Agro, maior emissor de gases, ficou fora da regulação do mercado de carbono
Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
Após deixar de fora o agronegócio das obrigações previstas do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), a Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado aprovou por unanimidade o projeto de lei (PL) 412/2022, que regulamenta o mercado de carbono no Brasil. O substitutivo foi apresentado pela senadora Leila Barros (PDT-DF), presidente da CMA e relatora da matéria. A matéria segue para a Câmara dos Deputados, a menos que haja pedido para votação no Plenário.
O mercado de crédito de carbono é um sistema de compensações de emissão de dióxido de carbono e outros gases de efeito estufa. Por esse mecanismo, empresas que não atingiram suas metas de redução podem comprar créditos de carbono de quem conseguiu reduzir emissões ou preservar florestas.
A matéria regula o mercado de carbono para empresas que emitem acima de 10 mil toneladas de gases do efeito estufa por ano. Pelo texto, essas empresas devem apresentar ao órgão gestor do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE), todos os anos, um plano de monitoramento e relato de emissões e remoções de gases de efeito estufa.
Já as empresas que emitem mais de 25 mil toneladas por ano terão um limite para emissão dos gases na sua linha de produção.
Caso a empresa extrapole o limite após o fim do período medido, ela precisará buscar cota excedente de outra companhia que emitiu quantidade menor que a sua cota ou adquirir créditos de carbono reconhecidos no SBCE.
Agro reponde por 75% das emissões do Brasil
Para Tasso Azevedo, coordenador do consórcio MapBiomas e arquiteto do Fundo Amazônia, a exclusão do setor que responde por 75% das emissões do Brasil transformou o PL que seria “um dos mais sofisticados do mundo” numa lei “nanica”.
“Não há mercado de carbono que exista retirando o setor que mais tem emissões. Em outros países que têm mercados e não tem agro, isso se deve ao fato de que essa não é a principal fonte de emissões, e sim os combustíveis fósseis”, afirma o engenheiro florestal, que ajudou a redigir o decreto que estabeleceu a necessidade de um mercado de carbono no Brasil, em 2010.
De acordo com o texto aprovado, o SBCE terá participantes em dois níveis: empresas ou pessoas físicas que emitirem mais de 10 mil toneladas de CO2 equivalente (tCO2e) por ano deverão reportar suas emissões obrigatoriamente, mas não terão meta de redução. Já emissores que despejem mais de 25 mil tCO2e anuais na atmosfera serão obrigados a reduzir. A definição já estava prevista na penúltima versão apresentada pela relatora. O que mudou no texto final é que a produção primária agropecuária foi nominalmente excluída, independentemente do quanto for emitido pelo setor.
“A melhor opção era a versão anterior, que deixava aberta a possibilidade de entrada de setores diversos gradualmente, de acordo com critérios técnicos. Havia uma margem para que se discutisse com mais tempo com o próprio setor, durante a regulamentação do PL”, avalia Guarany Osório, coordenador do Programa Política e Economia Ambiental do GVCES (Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV).
Por outro lado, ele destaca que o agronegócio não foi retirado da política climática brasileira e que há outros mecanismos mais adequados para induzir a redução de emissões do setor. “A política de clima de um país não tem uma ‘bala de prata’. Não há um instrumento único de política pública que vá resolver todas as emissões. Não é com mercado de carbono regulado que se vai combater desmatamento ilegal, e sim com comando e controle. O Brasil precisa ter um pacote de instrumentos para cumprir suas metas, e está desenvolvendo isso. O mercado de carbono é uma peça na engrenagem”, afirma.
Azevedo diz que, caso a exclusão permaneça, o país joga fora uma ferramenta importante para reduzir emissões. Ele explica, ainda, que considerada a taxa de 25 mil toneladas de emissões de CO2 equivalente ao ano, a medida atingiria menos de 1% dos produtores. “Quem está sendo protegido? Quem desmata. Aqueles que produzem com base no desmatamento são os que têm altas emissões. Esse PL, se não tirasse o setor de agropecuária, seria um dos mais inovadores do mundo. É uma coisa muito boa transformada em um projeto nanico”.
