Acampamento Farroupilha deixa tradições de lado e caminha para ser evento comercial
Foto: Igor Sperotto
O Acampamento Farroupilha 2023 na capital gaúcha chega ao seu encerramento nessa quarta-feira, 20, no Parque da Harmonia, com sérios questionamentos.
Primeiro sob administração total da iniciativa privada em parceria com a Comissão Municipal dos Festejos Farroupilhas de Porto Alegre, o evento caminha para ser uma atividade na qual o comércio predomina no lugar dos ideais tradicionalistas que o criaram, segundo opinião de frequentadores veteranos.
Não foram só devido às abundantes chuvas desse ano que público visitante é consideravelmente bem inferior a edições realizadas antes da covid-19 na visão geral.
“Obviamente, este ano choveu com mais intensidade, mas setembro é período de chuvas”, pondera Ademir Wiederkehr ao revelar o assombro que teve ao se deparar com os preços cobrados no estacionamento explorado pela GAM3 Parks, empresa concessionária de mais de 250 mil metros quadrados que incluem parte da orla do Guaíba e o Parque da Harmonia.
Foto: Igor Sperotto
Os valores são praticamente o dobro da edição anterior. São acessos individuais cobrados de segunda a quinta-feira por R$ 35,00; de sexta-feira, sábados, domingos e feriados por R$ 40,00, um VIP de R$ 50,00 e pacotes de 20 dias que vão de R$ 450,00 para veículos normais até R$ 1,1 mil no caso de motorhomes.
Ademir é secretário de Comunicação da Central Única dos Trabalhadores do Rio Grande do Sul (CUT/RS) e participa do acampamento desde o início da história do maior evento criado para comemorar a Revolução Farroupilha, que chegou a separar o Rio Grande do Sul do então Império brasileiro.
Ele chama a atenção ainda para a redução de acampados. Concretamente, após a primeira edição pós-pandemia, em 2022, somente cinco piquetes foram acrescidos.
Carros no lugar de galpões
Foto: Igor Sperotto
Em 2019, o acampamento contou com 364 piquetes, nome dado aos “galpões”. Neste ano, essas edificações rústicas montadas para abrigar os participantes se reduziram a 235.
Edson Rocha, patrão do Piquete dos Bancários, crê que dois motivos têm contribuído decisivamente para a redução. Seriam os valores da taxa cobrada e a ampliação da área de estacionamento que avançou sobre o espaço outrora ocupada pelo acampamento.
Apesar das taxas dessa edição serem as mesmas de 2022, continua “pesado no bolso” da maior parte dos participantes, os chamados piquetes tradicionais, opina Rocha.
“Nosso piquete tem apoio, né? Tanto do sindicato quanto da federação (dos Bancários). Mas, para piquetes como os familiares, tudo se tornou mais pesado. Tem casos de piquetes que acampavam há mais de 30 anos aqui que este ano não estão presentes”, registra.
Para a instalação de um piquete durante o período de festejos que se iniciou no dia 1º de setembro no Parque da Harmonia, além de ter certificação de “patronagem” e a aprovação de um projeto cultural para o espaço, foi cobrado um valor mínimo de R$ 1,4 mil dos chamados piquetes tradicionais que são mobilizados por famílias, grupos de amigos e até condomínios, e R$ 3 mil para os de associações como os Centros de Tradição Gaúchas (CTG) e entidades de classe e de empresas.
A informação é da Secretaria de Cultura de Porto Alegre, que evidenciou que a categoria Piquete de Baile teve que formalizar sua inscrição diretamente com a GAM 3 para que “a concessionária disponibilizasse espaço e logística” para a realização das atividades pretendidas.
Interesses comerciais
Foto: Igor Sperotto
Outra opinião sobre o esvaziamento vem de Cleber Lescano, conhecido no meio tradicionalista como Nêgo. Ele que já chegou a ser o “prefeito” do Acampamento Farroupilha em 2015, deixou de montar seu piquete no Harmonia, o Cruz de Lorena, pela primeira vez em 33 anos.
“Tiraram a espontaneidade do movimento, né? O poder público atirou na mão do concessionário lá, que, na minha opinião, não corresponde ao propósito cultural. Sim, aquilo lá virou praticamente um comércio”, responde Nêgo ao Extra Classe.
“É uma coisa muito difícil de falar, assim, sabe? Muito difícil de falar, mas tem muitos prismas para a gente afirmar por que o Cruz de Lorena ou outros companheiros saíram do parque”, continua.
Todos, de uma forma ou de outra, esbarram em interesses comerciais que, agora, avançam sobre questões fortemente enraizadas na cultura gaúcha.
A gênese, entende, se deu com a entrada de empresas no acampamento sob o fomento do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) como uma nova frente de recursos.
Mudança de perfil
“Descobrindo a galinha dos ovos de ouro, eles começam a botar empresas para dentro. Por quê? Porque todas as empresas que iam para dentro do parque criavam um DTG (Departamento de Tradições Gaúchas)”, analisa Nêgo.
O certo é que a mudança de perfil do Acampamento Farroupilha não está acontecendo da noite para o dia.
“Antigamente tinha tiro de laço, tinha gineteada. Acabaram com a fazendinha”, lembra Rocha, o patrão do Piquete dos Bancários.
A medida, mesmo que sanitária, é uma aberração para Nêgo. “Apenas para abrir espaço. Eles não querem trabalhar, por exemplo, regras. Tirar o cavalo que é símbolo do nosso estado? Claro que a gente até entende, mas não que tirasse tudo. Deixasse uma parte lá que, olha, se tem gente que quer ter cavalo que vá para lá. É aquela coisa, eu não tenho condições de fiscalizar, então é mais fácil eu cortar”, desabafa.
Além de notar uma presença empresarial grande, o secretário de Comunicação da CUT/RS prestou atenção em outro ponto: a guarda da Chama Crioula.
Se antes os piquetes faziam uma escala de duplas de peões pilchados para fazer a vigilância do fogo que simboliza a Revolução Farroupilha nas 24 horas, neste ano o fogo fica, como dizem os gaúchos, solito (sozinho), após às 21h.
“Hoje o comércio está dominando. Daqui a pouco vai ter só turista naquele negócio lá. As pessoas simples que iam não estão conseguindo mais ir pelo custo”, completa Ademir.
O presidente da Associação dos Acampados da Estância da Harmonia (Acamparh), Rogério Lara, e a GAM3 Parks foram procurados por Extra Classe e até o momento do fechamento da matéria não se manifestaram.
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