AMBIENTE

Negligência e manejo errado das comportas pioraram enchente na capital

O professor do IPH-Ufrgs Gino Gehling explica por que a água continuou a invadir áreas no Menino Deus e na Cidade Baixa, a partir de 6 de maio
Por Elstor Hanzen / Publicado em 8 de maio de 2024

Falta de manutenção no sistema de proteção e manejo incorreto das comportas do muro da Mauá agravaram a enchente na capital

Foto: Giulian Serafim / PMPA/Divulgação

Foto: Giulian Serafim / PMPA/Divulgação

O monitoramento da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) mostra que a marca histórica da enchente de 1941 do Rio Grande do Sul foi rapidamente superada em 3 de maio de 2024, quando as águas do Guaíba atravessaram o muro da Mauá e invadiram os bairros da capital, ultrapassando os 5,30 metros em 5 de maio, contra o pico de 4,76 há 83 anos.

O professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IPH-Ufrgs) e doutor em engenharia ambiental pela Universitat Politécnica de Catalunya, Barcelona, Gino Gehling aponta que a água continuou a invadir novas áreas no Menino Deus e na Cidade Baixa a partir de 6 de maio. “A causa é que a Estação de Bombeamento de Águas Pluvial 11 – (Ebap), na Av. Icaraí junto à margem esquerda do Arroio Cavalhada também deixou de operar. É possível que nos próximos três dias, mais alguma venha a falhar”. O IPH-Ufrgs também previu que para a água voltar ao patamar de três metros pode demorar de 10 a 15 dias.

Nesta entrevista Gino Gehling evidencia as razões do colapso do sistema de drenagem e os problemas na manutenção e operação do muro da Mauá para que a enchente invadisse o centro e diversos outros bairros da capital. E vai além, traz soluções e indica caminhos para evitar novas tragédias ambientais.

EC – As evidências científicas sobre as mudanças climáticas e as enchentes históricas em 2023 serviram para os governantes se organizarem em políticas de proteção e enfrentamento de desastres naturais, ou se segue a órbita do capital e da ciência só quando convém?

Gehling – Primeiramente, deve-se reconhecer que a cota de coroamento do muro foi bem concebida. Foi proposta e adotada com base nas observações de níveis registrados em réguas no lago Guaíba e rios contribuintes. Contudo, após a implantação do muro, especialmente nos últimos anos, estamos tendo episódios em que a água chega ao nível do cais ou acima. O episódio que estamos vivenciando, juntamente com outros ao longo da última década, permite uma reavaliação de qual o período de retorno de chuvas que levem a que a cota de coroamento do muro venha a ser superada. Seguramente com os eventos recentes, os prazos e prioridades precisam ser revistos.

Negligência e manejo errado das comportas pioraram enchente na capital

Foto: Reprodução/IPH-Ufrgs//YouTube

Gino Gehling, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IPH-Ufrgs)

Foto: Reprodução/IPH-Ufrgs//YouTube

EC – Das cinco maiores cheias do Guaíba registradas desde 1941, quatro ocorreram nos últimos oito anos. As cheias de 2023 já bateram marcas históricas, mas a de agora superou todas em 83 anos. Como analisa o sistema de proteção às cheias em Porto Alegre, incluindo o Muro da Mauá, contra inundações como a de agora?
Gehling – O sistema de proteção de nossa cidade é composto principalmente por um polder (conjunto de diques), que inclui o muro da Mauá e 23 casas de bombas. As recentes intervenções para minimizar as infiltrações através dos portões (comportas) dos muros apresentam imagens de empilhamento de sacos de areia pelo lado externo do polder (rua de quem olha), como se vê na imagem.

EC – E sobre a tentativa de contenção de infiltração por baixo de comporta?
Gehling – Não encontro registro das imagens que apresente como foi feita a vedação pelo lado do polder, ou seja, pelo lado que vem a água. Algumas medidas passíveis, em uma primeira reflexão:

  • Empilhar sacos de areia ou alguma forma de barramento mais eficiente, do lado tomado pelas águas, lado de fora.
  • Adotar algum tipo de vedação para os vãos entre as comportas e as laterais com os muros. Vedações como essas devem ser colocadas pelo lado de dentro do muro, ou seja, no lado invadido nas cheias, antes que o cais seja tomado pelas águas.
  • Atuar antes que o cais seja invadido pelas águas, assim poderiam ser adotadas medidas mais eficazes. Por exemplo, estender mantas de Polietileno de Alta Densidade (Pead) que cobrissem toda a face das comportas, bem como um metro de muro para cada lado, e um metro de extensão da manta sobre o piso. As mantas receberiam uma primeira fixação por buchas.

Essa grande peça de Pead deve, de preferência, estar estocada em local seguro e próximo. Após a fixação primária da manta, por cima dela se colocariam perfis metálicos com perfurações para fixação à face do muro com buchas, prensando assim a manta Pead em toda a sua extensão. Fixação assim teria a pressão da água a seu favor, e não contra, como sacos de areia colocados por dentro do polder.