Já Shigueo Watanabe Jr., especialista sênior do Instituto Talanoa, centro de estudos dedicado à política climática afirmou à Folha, que o mercado regulado não é o instrumento adequado para induzir mudança na agricultura. “Não existe vaca elétrica ou plantação de arroz a hidrogênio”, afirma. Segundo ele, a produção no campo é pulverizada e a imensa maioria das propriedades rurais ficaria abaixo dos patamares mínimos de emissão, o que às deixaria fora do alcance da lei automaticamente.
Descarbonização da economia
O mercado regulado de carbono busca induzir a descarbonização da economia e funciona através de limites de emissão (“cap”) e do comércio de permissões de emissão gerados por quem reduzir mais do que precisava (“trade”). No caso brasileiro, o Plano Nacional de Alocação vai definir as Cotas Brasileiras de Emissões (CBEs), ou seja, a quantidade de CO2 equivalente a que cada participante do mercado tem direito. As cotas podem ser compradas por aqueles que não atingirem suas metas de emissão.
Além das CBEs, há um outro ativo comercializável: o Certificado de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVE). Esse crédito é gerado quando há efetiva redução nas emissões, e também pode ser comprado e vendido para atenção às metas – inclusive internacionalmente, para que países cumpram suas metas no Acordo de Paris. Cada cota ou CRVE representa 1 tonelada de CO2 equivalente. “O mercado regulado é um instrumento que ajuda ao mesmo tempo a induzir transformações e a reduzir as emissões da forma mais custo-efetiva, ou seja, da forma mais barata possível”, analisa Osório.
Salvaguardas ambientais
O PL 412/2022 determina, ainda, a garantia dos direitos de comunidades tradicionais e indígenas na comercialização de Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões e de créditos de carbono, condicionado a salvaguardas ambientais e ao consentimento das comunidades, que deve ser obtido via consulta prévia, livre e informada. O ponto também é considerado um avanço pelos especialistas ouvidos pelo OC, que relatam que hoje, sem regulação, há inúmeras denúncias de violações para a negociação de créditos com essas comunidades.
No Senado, a bancada ruralista argumentou que era preciso “mais tempo” para que o agronegócio entrasse na definição de metas de redução de emissões, já que a mensuração e verificação seria mais complexa do que nos setores da energia e da indústria. Tereza Cristina (PP-MS), por exemplo, falou que é preciso “segurança nas métricas”, o que exigiria mais tempo de estudos.
O argumento é enganoso: as emissões agregadas do setor agropecuário são medidas no Brasil há mais de duas décadas, e todos os anos elas são atualizadas pelo SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima). É possível desenvolver métricas que cheguem ao emissor individual – computando, por exemplo, consumo de fertilizantes na fazenda, número de cabeças de gado, área sob plantio direto e consumo de calcário.
“Caso a limitação fosse de alguma maneira a forma de calcular as emissões, isso poderia ser colocado como uma condicionante para entrar no mercado. Da mesma forma que há salvaguardas para não prejudicar setores econômicos na inserção no Plano, poderia haver uma cláusula definindo que só pode entrar no mercado com sistemas de monitoramento estabelecidos. Não é uma questão técnica”, podera Tasso Azevedo.
Cotas
O SBCE prevê cotas de emissão anual de gases de efeito estufa distribuídas aos operadores. De acordo com a proposição, quem reduzir as próprias emissões pode adquirir créditos e vende-los a quem não cumprir suas cotas. O objetivo é incentivar a redução das emissões, atendendo a determinações da Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei 12.187, de 2009) e acordos internacionais firmados pelo Brasil.
