Autismo na escola: desafio a ser vencido em etapas
Foto: Caren Souza
Com um número crescente de casos de autismo no sistema de ensino, professores encontram inúmeros obstáculos para realizar a inclusão. Desde a dificuldade na comunicação e no manejo desses alunos durante as crises, a elaboração de material pedagógico personalizado, a busca por instrumentos de avaliação diferenciados e, sobretudo, a falta de tempo para planejamento das atividades. O Sinpro/RS reivindica que as escolas assumam o compromisso de fazer a inclusão de alunos com deficiências, respeitando a carga horária dos docentes
A começar pela falta de dados concretos sobre incidência, diagnóstico e tratamentos, o Transtorno de Espectro Autista (TEA) impõe múltiplas barreiras à inclusão de crianças no sistema formal de ensino. Não há estatísticas confiáveis sobre autismo no Brasil. Em 2022, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) incluiu o tema do autismo no Censo. A estimativa preliminar é de 2 milhões de pessoas com autismo no país – perto de 10% da população. Nas escolas, o número de crianças diagnosticadas com autismo não para de crescer.
De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos, a incidência de autismo é de uma pessoa em cada grupo de 36 indivíduos. A referência talvez não retrate a realidade brasileira, mas é o parâmetro adotado em todo o mundo na falta de recortes mais localizados. Já a Organização Mundial da Saúde (OMS), por sua vez, estima um caso a cada 160 pessoas no Brasil.
Além dos casos de autismo, as escolas também lidam com a inclusão de crianças com outras deficiências, o que impõe múltiplas realidades ao ensino.
Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua 2022 do IBGE, são 18,6 milhões de pessoas, ou 8,9% da população do país, o contingente de brasileiros com deficiência. Para se ter uma ideia do quanto elas são excluídas da escola, basta notar que a taxa de analfabetismo entre as pessoas com deficiência é de 19,5%. Entre os não deficientes, esse percentual cai para 4,1%.
Frente ao crescimento dos casos, com uma legislação ainda recente sobre o assunto – a Lei Brasileira de Inclusão é de 2015 –, surgem grandes desafios ao sistema de ensino.
No cotidiano, a criança com autismo pode apresentar diversas dificuldades, como crises sensoriais e comportamento agressivo contra outras crianças ou autoagressão; seletividade alimentar severa, ecolalia (fala repetitiva), sensibilidade auditiva, necessidade de andar ou correr para regular as emoções, entre outros comportamentos.
Sobrecarga de trabalho aos professores
Foto: Igor Sperotto
Desde que foi sancionada, a Lei Brasileira de Inclusão (13.146/2015) ainda encontra muitos entraves. No Rio Grande do Sul, professores do ensino privado lutam para dar conta de elaborar o planejamento, escolher o melhor sistema de avaliação para os alunos e conduzir o dia a dia em sala de aula.
Conforme Cecília Farias, diretora do Sindicato dos Professores do Ensino Privado (Sinpro/RS) e coordenadora do Núcleo de Apoio ao Professor Contra a Violência (NAP), desde que a lei entrou em vigor, os professores é que fazem a avaliação do estudante, bem como a adaptação de necessidades ao conteúdo, pedido de monitores, planejamento de atividades adaptadas e elaboração de instrumentos de avaliação diferenciados.
Nos últimos anos, o Sinpro/RS vem cobrando do sindicato das escolas (Sinepe/RS) uma posição em relação à responsabilidade das instituições de ensino quanto ao processo de inclusão de alunos com deficiência. Uma das reivindicações dos professores é que a Convenção Coletiva de Trabalho contemple todos os pontos elencados no parecer número 1 de 2022 do Conselho Estadual de Educação (CEEd). “O parecer representa um avanço ao limitar o número de inclusões por turma, independentemente de laudo, pois um número grande de inclusões com características diferentes sobrecarrega ainda mais o trabalho docente”, explica.
Cecília destaca que, mais do que cumprir a lei e implementar recursos nas escolas (a exemplo das salas de Atendimento Educacional Especializado – AEE), é preciso tempo para planejar. “Hoje, o professor está muito assoberbado, trabalhando muitas vezes à noite e em finais de semana para dar conta de atender a todos os casos de inclusão, pois esse tempo não existe dentro de sua carga horária”, enfatiza a dirigente.
