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Indígenas da reserva de Cacique Doble vivem disputa em meio a grupos criminosos

Lideranças arrendaram área cultivável da terra indígena para plantio de milho, trigo e soja e determinam quem pode plantar
Da Redação / Publicado em 7 de dezembro de 2023
Indígenas da reserva de Cacique Doble vivem disputa em meio a grupos criminosos

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Funai promove consulta às comunidades que vivem na TI Cacique Doble, no noroeste do RS, palco de expropriação de direitos e disputa de terras

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O Ministério dos Povos Indígenas e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) farão, nos próximos dias 10 e 11, consulta às comunidades Guarani e Kaingang, que vivem na Terra Indígena Cacique Doble, no noroeste do Rio Grande do Sul, próximo à divisa com Santa Catarina. A terra indígena tem sido palco de violenta disputa entre grupos indígenas rivais que brigam pela liderança da reserva.

Os conflitos se devem à privatização da área cultivável pelas próprias lideranças, que fazem arrendamento para plantio de grãos e determinam quem pode e quem não pode plantar nos limites da reserva, relatou a representação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

As lideranças privatizaram toda a área cultivável da terra indígena, destinando-a ao arrendamento, à exploração de grãos como o milho, trigo e, especialmente, a soja, e determinando quem pode e quem não pode plantar

A fundação informou que o objetivo da consulta é discutir a questão da “representação democrática da comunidade” com os cerca de 815 indígenas que vivem na reserva de 4,4 mil hectares, homologada em 1991 como área da União de usufruto exclusivo indígena.

Cada hectare equivale, aproximadamente, às medidas de um campo de futebol oficial. Os servidores do ministério e da fundação ingressarão na terra indígena acompanhados por agentes da Força Nacional de Segurança Pública.

O advogado e membro do Cimi, Roberto Liebgott, afirmou que parte dos moradores da terra indígena é refém de grupos organizados que, além de arrendar terras ilegalmente, são suspeitos de ligações com outras atividades criminosas.

“É uma situação grave”, afirmou Liebgott, ao comentar as causas e consequências da disputa que se arrasta há mais de um ano; causou ao menos duas mortes e alterou a rotina do município.

“A população indígena de Cacique Doble se tornou refém de grupos organizados que arrendam terras e que têm ligações com outras práticas criminosas. É uma comunidade extremamente oprimida e que não vislumbra saída”, acrescentou Liebgott, um dos colaboradores do Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, que o conselho indigenista vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divulga anualmente.

O conflito na área indígena se arrasta há tempos, mas se intensificou a partir de agosto de 2022, quando quatro moradores da reserva foram baleados.

Apesar da Força Nacional de Segurança Pública estar presente na região desde setembro do ano passado e da Polícia Federal ter realizado ao menos uma grande operação para tentar “reestabelecer a ordem pública e apurar a autoria e circunstâncias de sucessivos crimes graves”, a disputa transpôs os limites da reserva.

Na semana passada, ao menos 12 pessoas precisaram ser hospitalizadas devido a uma briga generalizada durante a abertura de um tradicional evento natalino. Autoridades locais atribuíram a confusão aos mesmos dois grupos que disputam a liderança da terra indígena e a prefeitura determinou a suspensão de eventos públicos que promovam aglomerações na cidade. Escolas chegaram a suspender aulas e reprogramar eventos acadêmicos.

Na última segunda-feira, 4, uma menina de 13 anos morreu após ser atingida por um projétil durante um tiroteio no interior da terra indígena.

Outras duas pessoas, uma adolescente de 15 anos e um rapaz de 23 anos, também foram baleados e hospitalizados.

“Só queria que alguém fizesse alguma coisa, [pois] está muito difícil para nós (no interior da terra indígena). É tiro todo dia, toda noite”, disse a tia da adolescente morta.

O tiroteio ocorreu dois dias após mais de uma dezena de casas serem incendiadas na reserva. Acionados, os bombeiros voluntários alegaram não ter segurança para ingressar na área e combater as chamas.

Militares e a cultura do arrendamento de terras

Ainda segundo Roberto Liebgott, a situação em Cacique Doble tem raízes históricas, sendo uma das consequências da desagregação social dos povos originais.

“Em dado momento, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão federal que, em 1967, deu origem à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que era comandado por militares, passou a influir e conceder o poder sobre algumas terras indígenas. Em algumas comunidades, isso formou uma estrutura de poder baseada na estrutura militar. Paralelamente, em alguns territórios, forjou-se uma cultura de arrendamento das terras, com os arrendatários exercendo forte poder econômico sobre a comunidade”, destacou o advogado, lembrando que a prática é proibida, já que as terras indígenas pertencem à União.

“Contudo, o arrendamento não deixou de existir. E não só em Cacique Doble, que é um reflexo de todo este contexto histórico. No município, a liderança comunitária foi usurpada e o controle do território tornou-se absoluto. As lideranças privatizaram toda a área cultivável da terra indígena, destinando-a ao arrendamento, à exploração de grãos como o milho, trigo e, especialmente, a soja, e determinando quem pode e quem não pode plantar”, acrescentou.

As investigações da Polícia Federal reforçaram as suspeitas de que a disputa pela liderança da terra indígena está associada a outras ilegalidades, como a formação de milícias privadas; tráfico de drogas e contrabando de armas; sementes agrícolas e agrotóxicos.

“E a comunidade local é submetida a esta realidade de extrema violência e vulnerabilidade, da mesma forma como acontece em outras partes do país.”

O Ministério da Justiça e Segurança Pública informou que, a pedido do governo estadual, o prazo para que o efetivo da Força Nacional de Segurança Pública permaneça no município, apoiando eventuais ações da PF para preservar a ordem pública, foi ampliado por mais 90 dias, contados a partir de 1º de dezembro. Ainda segundo a pasta, “o Ministério dos Povos Indígenas já destacou a necessidade de atuação governamental para buscar soluções aos conflitos existentes e garantir a segurança das comunidades”.

“Será necessária uma intervenção duradoura, não algo pontual, pois só assim será possível criar um ambiente de apaziguamento e promover, entre os indígenas, um debate a respeito do uso da terra e das estruturas de poder interno”, ponderou Roberto Liebgott.

*Com informações da Agência Brasil.

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