 EC – Como é o sistema de drenagem de Porto Alegre e sua gestão? A manutenção está adequada?
Gehling – A manutenção está negligenciada por um período considerável. O sistema conta com 23 Estações de Bombeamento de Águas Pluviais (EBAPs) implantadas. Diversas vêm falhando agora em maio, e seguramente as causas serão investigadas. Havia até recentemente uma tendência de que as pessoas encarassem um episódio de cheia acima do nível do cais como sendo algo a ocorrer décadas à frente. E, com recursos limitados, as prioridades eram dadas para manutenção do sistema de drenagem urbano: sarjetas e tubulações. As águas coletadas por estes elementos, em caso de cheias que exijam o fechamento das comportas do muro da Mauá, concentram-se nas Estações de Bombeamento de Águas Pluviais.

EC – Houve investimentos?
Gehling – Em uma avaliação primária, é intuitivo que em termos de investimentos, para restaurar e adequar as EBAP com novos equipamentos, sejam necessários mais de 700 milhões de reais. Creio que valores mais fiáveis, provavelmente superiores, já estejam de posse da municipalidade, aportadas por consultorias levadas a termo. Segundo levantamento do Uol, em 2023, o investimento da prefeitura foi zero nesta área.

E valores desta ordem não podem ser aportados pelo município através do DMAE, que assumiu as funções do DEP. Para que o sistema de proteção contra cheias de nossa cidade possa operar com efetividade, estas adequações imprescindíveis não podem ser arcadas com recursos municipais ou estaduais. Seria adequado buscar a forma que foi adotada para implantar, em 1970, o nosso sistema de proteção. E se não for possível adotar solução semelhante agora para obter os recursos necessários, será desejável que o governo federal aporte recursos, revisando, se necessário, alguns dispêndios de recursos para outros interesses. A priorização de investimentos deve ser abraçada, que prevaleçam os mais imprescindíveis.

EC – O sistema falhou?
Gehling – As Ebaps que devem retirar as águas do interior do polder para descarregá-las no lago Guaíba apresentavam problemas. Alguns, reconheça-se, foram solucionados pela atual administração municipal. Outros problemas aguardam soluções.

Não é prudente implantar Ebap que dependam da energia elétrica das concessionárias, sem terem um sistema alternativo de suprimento de energia. E que este suprimento alternativo seja submetido a avaliações periódicas em tempo seco.

Durante esta cheia de maio observamos algumas portas de Ebap jorrando água do lago para o interior do polder. Este caminho para ingresso de águas não pode ocorrer, mesmo com bombas inoperantes. Há equipamentos que podem dar esta segurança ao sistema.

EC – Como se dá o escoamento?
Gehling – As águas do centro de Porto Alegre devem ganhar o lago Guaíba através das EBAPs 17 e 18. Quando o nível do Guaíba está baixo, as águas dos poços das EBAP escoam para o lago por gravidade, sem que as bombas operem. Mas quando a tubulação de descarga por gravidade para o lago ficar afogada, uma comporta deve fazer o fechamento desta tubulação. A partir do fechamento da comporta, as bombas começam a operar sempre que for atingido um nível de água acumulada no poço. Com as bombas em operação, é imprescindível que no duto de recalque tenhamos válvula de retenção. Este equipamento permite que a água vá da EBAP para o lago, mas impede que a água do lago ingresse no poço da Estação de Bombeamento. É um equipamento que permite o fluxo em apenas um sentido.

Aparentemente, o grande fluxo de água que saía pela porta de uma ou duas estações de bombeamento pode ser devido à falta da comporta pela qual as águas saem do poço e escoam por gravidade para o lago. O projeto seguramente deve ter especificado essa imprescindível comporta.

Uma providência paliativa de baixo custo que pode ser implantada de imediato é fixar trilhos-guia na face externa da parede das EBAP onde estão as portas. Sempre que por alguma falha as águas do lago forem invadir a o espaço interno das EBAP, um veículo pode aproximar-se e inserir uma chapa de aço nos dois trilhos fixados, um de cada lado da porta. Esta chapa de aço teria a estanqueidade otimizada por placas de borracha a inserir nos trilhos guia.

Em fase de projeto, pode-se adotar como princípio, a adoção de cotas de soleira de portas e de peitoris de janelas que estejam no nível do coramento dos muros ou diques de proteção. Assim, mesmo que o interior da EBAB fique com a água no nível da água no lago, não haverá saída de água das Estação para o interior do polder.

EC –  Em que proporção políticas públicas e obras de engenharia ambiental poderiam evitar ou amenizar enchentes e tragédias climáticas como as enfrentadas pelo RS?

