Leonardo Boff: o Brasil não tem um projeto de enfrentamento à crise climática
Foto: Thales Renato Ferreira/ PMSL
O teólogo, filósofo, escritor, professor e membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra, Leonardo Boff afirmou em sua palestra magna na abertura do I Encontro Regional ICLEI Sul e 1º Seminário Internacional de Mudanças Climáticas, na manhã desta terça-feira, 7, em São Leopoldo, que o Brasil não tem um projeto global de enfrentamento à crise climática, que o país “descuida” do meio ambiente e perde a oportunidade de ser um protagonista mundial. “O Brasil poderia ser a mesa posta para as fomes e sedes do mundo inteiro. Mas não é”, enfatizou.
O religioso apresentou painel sobre crise climática nos eventos que ocorrem de forma conjunta até quinta-feira, 7, no auditório Padre Werner da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Com a participação de painelistas nacionais e internacionais, o evento debate a crise climática a partir das comunidades locais, em particular, das cidades latino-americanas; e temas como a mitigação e adaptação das cidades frente à crise climática, reciclagem, energia fotovoltaica e alternativas para a mobilidade urbana.
Foto: Thales Renato Ferreira/ PMSL
NESTA REPORTAGEM
Assessor dos movimentos populares, doutor em teologia pela Universidade de Munique, professor de teologia sistemática e ecumênica com os Franciscanos em Petrópolis (RJ) e de ética, filosofia da religião e de ecologia filosófica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o ex-frei Leonardo Boff é um dos iniciadores da teologia da libertação.
Vestido de vermelho e envergando uma manta, o religioso aproveitou momentos de maior indignação para ironizar a conjuntura política do país. “Essa echarpe aqui não é para esquentar meu pescoço. É um sinal de protesto. Vocês, seguramente me entendem”. Boff dispensou o púlpito e permaneceu em pé durante a palestra de mais de uma hora. “Prefiro assim, embora me custe, porque além de velho sou um homem biônico: tenho quatro próteses, duas no joelho e duas no fêmur”, brincou. Ao final da palestra, ele falou ao Extra Classe.
Extra Classe – O senhor apresentou um panorama bastante sombrio sobre emergências climáticas. Qual o papel do Brasil nesse debate, considerando a atual conjuntura de retrocessos e crimes, inclusive execuções de ativistas?
Leonardo Boff – Creio que estamos vivendo uma sombra que pesa sobre a nossa história que vem desde o tempo do genocídio indígena, da escravidão, da dominação colonial, que culminou nessa forma reacionária antivida do atual governo.
EC – Há espaço para otimismo?
Boff – Como toda sombra, esta sombra prenuncia o nascimento do sol, de uma aurora e de um dia iluminado. Eu espero que tudo isso seja superado nessas eleições e o Brasil possa retomar o seu rumo, porque ele, o país, é fundamental para a humanidade – no sentido de assumir um papel de protagonismo no enfrentamento dessas crises.
EC – Qual seria esse protagonismo?
Boff – O Brasil pode ajudar a humanidade a superar as suas crises, pode ser a mesa posta para as fomes e sedes do mundo inteiro. Nós fomos chamados a isso e vamos cumprir essa missão com um governo responsável enviado ao povo, profundamente respeitador e cuidador da natureza e das pessoas.
EC – Os dados sobre o tema da sua palestra são alarmantes.
Boff – O tema das mudanças climáticas é de extrema importância e de urgência temporal. O que vemos não é animador. Porque eu creio que todo intelectual sério tem que trabalhar com a verdade, não pode esconder os fatos, mas esses fatos não são tragédias. São desafios a serem enfrentados e é isso que nós vamos tentar fazer.
EC – Diante de tanta destruição e ameaça de colapso, qual o futuro possível?
Boff – Eu temo muito que nossos filhos e netos, olhando pra trás, nos amaldiçoem. Porque vão dizer ‘vejam que terra vocês nos legaram, vejam que ar nós estamos respirando, vejam que alimentos industrializados nós estamos comendo e em que solos envenenados nós estamos pisando’. Nós não queremos a maldição dos nossos filhos e netos, queremos o seu reconhecimento, a sua gratidão.
Confira trechos da palestra do teólogo Leonardo Boff
Foto: Thales Renato Ferreira/ PMSL
Ameaça nuclear
“Antes da emergência climática, gostaria de falar de outras ameaças que pesam sobre o sistema terra e o sistema vida. Noam Chomski, talvez o intelectual mais importante dos Estados Unidos, senão do mundo, tem repetido que o grande risco iminente não é o aquecimento global. É uma guerra nuclear de um mais um igual a zero. Isto é, um destrói o outro e acaba a humanidade. E ele disse que, pelas informações que ele tem, há loucos suficientes no Pentágono e no lado soviético que são capazes de deslanchar uma guerra nuclear. Isso, imediatamente, a propósito do ataque que a Rússia fez contra a Ucrânia. Temos que prestar muita atenção, porque nossos dias humanos podem estar contados. E aqueles poucos que sobreviverem terão uma vida tão miserável que irão invejar aqueles que morreram”.