De acordo com o PL 412/2022, ficam sujeitas ao SBCE empresas e pessoas físicas que emitirem acima de 10 mil toneladas de gás carbônico equivalente (tCO2e) por ano. Esses operadores devem monitorar e informar suas emissões e remoções anuais de gases de efeito estufa. Quem emitir mais de 25 mil tCO2e também deve comprovar o cumprimento de obrigações relacionadas à emissão de gases.
Líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA) elogiou o relatório apresentado e destacou o trabalho para agilizar a tramitação da matéria, uma das prioridades da gestão Lula este ano. A ideia é que a matéria seja aprovada até novembro, para ser apresentada na 28ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP28), que ocorrerá entre 30 de novembro e 12 de dezembro.
Pressão do agronegócio
A votação da matéria só foi possível após um acordo acordo firmado por pressão da Frente Parlamentar da Agropecuária, que sugeriu emendas ao texto. A última versão do relatório traz um novo parágrafos que não considera a produção primária agropecuária como atividades, fontes ou instalações reguladas e submetidas ao SBCE. Outro dispositivo aprovado retira do sistema as emissões indiretas decorrentes da produção de insumos ou de matérias-primas agropecuárias.
“O mérito das emendas reflete o que se observa nos principais mercados regulados de carbono em que a agropecuária não é incluída na regulação, sobretudo pela importância do setor para a segurança alimentar e pelas muitas incertezas ainda existentes na metodologia de estimativa de emissões. Entendemos que mais importante do que regular atividades agropecuárias é incentivar a difusão de técnicas de agricultura de baixo carbono que, ao mesmo tempo, aumentem a renda do produtor rural, tornem os sistemas rurais mais resilientes aos efeitos adversos da mudança do clima e proporcionem redução e sequestro de emissões”, disse Leila Barros.
A reunião desta quarta-feira contou com a presença do ministro Alexandre Padilha, das Relações Institucionais. Parlamentares que representam a bancada ruralista elogiaram a mudança.
“O agro neste momento é excluído. Fizemos um acordo que foi integralmente cumprido. Já estamos trabalhando para que o agro tenha suas métricas e possa estar nesse mercado em breve, mas com segurança e com as nossas métricas”, afirmou a senadora Tereza Cristina (PP-MS), ex-ministra da Agricultura de Jair Bolsonaro.
Ativos e certificados
Segundo o PL 412/2022, o órgão gestor do SBCE deve elaborar o Plano Nacional de Alocação (PNA), que vai definir a quantidade de emissões a que cada operador tem direito. Essa quantidade é representada pelas Cotas Brasileiras de Emissões (CBEs). Cada CBE (equivalente a 1 tCO2e) é considerada um ativo comercializável, que pode ser recebida gratuitamente pelos operadores ou comprada para “conciliar” as metas de emissão.
Além das CBEs, o projeto cria o Certificado de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVE). Outro ativo comercializável, o CRVE representa o crédito de carbono gerado pela efetiva redução de emissões ou remoção de 1 tCO2e de gases de efeito estufa. O certificado também pode ser comprado pelas empresas e usado no cálculo para comprovar o cumprimento de suas metas. Além disso, o CRVE pode ser usado, após autorização, em transferências internacionais no âmbito do Acordo de Paris.
Todos os operadores devem apresentar periodicamente um plano de monitoramento e um relato das emissões e remoções de gases de efeito estufa. Já aqueles com emissões superiores a 25 mil tCO2e devem comprovar que detêm CBEs e CRVEs equivalentes a suas emissões.
Esses ativos podem ser transacionados em bolsa de valores conforme regulamentação a ser feita pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Sobre o lucro resultante da venda incide imposto de renda, calculado sobre o ganho líquido quando a transação ocorrer na bolsa, ou sobre o ganho de capital, nas demais situações.
