileiro, na Vila Mapa, localidade da Lomba do Pinheiro, zona leste da capital.
Em dezembro, a orquestra lança seu novo espetáculo, Afrika, com repertório do folclore de países do continente africano, músicas cantadas em Iorubá e participação de convidados como o rapper angolano Kanhanga e o cantor nigeriano Lumi.
As apresentações são a parte mais conhecida do projeto e fazem sucesso. Mas as atividades do projeto incluem oficinas de teoria e prática musical, formação de instrumentistas, coral infantil e adulto, e ainda grupos de teatro, dança, sapateado americano – uma tremenda grade que preenche seis dias da semana, com os três turnos lotados. Semanalmente, 400 crianças e adolescentes ocupam as salas localizadas na Escola Municipal de Ensino Fundamental Heitor Villa-Lobos e em outros quatro locais diferentes na Lomba do Pinheiro. O projeto é mantido com recursos da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e do governo federal, mas a base de tudo é a entrega pessoal de muitos participantes.
“O grupo principal é a Orquestra Villa-Lobos. Temos uma outra orquestra chamada São Francisco, para iniciantes e intermediários, mais a orquestra de cordas, o grupo de flautas, outro de violão, de cavaquinho, de percussão, o grupo de choro… é muita coisa”, enumera a diretora-geral do projeto, Cecília Rheingantz Silveira, que é a maestrina da orquestra, ou simplesmente a “sôra” mesmo para quem já passou da idade de ser aluno faz tempo.
É assim que a flautista Karen Letícia Silva das Neves, de 24 anos, se refere ainda hoje à Cecília. Ela já deixou a escola faz tempo, mas nunca quis abandonar o projeto, que além de conhecimento e cultura lhe garantiu trabalho e renda: hoje ela ministra aulas de flauta doce em uma das oficinas do projeto, além de ser a responsável pelo gerenciamento do figurino do grupo principal.
Não é um caso isolado, já que atualmente 24 educadores musicais trabalham com carteira assinada no projeto. Doze deles são ex-alunos das oficinas e dois já concluíram a Faculdade de Música. Um integrante do grupo se mudou para Stuttgart, na Alemanha, onde está cursando o segundo mestrado e virou professor.
O afeto como método pedagógico
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Na última quinta-feira de novembro, Karen das Neves ensaiava com a orquestra, ajustando os últimos detalhes para a estreia de Afrika, com a filha de dois anos no colo. “A sora é super compreensiva, nos dá essa liberdade de manter a família perto. Eu levo nos ensaios e nas apresentações”, conta a jovem.
Famílias não faltam no projeto da Orquestra Villa-Lobos. Mães e pais se envolvem na confecção de figurinos e cenários. Com o tempo, muitos passaram a frequentar as oficinas; no coro, é evidente a presença de familiares dos alunos. Karen conheceu o marido na orquestra − ele é um dos integrantes do setor de harmonia do conjunto, se alternando entre o contrabaixo e o violão.
Também foi lado a lado que os irmãos Luan, 16, e Leonardo, 15, Bálsamo aprenderam seus instrumentos – o primeiro se interessou pela percussão, o segundo, aprendeu flauta e violino. “Comecei aos seis anos, depois que a Orquestra se apresentou na minha creche”, explica Leonardo, que precisou dar um tempo na música para dedicar-se à robótica e ao comando do grêmio estudantil da escola.
Já Luan se ressente por estar chegando sempre atrasado nos ensaios − ele começou a trabalhar este ano, e ao final do expediente, volta o mais rápido que pode do Centro Histórico para a Parada 4 da Lomba do Pinheiro.
Cecília é a matriarca da grande família musical. Recebe a todos com beijos, abraços e palavras cálidas. “Obrigada por ter vindo”, ela diz à primeira aluna que chega no ensaio, sabedora das dificuldades que esses jovens enfrentam para persistir com o projeto.
“A base do trabalho de arte e cultura é a afetividade e estabelecer isso como ponto de partida é importante na busca da auto-estima, especialmente em uma comunidade de altíssima vulnerabilidade social. O aprendizado de música é mágico desde que incorpore essa proposta pedagógica, de fazer com que os alunos se sintam pertencentes”, analisa a maestrina.
O sonho de Cecília conquistou a todos
Foto: Igor Sperotto
O embrião do projeto foi uma oficina de flauta no contraturno escolar, iniciada em abril de 1992, 27 anos atrás. Cecília era professora de Música regular da Escola Municipal Heitor Villa-Lobos e, em suas aulas, a maestrina recorria à flauta doce para estimular a audição dos estudantes. “Eles começaram a pedir para aprender a tocar, mas não havia espaço para ensinar a eles a técnica instrumental”, explica.
De início, foram abertas dez vagas, mas a turma nunca contou com menos de 14 estudantes. “No ano seguinte, foram 20, no outro 50, depois 70… A partir do terceiro ano, os alunos da primeira turma começaram a se voluntariar como monitores para aumentar a oferta de oficinas. No quinto ano já tínhamos a orquestra de flautas formada”, recorda.
A maioridade chegou aos 18 anos, quando oficialmente foi criada a Orquestra Villa-Lobos, com naipes de violinos, flautas, piano, violão, baixo, cavaquinho e percussão. “A nossa orquestra não toca só composições de música clássica, a gente trabalha com o popular”, observa Karen das Neves.
A expansão da iniciativa exigiu mudanças em toda a escola. Cecília Rheingantz Silveira hoje tem dedicação exclusiva para o projeto. Do ponto de vista estrutural, também foi preciso se adaptar. Três salas foram cedidas ao projeto musical, mas quando se aproximam os grandes eventos, nos quais o corpo artístico completo se reúne para os ensaios, o jeito é improvisar. No dia em que a reportagem acompanhou a preparação para a estreia de Afrika, músicos e o coro de jovens e adultos utilizaram o refeitório para passar as músicas. Foi preciso servir a merenda dos alunos da tarde nas salas de aula, improvisando um lanchinho mais simples naquele dia.
“Não é fácil gerenciar a escola com esse projeto dentro. Temos 1,5 mil alunos divididos nos três turnos e com a orquestra e as oficinas funcionando, o fluxo triplica, porque vem muita gente de fora da comunidade escolar”, explica o diretor do colégio, Helton Affonso de Oliveira.
O esforço compensa. Helton diz que há menos brigas entre os estudantes, e os professores relatam que os frequentadores das oficinas desenvolvem maior concentração em aula. Outra vantagem mencionada por todos é o aprendizado da disciplina, que os alunos valorizam muito.
“A orquestra exige um compromisso muito sério da gente, muita responsabilidade. Temos que ser pontuais nos ensaios e aprender a confiar uns nos outros, também respeitando as diferenças. Afinal, assim que a música aparece, não adianta ter só um instrumento, ser todo mundo igual”, compara Leonardo Bálsamo.
Seu irmão, Luan, prefere resumir tudo o que representa a iniciativa em sua vida em uma pequena frase: “É muito amor que a gente aprende mesmo”.