O dia do colapso
“No dia 27 de agosto de 2021, a ONU publicou o Dia de Sobrecarga da Terra (Overshot Day). Significa que aqueles bens e serviços naturais, não renováveis, fundamentais para a sustentação da vida estão se acabando. Na dispensa da Terra já não existem mais. E por que os seres humanos não renunciam a seu consumo, especialmente as classes poderosas que têm um consumo suntuoso, tiram da terra aquilo que ela não pode dar. Então, ela responde com aquecimento global, com envio de vírus, com eventos extremos. Ela se defende, a custa dessas consequências. Quando nós terminamos de superexplorar o planeta Terra? A Terra é um planeta pequeno, velho e com bens e serviços finitos. Não suporta um projeto ilimitado”.
Guerras hídricas
“Só 3% das reservas de água do planeta são potáveis e 0,7% dessas reservas são acessíveis, porque o resto está nas grandes montanhas ou nos aquíferos profundos. Eu trabalho há muitos anos com esse tema junto com o Ricardo Petrella, que a propósito dessa escassez de água propõe um acordo mundial sobre esse recurso que é vital para toda a humanidade. A proposta é uma espécie de contrato social mundial ao redor da água, mas até hoje não obtivemos consenso, não há como convencer os grandes detentores de água. Em um cenário de iminentes guerras de grande letalidade pelo acesso à água potável, 60% dessa água está em oito países e o Brasil é a potência mundial de água doce, podia ser a mesa posta para as fomes e sedes do mundo inteiro se nós fôssemos responsáveis. Coisa que não somos”.
Boff e a Virusfera
“Os pesquisadores da Fiocruz anunciaram quatro dias atrás que, com o propósito de pesquisar o coronavírus, acabaram descobrindo 173 novos vírus, bactérias e vermes diferentes que estão na iminência de se difundirem. E o grande cientista David Quammen, que previu o Ebola e o coronavírus, tinha avisado a todos os chefes de Estado que viria um grande vírus que atingiria a humanidade com grande letalidade. Ninguém deu ouvidos. E só aqueles países que tinham o SUS como nós e como a Inglaterra conseguiram contornar a pandemia. Estamos diante de uma invasão que vai criar uma nova esfera, a Virusfera. Como alertou Quammen, o next big one, contra o qual não há vacina, não há antibiótico, pode ser uma transmutação do coronavírus e levar, hipoteticamente, claro, a humanidade ao seu desaparecimento”.
Boff: “A minoria rica quer resetar o capitalismo”
“Se concretizado, esse projeto da grande reinicialização do sistema capitalista, o Great Reset que esse parasita, o príncipe Charles, propôs em Davos e foi aceito, vai radicalizar o capitalismo mediante uma nova forma de ditadura cibernética. De tal maneira que, com a inteligência artificial poderão controlar cada uma das pessoas e toda a humanidade para que eles garantam as suas fortunas. Ou seja, esse 0,01% dos milhardários da humanidade estão se articulando nesse projeto da grande reinicialização do capitalismo. De uma forma mais radical, que seja inatacável. E como comentam ainda: como todo poder sempre evoca um antipoder, poderão ter que eliminar milhares de pessoas que se oponham a esse projeto. Veja a maldade de um projeto desses! Eles pensam nas suas fortunas… Mas você não planta dinheiro, dinheiro não cresce, dinheiro não alimenta. É apenas um meio. E nós temos que definir os fins, que sejam humanitários, que sejam voltados para a vida e a floração de todas as virtudes presentes no ser humano”.
Impactos sociais do clima
“Entre 1850 e 2019 foram lançados na atmosfera 3 bilhões e 390 milhões de toneladas de CO2. A cada ano são 40 milhões de toneladas lançadas na atmosfera. E aqui nós perguntamos, como é que o estômago da Terra pode digerir tudo isso? Ela não consegue, está dando sinais de cansaço. E por isso, há uma frequência dos eventos extremos, furacões, enchentes, como nós assistimos pelo país, na Bahia, em Minas Gerais, no Tocantins, agora em Manaus, as secas aqui no Sul. Estão ocorrendo e vão ocorrer cada vez mais, com mais frequência e com mais radicalidade. No final de abril, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) alertou que os impactos em todo o mundo da mudança climática constituem uma ameaça séria para a humanidade. A cientista brasileira Patrícia Pinho, responsável pela análise dos impactos sociais relacionados ao clima alerta para os sofrimentos humanos que virão face às mudanças climáticas”.