Itamar Vieira Junior fala sobre ancestralidade e representatividade
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Ganhador dos prêmios LeYa, Jabuti e Oceanos com Torto Arado, Itamar Vieira Junior retorna às páginas com o romance Salvar o Fogo (Todavia, 320 páginas). O novo livro leva o leitor até Tapera do Paraguaçu, às margens do rio Paraguaçu, no interior da Bahia, e conta a história de uma comunidade de agricultores, pescadores e ceramistas de origens afro-indígenas que vivem à sombra do poder da Igreja católica.
Geógrafo e doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Itamar é natural de Salvador, na Bahia. Servidor público, atua no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) há mais de 15 anos.
De passagem por Porto Alegre (RS) para a turnê de lançamento de Salvar o Fogo, o escritor conversou com o Extra Classe e falou sobre as suas obras, o papel dos seus livros na atualidade e os planos para o futuro.
Extra Classe – As suas histórias apresentam um Brasil que o leitor não está acostumado a ver, com protagonistas afro-indígenas, do interior do nordeste. De onde vem a inspiração para escrever essas histórias e trazer essas pessoas para as páginas dos livros?
Itamar Vieira Junior – A inspiração vem da minha própria vida, são as pessoas que estão à minha volta, as pessoas que eu sempre convivi. É minha ancestralidade. Eu sou um leitor voraz, cresci com esse interesse pela literatura e eu tinha muita dificuldade de me ver representado na literatura. Não que as obras não fossem excelentes. Mas ainda assim, ver que o Brasil é um país tão grande e tem uma população tão diversa, do ponto de vista cultural e étnico, que eu sentia que a nossa literatura, nos últimos anos principalmente, não dava conta da nossa diversidade. Mas a inspiração está sempre à minha volta, nas pessoas que eu conheci, nos lugares onde morei e nas histórias familiares. São elas que de fato me inspiram.
EC – A terra é um elemento central dos seus livros. Como geólogo, pesquisador e tendo trabalhado no Incra, como isso atravessa o seu espaço de criação?
Itamar – Já com 25 anos eu fui trabalhar no serviço público. Comecei a trabalhar no estado do Maranhão e depois fui pra Bahia, viajando para o interior, encontrando pessoas. Isso fez com que eu pudesse contrastar essas memórias familiares com o que existe no campo hoje. Então, foi uma fonte inesgotável de imagens, situações, de personagens, que, de uma maneira ou de outra, atravessam aquilo que eu escrevo.
Imagem: Divulgação
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Extra Classe – Em Salvar o Fogo a Igreja tem um papel regulatório, uma instituição que regula, inclusive, a história de quem vive em Tapera do Paraguaçu. Qual foi a reflexão que o senhor quis trazer?
Itamar – Como é uma história que trata das feridas da colonização e da escravidão. Pra mim era importante lançar luz sobre essa personagem. Pensando a Igreja como uma instituição que foi decisiva para que o empreendimento colonial e escravista fosse exitoso, não só no Brasil, mas na América como um todo. Então, eu sempre penso que, quando o Brasil foi invadido, no período da colonização, por outras sociedades, a primeira coisa que fizeram quando chegaram aqui foi colocar uma cruz cristã e essa cruz significou o apagamento de muitos saberes, de muita cultura que existia antes, entre as populações nativas que aqui estavam. Então, a Igreja ocupa um papel no romance, nos recordando o que foi essa Instituição ao longo do período colonial no Brasil e de como ela foi decisiva e importante para as nossas vidas. Importante neste sentido de que ela legitimou práticas abusivas, de exploração, que ainda estão muito presentes na nossa vida.
Extra Classe – Nos últimos quatro anos, o país teve um grupo político que apresentou um discurso religioso muito forte. Trazer essas questões foi para promover esse debate?
Itamar – Não dá pra dissociar essa visão que o romance traz de um Brasil contemporâneo, de um Congresso que tem uma grande bancada de pessoas religiosas, que vai de encontro com a ideia do Estado Laico. Elas procuram legislar de acordo com seus dogmas, com suas crenças, desconsiderando aqueles que não se enquadram nas práticas cristãs, que não as desejam para as suas vidas, vamos pensar assim. Então, é dessa maneira que a religião surge, é mais como uma personagem desestabilizando essa história e a vida das personagens.
Extra Classe – O livro se passa em 1960, houve uma inspiração nas Taperas do Paraguaçu de 2023? Nos lugares em que não chega saúde, educação e saneamento?
