“O que nos resta é a resistência”
Foto: Mídia Ninja
Dinamam Tuxá é integrante da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). De origem Tuxá, povo indígena que vive nos estados da Bahia, Pernambuco e Minas Gerais, ele é advogado, com mestrado e doutorando em desenvolvimento sustentável pela Universidade de Brasília (UnB) e coordena o movimento nas regiões do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo que, literalmente, estão pegando fogo. Nesta entrevista, o baiano Dinamam fala para o Extra Classe sobre a perplexidade dos povos indígenas diante do crescimento da popularidade do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). “Por que há, dentro da população brasileira, um apoio a uma pessoa tão desumana?”, indaga. Ao mesmo tempo, o líder indígena revela que as pressões internacionais contra a política que chama de genocida podem trazer bons efeitos quando, “se Deus quiser”, o presidente não se reeleger. Com uma visão muito pessimista para os próximos dois anos, Dinamam Tuxá, no entanto, assinala: “cenários como esses nós já vivenciamos e sobrevivemos. O que nos resta é fazer a resistência”, aponta.
Extra Classe – Como é para você viver em um país onde é necessário recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que o governo federal adote medidas de proteção aos povos indígenas durante a pandemia da Covid-19?
Dinamam Tuxá – Olha, a gente fica muito indignado. Revoltado, tendo em vista que a obrigação institucional dos órgãos de governo seria para botar medidas sem interferência do Judiciário. Era pra ser algo natural, para que nós pudéssemos, de alguma forma, avançar no combate da Covid-19 dentro das terras indígenas. Infelizmente nós estamos vivenciando hoje um cenário de institucionalização de um genocídio. Aí, fica cada vez mais evidenciado, mais claro para nós indígenas, que este governo tem sim um projeto político. E dentro desse projeto político está o extermínio dos povos indígenas.
EC – E como vocês da Apib se movimentam nesse cenário?
Dinamam – Nós estamos fazendo um enfrentamento diário, não só com a pauta da Covid-19, mas de todo o desgoverno, de todo o desmonte da política indigenista.
EC – Você imaginou que o Brasil chegaria a esse grau de hostilidade de um governo às causas indígenas?
Dinamam – Não! O Brasil passou por várias transformações. Principalmente no fortalecimento da democracia. Antes, nós passamos por um período muito complicado na ditadura militar. Os povos indígenas, em especial, foram objetos de diversos ataques, diversas violações de uma política integracionista. E aí agora a gente está num momento reavivando toda a prática que foi iniciada na ditadura militar que, na realidade, nunca parou. Só que antes disso (antes de Bolsonaro), surgiram situações políticas que amenizaram todas essas violações de direitos, até nós sermos surpreendidos com um governo de ultradireita, com um pensamento da ditadura militar, aplicando políticas da ditadura militar, inclusive. Ou seja, não só de pensamento, mas desenvolvendo ações muito parecidas ou idênticas às da ditadura militar.
EC – Que ações?
Dinamam – A ideia do integracionismo, a ideia de extermínio, a ideia da exploração dos territórios. A ideia de trazer os povos indígenas para a “comunhão nacional”, desrespeitando as nossas especificidades, desrespeitando o nosso modelo de vida, desrespeitando a maior diversidade de povos do mundo em nome de um “desenvolvimento”, em nome de uma ideologia política que – não só está matando os povos indígenas – mas, também, destruindo uma cultura, uma diversidade de línguas. São ações que estão acabando com o meio ambiente, a biodiversidade. Infelizmente, a gente está vivenciando o pior cenário político que a gente poderia imaginar, agravado pelo contexto da pandemia.
Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados
EC – Por que “surpreendidos”? Afinal, Bolsonaro sempre declarou sua antipatia às causas indígenas.
Dinamam – Olha, na realidade, a gente sabia do discurso dele. Tínhamos conhecimento de que em todo o período de parlamentar e na campanha (presidencial) ele atacou sempre os povos indígenas. Ele deixou sempre muito bem claro em toda a sua vida política o quanto ele odiava os povos indígenas. O que nós não sabíamos é que a população brasileira iria comungar com esse projeto político genocida. Que iria apoiar ações, ideologias de um político totalmente desiquilibrado, totalmente fora dos padrões políticos, inclusive. Então, o que mais nos surpreendeu é que houve apoio maciço da população. Percebemos também, o que gerou, na verdade, maior indignação, é que os devaneios desse atual governo têm apoio político de partidos, de pessoas que também têm uma trajetória política dentro do Congresso Nacional. Gente que apoiou essa candidatura, que foi buscar de todas as formas que ele fosse eleito e ainda continua dando forte apoio ao atual governo mesmo diante de todo um cenário que vem de destruição do meio ambiente, de enfraquecimento da política ambiental, de enfraquecimento da política indigenista, com aumento, inclusive, de contaminações e morte pelo coronavírus. Mesmo assim, diante de um cenário tão desolador, a gente percebe que há um aumento da sua popularidade. Aí fica a reflexão: Onde nós vamos chegar? Onde nós chegamos, na verdade! Por que há, dentro da população brasileira, um apoio a uma pessoa tão desumana, que não cumpre com os padrões aceitáveis, inclusive, para se viver em sociedade? Nós enquanto indígenas estamos muito preocupados porque este cenário nós já vivenciamos no passado. Um cenário de extermínio, de genocídio. A morte acabou sendo normalizada dentro do nosso espaço social.