O presidente do Sinepe/RS, Oswaldo Dalpiaz, argumenta que “o cenário exige dedicação, atenção e suporte aos educadores” e, em razão disso, “as escolas, dentro de suas possibilidades, buscam alternativas para apoiá-los e acompanhá-los. Aos poucos, novas formas de apoio serão implementadas a fim de que possam atender àqueles que necessitam de acompanhamento diferenciado”.
Neurodivergência e acolhimento
Foto: Instituto Singular/ Divulgação
A neurocientista Mayra Gaiato, referência em TEA no Brasil, é taxativa ao dizer que a neurodivergência é a nova realidade da sociedade e as escolas precisam se capacitar. “O autista é completamente capaz de aprender, mas isso depende da acessibilidade à informação, que é muito específica nesse caso”, ensina.
De acordo com Mayra, a realidade brasileira é de um sistema de educação ainda muito atrasado, em que raramente há interesse das escolas em construir um sistema mais eficaz de inclusão. “Muitos professores me procuram por conta própria, em função de uma criança ou de um grupo de crianças que pretendem ajudar”, relata. “Ainda é raro vermos escolas (diretorias) tomando a frente desse trabalho, o que seria o melhor”, ressalta.
Ela diz que o ideal seria a adoção do Programa de Ensino Individualizado (PEI) por todas as escolas para avaliar não apenas os atrasos, mas também as potencialidades de cada estudante. “A criança precisa de oportunidade para mostrar no que ela é boa e aprender o que é importante para a realidade em que ela vive, preocupando-se menos com a ‘punição’ em relação aos conteúdos em que ela não é boa”, aponta.
Construção do conhecimento
Foto: Divulgação
À frente do único serviço de semi-internação para crianças de difícil estabilização da América Latina, com assistência inclusive à família do paciente, Telma Pantano afirma que não há fórmula pronta para a inclusão: “É deixar de lado o método tradicional e investir na construção do conhecimento”.
Telma é pós-doutora em Psiquiatria e coordenadora da Equipe Multi do Hospital Dia Infantil, do Hospital das Clínicas de São Paulo. A instituição atua na orientação parental e no relacionamento com a escola. “As escolas raramente aceitam vir aqui ou mesmo avaliar a nossa proposta de material pedagógico”, revela. Em 13 anos de trabalho, apenas uma instituição aceitou o convite.
Ela afirma que não há diferenças entre emoção e cognição, comportamento e aquisição pedagógica entre deficientes e não deficientes. São processos cerebrais que resultam em aprendizagem. “O professor estuda muito sobre os conteúdos, mas não estuda sobre como o cérebro da criança aprende. O adulto, porém, precisa ajudar a criança a se regular em sala de aula. Precisa entender como vai acessar o aluno para ajudar na regulação emocional no momento em que ele se desorganiza em sala”, explica.
Organização emocional
Foto: Igor Sperotto
Para Camila Nobre, terapeuta ocupacional e responsável técnica da equipe multidisciplinar da Doctor Clin em Porto Alegre, Novo Hamburgo, Esteio e Canoas, a escola precisa ter um ambiente para o/a aluno/a se acalmar em momentos de desregulação, um espaço mais calmo com itens que ajudam a criança. “Pode ser um colchonete, um brinquedo que ela goste ou até um travesseiro com cheirinho de casa. O importante é criar um ambiente positivo e capacitar os educadores para promover a inclusão nesse espaço”, aponta. Ela recomenda que as escolas se envolvam nos processos de inclusão.
Para o biólogo Giovani André Piva, na docência há 30 anos, abrir uma janela de comunicação com um aluno inclusivo é muito mais uma questão de empatia do que de técnica. E quando ele fala em inclusão, se refere à participação de toda a turma na inserção do aluno com deficiência.
Em uma de suas turmas de ensino médio do Colégio Maria Auxiliadora, de Canoas, o professor aplicou os princípios da inovação e do empreendedorismo para envolver os alunos, ao lhes explicar como ocorre o processo de inovação de uma startup. A resposta de um grupo de estudantes foi criar um aplicativo que ajuda as pessoas a se comunicar melhor com os autistas. “Tudo isso foi para ajudar um colega autista. Ele tem uma ligação muito forte com alguns alunos em função do gosto por videogames. Dessa forma, eles perceberam algumas limitações de comunicação e resolveram ajudá-lo”, relata.