OPINIÃO

Entrega em domicílio

Por Luis Fernando Verissimo / Publicado em 20 de julho de 2023

Ilustração: Edgar Vasques

Ilustração: Edgar Vasques

Não sei quando será, mas não deve demorar. O lugar? Qualquer grande cidade brasileira. Noite. É cedo, mas não se vêem carros nas ruas nem gente nas calçadas. Só o que se vê são motociclistas. Suas motocicletas têm caixas atrás, para carregar os pedidos. São entregadores. Motoboys. Teleboys. Eles se cruzam nas ruas vazias, em disparada. Como os carros não saem mais à noite, e os motociclistas não os respeitam mesmo, os faróis semafóricos não funcionam. O amarelo fica piscando a noite inteira, e nos cruzamentos a preferência é dos entregadores mais corajosos. Há várias batidas e pelo menos um morto por noite. Mas o número de motociclistas nas ruas não pára de crescer.

A população não sai mais de casa. Tudo é pedido pelo telefone. Os restaurantes despediram seus garçons e trocaram por motoboys. Telegarçons. Se você quiser um jantar fino à luz de velas, com vários pratos, sobremesa e vinho, existem serviços de entrega para tudo. Um entrega os pratos finos. Outro a sobremesa. Outro os vinhos. Outro a toalha de linho, os talheres e as flores. E já há um televelas.

Como as pessoas não saem à noite e ninguém mais vai jantar na casa de ninguém, há uma cooperativa que se prontifica a mandar os próprios teleboys como convidados a jantares finos. A telenós. Você especifica o tipo de conversa que quer à mesa – mais ou menos intelectual, divertida, safada, política, variada, etc. – e na hora marcada chegam os telecomensais, no número e com o traje que você quiser. Eles comem, conversam, elogiam os anfitriões e vão embora ou, por um adicional, limpam a cozinha.

Como a sociedade passou a depender deles para tudo, é natural que comece a haver distorções criminosas no mundo da entrega em domicílio e teleboys se aproveitem do seu poder para aterrorizar a população. Você abre a porta para o entregador de pizza com a mussarela pequena que pediu e de repente se vê acossado por um bando de dez, cada um com uma caixa de supercalabresa que você é obrigado a pagar, e ainda dar gorjeta. Não adianta você telefonar para a polícia. A polícia também não sai mais na rua. Existe um serviço de telessocorro que fornece ajuda para policial, mas eles não agem contra teleboys. O corporativismo da classe é forte.

Os motoboys dominam a noite da cidade e desenvolveram uma cultura própria. Têm seu folclore, seus mitos, seus heróis. Como Fast Boy Menezes, que entrega sorvete na mão em qualquer ponto da cidade e você não paga pela parte que derreter. Ou Jorge (Armário) Freitas, que adaptou sua moto para carregar qualquer coisa, bateu o próprio recorde entregando um piano de cauda numa recepção improvisada – com o banquinho e o pianista – e morreu numa freada brusca, esmagado pela jacuzzi portátil que levava para uma festa gay.

Os motoboys terão o monopólio da aventura urbana, pois nem os táxis sairão à noite, já que ninguém mais irá a parte alguma. E com o aumento do número de motoboys e da competição entre eles, aumentarão os casos de pirataria, com motoboys sendo obrigados a entregar sua encomenda e o endereço do destinatário a motoboys clandestinos, que percorrerão as ruas da cidade em bandos selvagens, roubando dos motoboys mais fracos.

Não sei quando será, mas não deve demorar.

*Republicação

Luis Fernando Verissimo colabora mensalmente com o Extra Classe desde 1996.

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