O café nosso de cada dia: dos barões ao ecológico e sustentável
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Cerca de 400 bilhões de xícaras por ano fazem do café a bebida mais consumida no mundo depois da água. Os números do setor falam por si: são 160 milhões de sacas produzidas, que resultam em 640 milhões de quilos de café torrado em todo o planeta. Um terço é café brasileiro. E, se no Brasil o café já foi sinônimo de elite, poder e monopólio, como na época da política do Café com Leite, nos dias de hoje, também pode ser associado à responsabilidade social, sustentabilidade, agricultura familiar, ecológica e aos movimentos sociais.
Não é à toa que o café é celebrado em três dias: 14 de abril, Dia Mundial do Café; 24 de maio, Dia Nacional do Café, e 1º de outubro, Dia Internacional do Café. A data nacional tem boa justificativa. Apesar da origem etíope, um terço do café do mundo é produzido no Brasil, maior consumidor e exportador.
A posição se mantém desde o século 19, apesar de, a partir dos anos 1980, ter uma concorrência maior.
Foi no período que ganharam fama grãos de países como Colômbia, Etiópia, El Salvador e Honduras, conhecidos pela alta qualidade do grão.
Foto: Acervo Pessoal
“Entre outras coisas, por condições climáticas que obrigam colher a dedo”, explica o agrônomo Leandro Paiva, mestre e doutor em Cafeicultura pela Universidade Federal de Lavras, professor titular do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais e diretor do Polo de Inovação Agroindústria do Café daquela instituição.
Mas café é um sinônimo de Brasil antes mesmo do futebol e do carnaval.
Exemplo disso é que no café A Brasileira, fundado no ano de 1905, Fernando Pessoa já tomava sua bica, versão portuguesa do expresso italiano.
Fama, de fato, relacionada às grandes produções que derrubaram os preços e popularizaram a bebida.
Hoje, cerca de quase cem anos do fim da era em que os ramos de café passaram a estampar tanto a bandeira do Império quanto o brasão da República, o “cafezinho” brasileiro volta a chamar a atenção.
Desta vez, não mais por aqueles que passaram para a história como os barões do café, mas nas mãos de pequenos agricultores familiares, que agregaram mais qualidade ao produto e um manejo com responsabilidade social e sustentabilidade.
A diversidade no protagonismo
Foto: Café Apuí / Divulgação
Foto: Café Apuí / Divulgação
As grandes fazendas foram se dividindo após a morte de seus fundadores. E a cafeicultura, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic), congrega em sua base micro e pequenas empresas que ocupam 82% do setor.
Paiva entende que, se as oligarquias foram importantes na divulgação do café brasileiro tempos atrás, hoje o fruto e o seu futuro para a economia nacional passam também pelos conceitos de sustentável, orgânico e especial.
Se, à época da ofensiva no mercado por países como a Colômbia, o plantio no Brasil ainda estava totalmente preso à venda por volume, o despertar desses nichos aqui já está incomodando muito outras nações produtoras do gênero. “Antigamente, a gente tinha quatro ou cinco regiões produtoras de volume. Hoje, tem catalogadas 34 regiões que estão se especializando em cafés finos”, relata Paiva. De acordo com ele, nenhum outro país tem tantas localidades podendo oferecer experiências sensoriais distintas.
“A Colômbia, por exemplo, só tem três regiões que vão produzir sempre a mesma qualidade. Nós, com 34, podemos produzir café especial para o mundo inteiro com uma diversidade muito maior. Se formos à Bahia, há três regiões; em Minas, umas cinco; em São Paulo, umas três. Ou seja, se o comprador for só em um estado, ele encontra diversidade maior do que a encontrada na África inteira”, compara.
Apesar dos olhos de quem gosta de café estarem voltados à diversidade brasileira, o professor lembra que a grande indústria nacional continua focada no modelo de commodities (matérias-primas para exportação).
SEM AGROTÓXICOS – O pequeno produtor rural que busca mais qualidade em seu café “procura o momento certo da colheita, pega os frutos mais maduros, os limpa, lava ou descasca para poder ajudar no processo de secagem, que é mais lenta, mais elaborada, revirando o grão para ter uniformidade”, elenca Paiva.
É um processo que, além de melhorar a qualidade, também percorre pelas ideias do socialmente correto, do comércio justo e de sistemas agroflorestais que trabalham o café no sombreamento consorciado a outras culturas.