Gehling – Reformando as EBAPs, com adoção de motobombas submersíveis, com colocação de comportas na rota de saída das águas por gravidade (caso se constate a sua ausência), adoção de válvulas de retenção nas linhas de recalque das EBAPs para o lago, e com implantação de sistema de vedação nas portas das estações de bombeamento para impedir a saída das águas, invadindo o polder.

EC – A possível substituição do muro de concreto da Mauá por um sistema móvel irá garantir a segurança e a proteção?

Gehling – Recentemente uma empresa venceu o processo licitatório para exploração da área do cais, que é externa ao polder. Pelo que consta, esta empresa pretende implantar um muro móvel, em substituição ao muro existente na avenida Mauá. Não tenho a informação de qual a extensão do muro de concreto que será substituído, mas creio que será uma parte do existente. Este muro móvel a ser implantado provavelmente será composto por muitos módulos.

Cabe uma reflexão. Se com um muro de concreto temos invasão de água em cada uma das comportas, qual será o risco com a nova obra proposta? Basta que um dos módulos levadiços ou articulados não funcione, e o polder será invadido pelas águas.

Talvez a intenção de substituir o muro fixo por um móvel venha a ser tema para debate na Câmara de Vereadores. A instituição zela pelos interesses da população. Se os atingidos pela inundação de 2024 forem consultados, expressarão se optam por preservar o muro atual, ou substituí-lo por um tecnologicamente sofisticado. Este, seguramente, exigirá atenções mais frequentes e sofisticadas para garantir a sua funcionalidade.

EC – Há perspectivas de que a área alagada interna ao polder evolua, a partir do dia 7 de maio?

Gehling – Infelizmente, ao responder já posso aportar não uma possibilidade, mas um fato. Na manhã de hoje, 6 de maio, estamos constatando a invasão de novas áreas no Menino Deus e na Cidade Baixa. A causa é que a EBAP 11 também deixou de operar. É possível que nos próximos três dias mais alguma também venha a falhar.

EC – A municipalidade vem, há cerca de pelo menos 15 anos, implantando reservatórios de amortecimento de cheias. Qual a sua visão da funcionalidade dos mesmos?
Gehling – Interessante o questionamento. Os reservatórios de amortecimento de vazões nos sistemas de drenagem pluvial, foi concebido por colega meu, professor do IPH Carlos Tucci. A função dos reservatórios de amortecimento concebidos e projetados é linearizar as vazões que escoam nas galerias pluviais, em direção às Ebap. E são diversas as áreas de Porto Alegre que passaram a manter as vias livres de alagamentos, pelo sucesso dos reservatórios.

Devido à situação excepcional de comprometimento do nosso polder, eu penso que enquanto as Ebap estiverem inoperantes, as bombas que promovem o esgotamento dos reservatórios devam ser desligadas pelo DMAE. Pelo menos de algumas. A razão para esta sugestão é que com as áreas mais baixas nas proximidades das estações de bombeamento alagadas, se os reservatórios forem esvaziados, teremos um aumento do volume e da altura da água nas áreas mais baixas já alagadas.

EC – Os equipamentos instalados nas EBAP são os mais adequados?
Gehling – Atualmente não são os mais adequados. Mas não se trata de falha de desatenção de projeto ou de execução na época da implementação. Se o nosso sistema de proteção contra cheias fosse implantado hoje, todas as EBAP seriam, provavelmente, com motobombas submersíveis. Esta terminologia indica que devem estar sempre afogadas, ou seja, cobertas por uma lâmina d´água. Com os motores de poço seco que ainda temos em algumas EBAP, quando a água estiver a ponto de os cobrir, a instalação deve ser desligada.

Quando houve a implantação das EBAP de nosso sistema de proteção, as motobombas submersíveis ainda não estavam disponíveis no mercado. Algumas das EBAP, não sei especificar quais, já contam com as desejáveis motobombas submersíveis. Elas têm capacidade para até 2.500 litros por segundo.

Um fator secundário, mas que requer alguma atenção, é que quando da concepção do sistema de proteção contra cheias, a área interna ao polder tinha um determinado grau de permeabilidade. Mas a progressiva adoção de pavimentos asfálticos, e em menor grau de pavimentos de concreto, diminuíram a permeabilidade, gerando maiores vazões afluentes às EBAB. Também diversos terrenos vagos passaram a ter áreas construídas. Seria adequado proceder a uma revisão dos conjuntos elevatórios, para os atuais coeficientes run-off, ou seja, os coeficientes de rolamento, que podem variar entre zero e um: “zero” para areias grossas com freático afastado da superfície, e praticamente “um” para pavimentos de concreto sem fissuras.
Registre-se que Porto Alegre tem leis que obrigam a que ocupações que tenham uma superfície impermeável, devem gerar uma vazão máxima de saída da propriedade de 20,8 L/s.ha (20,8 litros por segundo por hectare) para a rede de drenagem pública de águas pluviais. Isto contribui significativamente para minimizar as vazões circulantes nas galerias pluviais, e consequentemente minimizar as vazões afluentes às EBAP.

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