EC – O apoio de parte da população a Bolsonaro gera um ressentimento nas comunidades indígenas?
Dinamam – Gera uma certa surpresa. Justamente por entender que ele vem fazendo uma má política, que tem um discurso totalmente desalinhado com a comunidade internacional, que tem um projeto político que ainda não foi consolidado em termos econômicos, por exemplo. Nós não percebemos um avanço, uma melhora, por exemplo, na população como um todo. Para os povos indígenas, vou falar uma coisa muito clara: ele é ruim, ele nos mata, ele promove a desigualdade, ele promove as invasões das nossas terras; ele tem um discurso que insufla o ódio contra nós. Dentro de uma guerra que foi declarada, uma guerra injusta contra os povos indígenas, ele utiliza do instrumento do poderio da presidência para nos atacar, para promover a violência, para promover o ódio, pra difundir ainda mais a desigualdade.
EC – De que forma o governo promove essa desigualdade?
Dinamam – Paralisaram as demarcações de terras indígenas, as políticas públicas para os povos indígenas. Bolsonaro enfraqueceu a nossa instituição, a Funai. Os povos indígenas concentram a maior área de preservação. Temos 82% dos povos indígenas do mundo e 32% da biodiversidade dentro das nossa áreas. Nós protegemos o meio ambiente pra manter o equilíbrio global. Toda essa contribuição não é enxergada por parte da sociedade e muito menos pelos governantes. E o que nos preocupa é que diante de um cenário tão danoso quanto este, com a perda de renda, com o aumento da contaminação, com o aumento das mortes por Covid-19, com a falta de uma política estruturante e, principalmente, com o fomento do racismo institucional, mesmo assim esse homem lidera todos os cenários. Eu não sei de fato o que é que está acontecendo com a população brasileira. Sinceramente, é algo que precisa ser estudado. Diante de tantas mazelas, esse homem ainda ter um apoio forte, eu acho desolador.
EC – Existem saídas para essa situação em sua opinião?
Dinamam – Eu vejo saídas. Nas eleições passadas houve um grande número de abstenções, pessoas que não compareceram às urnas. Eu vejo ainda que há um grande público que se comove. Não vou generalizar, mas nós temos muito apoio da sociedade brasileira e temos o apoio da comunidade internacional. Então, pensando um pouco da interferência econômica dessas comunidades, dos tratados e acordos internacionais, os demais países de certa forma possam pressionar o governo brasileiro para lutar contra o desmatamento, buscar proteção aos direitos dos povos indígenas.
EC – Como é a relação da Apib com a comunidade internacional?
Dinamam – Falei da opinião pública internacional, dos tratados. Esses instrumentos nós nos apropriamos e estamos trabalhando diante de um cenário internacional para tentar reverter esse cenário aqui no Brasil. Percebemos que os governos de outros países estão cumprindo com a sua função, que é enquadrar o governo brasileiro diante de uma série de violações, especialmente de cunho ambiental e de direitos humanos.
EC – Você acha realmente que estão conseguindo enquadrar o governo?
Dinamam – Economicamente nós conseguimos grandes avanços. Na prática, ainda não chegaram esses reflexos dentro das terras indígenas, mas nós estamos percebendo que agora se abre um diálogo para tentar atender nossos pedidos no acordo da União Europeia com o Mercosul. Países como França, Holanda, Áustria, Bélgica já colocaram que o acordo, na forma como está, não pode passar. Ele precisa garantir os direitos dos povos indígenas e a questão ambiental. Então, essa exposição internacional acaba constrangendo o governo brasileiro, que precisa apresentar algumas medidas que garantam a integridade dos povos indígenas. Mesmo que sejam fictícias, elas acabam mobilizando o tema para abrir o debate, uma discussão mínima que seja. Essas interferências internacionais têm sido bastante importantes.
EC – Isso não pode demorar demais?
Dinamam – Como falei, ainda não percebemos na prática o reflexo disso, mas acreditamos que nos próximos anos, no fim do mandato dele (Bolsonaro) – se Deus quiser ele vai sair –, que vai ter um reflexo positivo, sim. Nos próximos dois anos, acreditamos.