No mesmo conceito, se nas produções commodity o defensivo agrícola é aplicado preventivamente, lançado para evitar praga e doença, “quem quer fazer uma coisa mais correta monitora a lavoura e na hora que tem necessidade, vai lá e aplica somente a quantidade correta”, pondera.
Assim, aliado aos demais cuidados para um café diferenciado, analisa, um ciclo virtuoso se fecha.
As informações nas certificações de produtos socialmente corretos “criam nichos de mercado e vendem mais. Apesar do custo maior, tem gente que busca isso”, enfatiza o professor.
REFORMA AGRÁRIA – Com produção na Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná, São Paulo e Rondônia, o Movimento dos Sem-Terra (MST) tem 10 mil famílias envolvidas na cultura.
Estão organizadas em quatro cooperativas e pelo menos 30 associações, conforme Daniel Mancio, coordenador nacional da Frente das Cadeias Produtivas do MST.
São cerca de 500 mil sacas/ano. A maioria desse café, lamenta Mancio, ainda não passa pela agroindustrialização e fica com atravessadores, que não agregam valor.
“Apenas 5% de nossa produção se transforma em café torrado e moído sob nossa concepção”, afirma.
Essa é uma das barreiras para o MST ampliar mercado. Superar passa por investimento em estruturas e capacidade de aquisição das safras. “Por isso, políticas públicas são importantes”, acentua ele.
Atualmente, o MST administra três marcas dos chamados Cafés da Reforma Agrária. Elas têm como canais de distribuição as redes Armazém do Campo do próprio MST, pequenos varejos nos estados produtores e parcerias estratégicas no desenvolvimento das marcas camponesas. Nas versões tradicionais, superior, orgânicos e, também, especiais são: Guaií (MG), Terra de Sabores (ES) e Terra Justa (BA).
Mancio destaca que a organização da cadeia produtiva do café está vinculada à estratégia geral do MST, à produção de alimentos saudáveis com proteção ao meio ambiente.
É por isso que está sendo feita uma transição agroecológica que, além da questão ambiental, estimula a capacidade das cooperativas na agregação de valor em processos de intercooperação, os quais se apoiam na formação técnica e no enfrentamento dos desafios industriais, de mercado e investimentos.
Foto: Acervo Pessoal
MULHERES NO SELO – Leandro Paiva diz que a produção de cafés por movimentos sociais, como indígenas e do MST, “já existe há um bom tempo. Não é muita novidade, não”. Para ele, o que está acontecendo é que o trabalho está ficando cada vez mais notório.
Também já não é novidade produção com o caráter identitário de mulheres. É o caso do Café Feminino da Cooperativa dos Agricultores Familiares de Poço Fundo e Região (Coopfam), de Minas Gerais.
A cooperativa, que surgiu em 1980 via discussões ligadas à Pastoral da Terra da Igreja Católica, sempre teve uma participação feminina forte. Na Coopfam, o que iniciou a partir do grupo chamado Mulheres Organizadas Buscando Igualdade (Mobi) culminou em 2020 no literal selo Café Feminino.
Flávia Penha, produtora que faz parte do Conselho Administrativo da Coopfam, recorda a gênese.
“Na realidade da região aqui, mulheres são protagonistas do seu trabalho no café. Seja junto do marido ou não, grande parte das cooperadas fazem toda a tarefa da roça. Nada mais justo de que ela tenha reconhecimento e venda o seu próprio café”, explica. Os produtos são o Orgânico Feminino e o Sustentável Feminino, que passam por uma rigorosa certificação interna. Hoje, 39 cafeicultoras se orgulham das 1.400 sacas da versão sustentável e das 420 do orgânico.
“Por enquanto, exportamos somente o Orgânico Feminino, que vai para os Estados Unidos e Suíça”, ao se referir às 230 sacas que saem anualmente da Coopfam.
Foto: Café Apuí/Divulgação
FLORESTA – O primeiro café agroflorestal sustentável da Amazônia brasileira, ironicamente, leva o nome do município campeão de desmatamento naquela região: Apuí. Fruto da união de famílias que – originárias do Sul e Sudeste para um dos maiores programas de reassentamento da ditadura militar – ainda persistiam na cultura do café, ele surgiu em 2006.
A base foi identificar que os cafezais, ao crescer sombreado por espécies nativas, não só eram mais produtivos, como também ofereciam mais qualidade.
O empreendimento tem certificação orgânica, beneficia 77 famílias que recebem valores acima de mercado e mostra que cuidados com o meio ambiente podem ser mais rentáveis que a pecuária extensiva.