Sobre as transações, não incidem tributos como PIS/Pasep ou Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins). O uso de CBEs e CRVEs para compensar emissões permite a dedução dos gastos relacionados na apuração do lucro real e da base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
Segundo o PL 412/2022, o PNA deve ser aprovado pelo menos 12 meses antes de entrar em vigor e pode estabelecer tratamento diferenciado para determinados setores em razão das características das atividades, do faturamento, da localização e dos níveis de emissão. Todos os ativos devem estar inscritos no Registro Central do SBCE, onde deve ser feita a contabilidade de CBEs e CRVEs concedidos, adquiridos, detidos, transferidos e cancelados (usados na conciliação de metas).
Punições por decumprimento
O descumprimento das regras do SBCE pode acarretar punições como multa de até R$ 5 milhões ou 5% do faturamento bruto da empresa. Um ato do órgão gestor do SBCE vai definir as infrações puníveis. Outras sanções previstas são:
- embargo da atividade;
- perda de benefícios fiscais e linhas de financiamento;
- proibição de contratação com a administração pública por três anos; e
- cancelamento de registro.
O projeto prevê que pessoas físicas e jurídicas não obrigadas a participar do SBCE podem ofertar voluntariamente créditos de carbono. A regra vale para créditos gerados a partir de projetos ou programas de redução ou remoção de gases de efeito estufa, como a recomposição de áreas de preservação permanente ou de reserva legal.
Se cumprirem as regras do sistema, esses créditos podem ser convertidos em CRVEs e vendidos. Povos indígenas e comunidades tradicionais, como quilombolas, também podem gerar CRVEs a partir de projetos realizados nos territórios que ocupam.
Governança
Pelo substitutivo aprovado pela CMA, o SBCE terá um órgão gestor encarregado de regular o mercado e rever limites anuais de emissão de gases de efeito estufa acima do qual os operadores serão obrigados a monitorar suas emissões. Outras atribuições do órgão gestor são:
- elaborar e implementar o PNA;
- emitir e leiloar CBEs;
- apurar infrações; e
- aplicar punições pelo descumprimento das regras do sistema.
As diretrizes gerais do SBCE serão estabelecidas pelo Comitê Interministerial para Mudança do Clima, ao qual também caberá a aprovação do PNA. O projeto prevê ainda um órgão consultivo chamado Comitê Técnico Consultivo Permanente, que deve apresentar subsídios e recomendações para o aprimoramento do SBCE.
Período transitório
O PL 412/2022 estabelece um prazo transitório para a entrada em vigor das regras relacionadas ao SBCE. De acordo com o texto, o órgão gestor terá até dois anos para regulamentar o sistema. Depois de feita a regulamentação, os operadores terão mais dois anos antes de serem obrigados a conciliar suas metas — dentro desse prazo, devem apenas apresentar planos e relatos de emissões.
De acordo com a relatora, Leila Barros, o mercado de carbono movimentou cerca de US$ 100 bilhões em 2022, com sistemas em funcionamento em diversos países. “O Brasil tem papel crucial para suprir a demanda de ativos ambientais no contexto de um mercado global de carbono, considerando nosso imenso patrimônio florestal e nossa matriz energética. Um robusto marco regulatório é a base para a transição econômica e climática pretendida”, escreveu a parlamentar no relatório.
Destaques
A CMA rejeitos dois destaques apresentados ao texto. O primeiro, apresentado pelo senador Efraim Filho (União-PB), pretendia que o conceito de crédito de carbono no SBCE abrangesse — além dos critérios de retenção e redução — o de preservação de florestas e biodiversidade. O segundo, do senador Giordano (MDB-SP), buscava excluir os aterros sanitários das regras previstas no projeto de lei.
A comissão considerou prejudicados cinco projetos que tramitavam apensadas ao PL 412/2022. São eles:
- PL 2.122/2021, do senador Weverton (PDT-MA);
- PL 3.606/2021, do senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB);
- PL 4.028/2021, do senador Marcos do Val (Podemos-ES);
- PL 1.684/2022, do senador Jader Barbalho (MDB-PA);
- PL 2.229/2023, do senador Rogério Carvalho (PT-SE).
*Com informações da Agência Senado e Observarório do Clima