Itamar – A história tem um arco temporal grande. Ela se inicia mais ou menos em 1970 e volta no tempo, pois os personagens trazem suas histórias. Mas vamos pensar que ela chega até os anos 2000, em um tempo próximo ao nosso. E, claro, os lugares onde eu passei me inspiraram, mas tem uma memória que é muito particular, que é familiar. Meu pai, meus avós paternos e bisavós, eram de uma localidade chamada Coqueiro do Paraguaçu, às margens do Rio Paraguaçu, no recôncavo da Bahia. Então, muitas das coisas que estão ali, a importância do rio pra vida daquelas pessoas, os saveiros – tipo de embarcação comumente utilizada para transporte e pescaria no estado da Bahia –, inclusive meu tio tinha um saveiro que aparece no romance, o Dadivoso, e a coleta do barro, para fazer a cerâmica. Inúmeras outras coisas vieram de memória familiar mesmo. E, claro, tudo isso atravessado pelas coisas que eu vejo, pelos conflitos que eu percebo e identifico no campo hoje. Então, acho que é uma conjugação de memória, mas também de observação. A literatura é feita um pouco disso, da nossa capacidade de observar, de acessar memórias para fazer relatos e também a capacidade de imaginar. Sem a capacidade de imaginar não haveria literatura
Extra Classe – Temos tanto em Torto Arado, como agora em Salvar o Fogo, personagens mulheres muito fortes, muito presentes e que tomam o lugar de protagonismo. Qual é a importância de termos cada vez mais a literatura brasileira trazendo mulheres afro-indígenas que assumem esse papel?
Itamar – Essa é uma história que trata de uma realidade particular e específica que, no fundo, emula uma realidade que é a brasileira, que é latino-americana. Eu venho de um estado predominantemente negro e também há uma população indígena expressiva. Eu cresci num ambiente doméstico onde as mulheres tinham voz ativa e pra mim aquilo era muito curioso, porque elas também eram vítimas de violência. Então, como que pode? Você é vítima de violência, você deveria ser subalterno. Mas ao mesmo tempo tinha força. Então, essa foi a sensibilidade de olhar para as mulheres com essa visão de que elas constroem a história. Elas são personagens ativos de qualquer história. E eu fico pensando que o empreendimento colonial, que está muito presente nessa história, as marcas desse empreendimento, foi patriarcal, imaginado, pensado, executado pelos homens. E que, se uma história se propõe a revisitar tudo isso, ela se propõe a ser decolonial. Então, todos aqueles saberes que eram tidos como inferiores, das pessoas indígenas, das pessoas negras e das mulheres, devem ter uma força, um protagonismo. Acho que é uma decisão ética e estética, mas, pra mim, só faria sentido contar a história a partir desse ponto de vista, dessa perspectiva.
Extra Classe – A escrita demanda tempo, pensando nisso, como estão os próximos projetos, já tem outras histórias para escrever?
Itamar – Tenho outros projetos, só está faltando tempo mesmo. Tenho coisas antigas que eu cultivo já há muitos anos. A história de Torto Arado é um pouco isso, guardei ela por quase 25 anos, até conseguir escrever como eu gostaria de escrever. Ela foi mudando ao longo do tempo. Essa história de Salvar o Fogo também é uma história que me acompanha há mais de cinco anos, então, eu costumo passar bastante tempo remoendo essas histórias. É como se eu fosse um antropólogo e fosse lá para uma comunidade viver entre eles, aprender o idioma, para depois, quando eu me sentir seguro, escrever aquela história. Quando eu começo, eu sempre acho que eu sei, que eu conheço a história, mas eu não conheço. Ela vai se revelando à medida que eu escrevo
Extra Classe – Torto Arado terá adaptação para o audiovisual, no formato de série, pela HBO Max. Como o senhor se sentiu com essa notícia, está envolvido na produção?
Itamar – Ah, eu não quis me envolver, não. Demanda muita energia, demanda muito tempo. Meu barato é escrever, é a literatura. Mas eu tive algumas conversas com eles – os diretores da série – e falei um pouco sobre o meu processo criativo, daquilo que eu considerava importante, relevante. Das camadas que as personagens têm. Então, talvez de não imaginar uma história que deixasse de lado a profundidade delas. Porque ali, talvez, um leitor desatento não consiga entender as camadas que existem neles. O Zeca Chapéu Grande estava lutando à sua maneira, no seu tempo. A Bibiana e a Belonísia de outra forma. Mas todos tinham um interesse em comum, que era melhorar a vida da sua comunidade. Tive conversas nesse sentido. Mas eu acho que são pessoas muito competentes e eu quero assistir como espectador. Tem uma adaptação teatral que está circulando na Europa e nos Estados Unidos, da Cristiane Jataí. Eu fui assistir e gostei muito. É uma versão da história, interpretação dela, com atores do Brasil, inclusive uma atriz quilombola. Então, eu penso assim, que sempre vai ser uma versão da história, independente de quem queira contá-la e eu fico tranquilo em relação a isso. Desde que não seja um desvio muito grande. O que não pode é trair a história, se isso não acontecer, está tudo bem.
Douglas Glier Schütz é estagiário de jornalismo. Matéria elaborada com supervisão de César Fraga.