AMBIENTE

Governo gaúcho não cumpre legislação sobre gestão das águas

Apesar de pioneiro na legislação sobre o gerenciamento dos recursos hídricos, o RS ficou para trás na implementação da lei e ignora o preceito constitucional dos Comitês de Bacias Hidrográficas
Por Silvia Marcuzzo / Publicado em 17 de maio de 2024
Governo gaúcho não cumpre legislação sobre gestão das águas

Foto: Maurício Tonetto/Secom Governo RS

Reunião do governador Eduardo Leite (PSDB) com prefeitos após enchentes que arrasaram o Vale do Taquari no ano passado: fórum específico sobre águas não entrou na pauta

Foto: Maurício Tonetto/Secom Governo RS

A água é essencial para todos. Mas como há períodos de estiagem, de cheias e o uso distinto do solo – possíveis conflitos pelo seu uso –, a Constituição Brasileira estabelece que é preciso haver instâncias de participação de diferentes usuários para debater e definir o melhor gerenciamento desse recurso.

Por ser um insumo valioso e ter múltiplos usos – e envolver muitos interesses –, há um fórum específico estabelecido na Constituição do Rio Grande do Sul para tratar sobre recursos hídricos. São os Comitês de Bacia Hidrográfica (CBH) como unidades básicas de gerenciamento e gestão das águas, considerando o uso e a ocupação do solo. No capítulo II, Da Política de Desenvolvimento Estadual e Regional, o Artigo 171 institui o Sistema Estadual de Recursos Hídricos, que precisa estar integrado ao sistema nacional de gerenciamento desses recursos.

No entanto, apesar de o RS ter sido o pioneiro na legislação sobre o tema – o primeiro comitê do país foi o do Rio do Sinos, há mais de 30 anos –, o estado não só está atrasado na implementação da lei, como também está ignorando o que preconiza a legislação. Há comitês sem receber recursos por mais de oito anos. O comitê da Bacia do Rio Maquiné, no Litoral Norte, por exemplo, foi despejado por falta de aluguel. Quase todos os comitês hoje têm sua secretaria executiva funcionando na casa do presidente.

No encontro dos comitês de bacias da Região Sul, em março deste ano em Santa Catarina, o deputado estadual Miguel Rossetto (PT), criador da Frente Parlamentar das Águas, salientou a situação da gestão dos recursos hídricos.

Governo gaúcho não cumpre legislação sobre gestão das águas

Foto: Maurício Tonetto/Secom

Estado não conta com um agência de bacias, que tem entre suas funções prevenir enchentes

Foto: Maurício Tonetto/Secom

O estado não conta com agências de bacia – deveria haver uma para cada uma das regiões hidrográficas: Uruguai, Guaíba e Litoral. Dos 25 comitês do estado, poucos conseguem funcionar. E os que estão em operação são controlados por voluntários. “Os comitês não têm recurso algum, não têm sede, não têm memória, porque o sistema de recursos hídricos é ignorado pelo governo do estado”, afirma Rossetto.

O parlamentar sintetiza que “há um vazio institucional, porque as três agências executivas que deveriam assessorar os comitês não saíram do papel”. Sem financiamento e sem estrutura, “os comitês não conseguem realizar seu trabalho de planejamento da gestão das bacias hidrográficas, um problema sério com impactos incalculáveis para todos, já que tem sido comum a ocorrência de eventos extremos, com estiagens severas e enchentes históricas”, completa.

Apesar do pioneirismo da Lei Estadual 10.350/1994 para o país, passados 30 anos, “o Rio Grande do Sul ficou para trás”, lamenta o deputado. Ele defende a criação de um Instituto das Águas, uma instituição pública, que incorpore o trabalho do Departamento de Recursos Hídricos e das três agências. “Isso daria autonomia, força institucional e recursos para apoiar os comitês e implementar a política de recursos hídricos no estado.”

Segundo a Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura, atualmente o Departamento de Gestão de Recursos Hídricos e Saneamento (DRHS) dispõe de 34 funcionários, sendo 18 na Divisão de Outorga. Para se ter uma ideia, o Instituto Água e Terra do Paraná tem 860 servidores, e o Instituto Mineiro de Gestão das Águas em Minas Gerais, 150.

Planejamento territorial e prevenção a desastres

Governo gaúcho não cumpre legislação sobre gestão das águas

Foto: Tânia Rego/ Agência Brasil

Diretrizes do Plano de Gerenciamento da Bacia do Caí não foram seguidas pelo governo, diz Altenhofen, da Upan (E)

Foto: Tânia Rego/ Agência Brasil

Os desastres climáticos provocaram incalculáveis prejuízos e 81 mortes em 2023 no RS. As águas de enchentes e enxurradas ceifaram vidas em março, junho, julho, setembro, novembro e dezembro, em distintas regiões do estado, conforme a Defesa Civil. Em todos os casos, nenhum comitê foi chamado para ser ouvido sobre a situação ou recuperação das áreas.

Esse contexto angustia o ambientalista e presidente do Comitê do rio Caí, o biólogo Rafael Altenhofen. Ele reitera a importância da bacia hidrográfica como unidade de análise das ações de prevenção de desastres. É uma diretriz da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil.

Rafael acrescenta que o Plano de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio Caí (Plano Caí), aprovado em 2014, incorpora vários aspectos que deviam ser considerados pelo governo do estado, como gestão de oferta hídrica, ações emergenciais de eventos críticos, zoneamento de áreas inundáveis e ampliação e operação de sistema de alerta contra cheias.

O biólogo lembra que o comitê do Caí aprovou, no ano passado, uma resolução que exige a incorporação do zoneamento das áreas de passagem de enxurradas. Além disso, determina que sejam atualizados os cálculos e as delimitações das cotas de inundação e seus respectivos Tempos de Recorrência (TRs), os quais são as marcações até onde um rio pode subir.

Com a intensificação de eventos climáticos extremos, as médias se alteraram. Na inundação de novembro de 2023, em São Sebastião do Caí, por exemplo, a delimitação de cota prevista para ser atingida pela TR 100 foi ultrapassada e muito. “Se tivesse sido construído um sistema de diques no município, utilizando tal cota como referência, as águas teriam transposto esses facilmente – gerando riscos ainda maiores à população.”

O presidente da Associação dos Servidores da Sema (Assema), Pablo Pereira da Silva, destaca o quanto o trabalho realizado pela Secretaria está aquém do ideal não só em função do baixo número de servidores para a grande demanda.

“Os servidores fazem o possível quanto a outorgas e apoio técnico a comitês de bacia, mas há outros instrumentos muito importantes previstos na Lei Estadual 10.350/1994 que não estão sendo implementados”, aponta. Ele cita que, apesar disso, há exemplos positivos, como o Programa Estadual de Revitalização de Bacias Hidrográficas, nas bacias do Sinos e Gravataí, o qual deveria ser ampliado a todas as bacias hidrográficas do estado.

A Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) informou, por meio de nota enviada pela sua assessoria de imprensa, que os repasses aos comitês eram feitos, até então, mediante convênios com universidades, associações de usuários de água e outras instituições.

“O governo do Estado está revisando os procedimentos e os comitês estão sendo instruídos sobre como acessar os recursos. Ainda, está em andamento a construção de um instrumento que irá propor modelos de serviços públicos que qualificarão as atividades de representação institucional buscando, de forma constante, o aprimoramento dos comitês com vistas à eficiência e ao bom funcionamento das estruturas necessárias, modernizando os regramentos relativos à manutenção dos Comitês de Gerenciamento Bacia Hidrográfica”, afirma o comunicado.

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