OPINIÃO

O mal-estar na docência

Por Arthur Telló / Publicado em 3 de agosto de 2023

Imagem: Fragmento de "O duplo segredo". René Magritte, 1927

“Na sala de aula, esse profissional é o centro convergente de todos os conflitos e processos por que passa – enfrenta uma realidade de mal-estar na educação e no exercício da profissão de educador”

Imagem: Fragmento de "O duplo segredo". René Magritte, 1927

Em um contexto de descontinuidade dos cursos de licenciatura, de baixa procura por esses cursos por parte dos estudantes que prestam vestibular e da eclosão de cenários de violência nos ambientes escolares, percebemos o quanto tem sido difícil exercer a docência e apostar na carreira docente.

Desse modo, não parece exagerado afirmar que os professores enfrentam uma realidade de mal-estar na educação e no exercício da profissão de educador.

O fenômeno é complexo. Suas causas remontam à precariedade dos planos de carreira, à deficiência inerente aos processos e às políticas de educação no Brasil, à baixa remuneração para atividade que demanda graduação e treinamento. Difícil apontar uma entre tantas variantes que condicionam e potencializam esse mal-estar.

Em um horizonte curto, de duas décadas ou menos, o cenário degradado que vive a educação pode levar a um “apagão” da docência e ao desabastecimento desse tipo de profissional no mercado de trabalho, deixando gerações de jovens desassistidas.

Diante das transformações sociais e políticas, da escalada da violência na sociedade e contra a escola e os professores, do surgimento de movimentos como o Escola sem partido e do esvaziamento de sentidos da docência, não seria uma loucura alguém ainda desejar ser professor?

Na sala de aula, esse profissional é o centro convergente de todos os conflitos e processos por que passa a sociedade.

A prática docente torna-se ainda mais difícil em um contexto de polarização política, no qual os estudantes não são mais estimulados a se individuar, a construir a própria singularidade – cuja configuração lida a todo momento com a separação do meio familiar e com o fantasma do medo de perder o amor dos próprios pais.

Se antes uma juventude saudável era marcada pelo desejo de emancipação, exploração e descoberta – processo que contava com a participação dos professores como exemplo de outros pontos de vista, trajetórias, condutas, identidades e singularidades em relação às marcas da família de origem –, hoje, em vez de educar para a autonomia, os pais desejam transformar os filhos em reproduções de si mesmos.

Autonomia como finalidade

Para agravar a situação, em meio a reformas e atitudes que desautorizam a prática docente, o professor sabe o que deseja para seu trabalho? Sua prática tende para qual objetivo?

O que ele ou ela desejam para os alunos e como suas aulas o afastam ou não desse objetivo? A escola sabe o que deseja para seus estudantes a partir dos processos de ensino praticados?

Ou a escola deseja apenas manter seus clientes, não entrar em querelas que podem culminar na evasão de estudantes, constituindo-se como mero depósito de crianças e jovens que precisam estar em algum lugar enquanto seus pais trabalham para pagar as contas, entre as quais a própria mensalidade da escola?

O filósofo iluminista Kant dizia que o ser humano não pode ser um meio para outros fins. Que o ser humano deve ter a própria autonomia como a finalidade de suas ações.

Quando reduzida a meio, a instrumento, a humanidade perde o que lhe garantia sua singularidade enquanto espécie.

Kant, com certeza, se assustaria hoje ao constatar o uso instrumental do trabalho docente, a perda de protagonismo, o desrespeito, a dessubjetivação por que passam os educadores.

No ensaio O mal-estar na cultura, Freud aponta três causas para o mal-estar: o ambiente hostil, a doença e o convívio social.

À medida que o desenvolvimento da ciência permite ao ser humano habitar lugares extremos – isso até a intensificação da crise climática, claro –, ou então se tratar com medicamentos que minimizem a precariedade da saúde, há um mal do qual não podemos escapar.

Trata-se do convívio com o outro, com a sua diferença, com os acordos e compromissos do trabalho, com a quantidade de horas em que nos desviamos de qualquer princípio de prazer para sermos peças do grande tecido social.

Para o pai da psicanálise, devemos a esse mal-estar também à criação de obras espetaculares, a sublimação do prazer impossibilitado em formas de cultura, ideias, poemas etc.

Porém, o que resta ao professor impedido de executar seu ofício ou cujo desejo por ensinar é atravessado por interesses, cinismo e violência de pais, políticos e gestores escolares?

O psiquiatra judeu e sobrevivente de Auschwitz, Viktor Frankl, dizia que a finalidade da vida é encontrar sentido.

O eu só se realiza quando esquecido de si mesmo, atribuindo sentido àquilo que está fora se si, sejam valores criativos – agir no mundo, criar formas para lidar com a realidade –, sejam valores experenciais como o amor a alguém ou a alguma causa maior que nós, ou valores de atitude como imbuir de sentido o próprio sofrimento e do mal-estar do qual não podemos escapar, como doença e morte.

A esses apontamentos todos cabe a pergunta: qual é o sentido do nosso trabalho como educadores quando todos têm autonomia, menos nós?

Arthur Telló é professor da PUCRS e do Colégio Gabarito.

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