Foto: Mídia Ninja
EC – Na suspensão das ações de fiscalização e combate ao garimpo ilegal na Terra Indígena Munduruku, no Oeste do Pará, o ministro Ricardo Salles disse que entre os que defendem o garimpo havia lideranças indígenas. Até deu uma carona para essas lideranças em um avião da FAB para fazer lobby em Brasília. O que tem a dizer sobre isso?
Dinamam – Olha, ele (Salles) utiliza isso como subterfúgio. O de pegar algumas pessoas, indígenas ou não indígenas, para tentar legitimar o discurso de que até os indígenas querem minerar suas terras, explorar suas terras. É um pequena porcentagem em uma esfera gigantesca de diversidades de povos. Nós somos 305 povos, mais de um milhão de indígenas. Daí você pegar uma ou duas lideranças e afirmar que os indígenas do Brasil querem minerar, eu acho que é um pouco leviano. Tem um pouco de tentar deturpar a imagem dos povos indígenas. Tentar colocar a opinião pública contra os povos indígenas – na real – eu acho que é até um pouco falta de caráter, inclusive.
EC – Afinal, tem índio que quer garimpar ou não?
Dinamam – Não vou negar para você que existam lideranças que queiram, de certa forma, fazer isto. Tem. Mas é uma pequena parcela. A mínima possível, porque a grande maioria, a grande massa, quer a sua terra como está. Sem exploração, viver de forma sustentável, de forma tradicional, respeitando o meio ambiente e os seus modelos de vida que sempre foram consorciados com o meio ambiente, sem destruição. Pegar uma ou duas lideranças do povo Munduruku e achar que a maioria quer esse modelo predatório é leviano e nos preocupa muito. Esse governo foi eleito por fake news e com fake news ele vêm promovendo também a implantação de suas políticas para, apresentando inverdades, poder realizar a sua política de caráter genocida.
EC – Dados recentes do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelaram que o desmatamento nas unidades de conservação da Amazônia no último ano foi pior que na floresta como um todo. Se de um lado temos uma pressão internacional que cada vez mais deixa claro que o Brasil pode sofrer sanções, por que Bolsonaro continua numa posição leniente?
Dinamam – Sobre esses dados, em terras indígenas houve um aumento de 64% de desmatamento proveniente de invasões. Importante frisar que é um desmatamento não promovido por indígenas. Esse aumento é proveniente de invasões e essas invasões são provenientes do enfraquecimento, na verdade, da política ambiental. Ou seja, o Estado enfraqueceu a sua fiscalização, a União enfraqueceu a política ambiental. Houve um desmonte e esse desmonte trouxe o aumento das invasões da terras indígenas e áreas de preservação e, consequentemente, o aumento do desmatamento. A dúvida que nós também temos, que nós também não conseguimos entender é essa: por que, diante de tantos atos, de tantas pressões, o governo brasileiro, o atual presidente, ainda persiste e tem um número expressivo de intenções de voto. Pra essa pergunta sua, nós também queremos uma resposta, na verdade.
EC – É difícil, então, uma resposta?
Dinamam – Nós não entendemos. Estamos vivenciando – eu que vivo em uma área indígena sou ameaçado – outras lideranças indígenas são ameaçadas. Estamos constantemente em contato com outras lideranças que estão em um cenário de guerra, tendo suas terras cortadas, sangradas pelo garimpo, pela extração ilegal de madeira, por invasores que inclusive estão levando a Covid-19 para dentro dessas áreas. Enfim, como – diante de um cenário que nós percebemos que, na verdade, é pior do que um cenário de guerra – ainda têm pessoas que apoiam essa política. Fica um questionamento para nós também. A gente quer saber o que é que está acontecendo com a população brasileira.
EC – Diante de tudo o que está acontecendo, perseguição de lideranças e comunidades, leniência governamental com o desmatamento, com a invasão das terras indígenas, com o garimpo ilegal, que perspectivas você vê para o Brasil?
Dinamam – Para os próximos dois anos são as piores. Não acredito que vá mudar o cenário pra melhor, não vejo avanço e muito menos uma ampla discussão para a construção de uma política que respeite a diversidade de povos e o meio ambiente. Não vejo ações para o fortalecimento da política ambiental, não vejo fortalecimento na política social. Eu acho que são dois anos difíceis não só pra comunidade indígena, mas para toda comunidade tradicional no que diz respeito a políticas sociais, políticas voltadas para esse segmento das comunidades tradicionais, tanto indígenas quanto quilombolas. O que nós temos que fazer é o enfrentamento.
EC – Não tem espaço para muito otimismo, então?
Dinamam – Passar por esses dois anos vai ser difícil. Mas, cenários como esses nós já vivenciamos e sobrevivemos. O que nos resta é fazer a resistência. Em resumo é isso.