GERAL

Bullying: escolas privadas são as mais omissas

A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva fala sobre bullying no ambiente escolar, a violência física e psicológica feita com o objetivo de intimidar ou agredir alguém
Por César Fraga / Publicado em 7 de setembro de 2010

Ana Beatriz Barbosa Silva

Foto: Sandra Lopes

Foto: Sandra Lopes

A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva concedeu entrevista que segue por ocasião de sua passagem por Porto Alegre, no final de agosto, para palestrar no projeto Conversa no Praia, promovido pelo Praia de Belas Shopping e Saraiva Mega Store, onde foi lançado o livro Bullying – Mentes Perigosas nas Escolas, da Editora Fontanar. Ela já havia alcançado notoriedade com o livro Mentes Perigosas – O Psicopata Mora ao Lado, obra que vendeu mais de 400 mil exemplares. No seu novo livro a autora se dedica ao tema bullying, que o Extra Classe de forma pioneira na imprensa gaúcha já aborda há vários anos e que recentemente vem ganhando mais visibilidade. Trata-se da violência física ou psicológica feita com o objetivo de intimidar ou agredir o outro mais frágil, incapaz de se defender, buscando alertar para o problema e ajudar pais, educadores, crianças e adolescentes a superarem esse problema. Quem pratica bullying tem como alvo qualquer outro que fuja do padrão estético/ comportamental imposto por um determinado grupo. Crianças e jovens vítimas de bullying, na maioria das vezes, sofrem calados frente ao comportamento de seus ofensores. As consequências, segundo a psiquiatra, podem ser desastrosas, desde repetência e evasão escolar até o isolamento, depressão e, em casos extremos, suicídio e homicídio.

Extra Classe – O que motivou a senhora a publicar um livro sobre bullying?
Ana Beatriz Barbosa Silva – Recebo diariamente em minhas clínicas crianças, adolescentes e adultos que são ou foram vítimas de bullying. Minha motivação maior em escrever sobre o tema foi no sentido de alertar para o problema e ajudar pais, educadores, crianças e adolescentes a superarem um comportamento que pode trazer consequências comportamentais e psíquicas drásticas para a vida inteira. É preciso informar os responsáveis pelos processos educacionais, no sentido de identificar os personagens envolvidos (vítimas, espectadores e agressores), qual é o perfil de cada um nos diversos meios sociais, bem como trazer soluções possíveis para combater algo que não pode mais ser tolerado pela sociedade. A falta de conhecimento sobre a existência, o funcionamento e as consequências do bullying propicia o aumento desordenado no número e na gravidade de novos casos, e nos expõe a situações trágicas isoladas ou coletivas que poderiam ser evitadas.

EC – Por que o bullying não deve ser encarado apenas como um problema exclusivo da escola?
Ana Beatriz – A sociedade contemporânea tornou- se mais individualista e competitiva, o que vem mexendo profundamente com as relações humanas. O cenário que temos hoje é uma sociedade caótica e alienante, com valores éticos absolutamente distorcidos, onde o ter é muito mais importante que o ser. Os responsáveis pelos processos educacionais (pais, instituições escolares e adultos, de forma geral) estão confusos em como transmitir aos nossos jovens experiências afetivas, fraternais, de convivência em grupo ou de respeito às diferenças. Cabe à sociedade como um todo transmitir às novas gerações valores educacionais mais éticos e responsáveis. Auxiliá-los e conduzi-los na construção de uma sociedade mais justa e menos violenta é obrigação de todos. São essas crianças e jovens de hoje que estão delineando a nossa sociedade futura. São eles que em breve abraçarão cargos empresariais, políticos ou até mesmo estarão no comando de um país.

EC – Como o fenômeno é identificado na sociedade?
Ana Beatriz – Brincadeiras saudáveis ocorrem de forma natural e espontânea entre os alunos. Eles colocam apelidos uns nos outros, tiram sarro, dão muitas risadas e se divertem. No entanto, quando as “brincadeiras” são realizadas de forma agressiva, repetitiva e intencional contra um ou mais alunos, recebe o nome de bullying escolar. Brincadeiras saudáveis são aquelas em que todos se divertem, no bullying apenas alguns se divertem à custa de outros que sofrem. Existem diversas formas de bullying: verbal, físico e material, psicológico e moral, sexual, virtual (também chamado de ciberbullying). Os alunos envolvidos neste processo podem ser classificados em três grupos distintos: as vítimas, os agressores (bullies) e os espectadores. Cada personagem dessa trama apresenta um comportamento típico, tanto na escola como em seus lares. Identificar os envolvidos nessa tragédia é de suma importância para que as escolas e as famílias possam elaborar estratégias e traçar ações efetivas contra essa prática. Bullying não é brincadeira, é um ato covarde.

"Por incrível que pareça, os estudos apontam para uma postura mais efetiva contra o bullying entre as escolas públicas (...). Já nas escolas particulares, os casos tendem a ser abafados, uma vez que eles podem representar um ‘aspecto negativo’ na boa imagem da instituição"

Foto: Arquivo Pessoal

“Por incrível que pareça, os estudos apontam para uma postura mais efetiva contra o bullying entre as escolas públicas (…). Já nas escolas particulares, os casos tendem a ser abafados, uma vez que eles podem representar um ‘aspecto negativo’ na boa imagem da instituição”

Foto: Arquivo Pessoal

EC – Como se dividem os papéis da escola, das famílias e dos estudantes diante deste problema?
Ana Beatriz – A escola é corresponsável nos casos de bullying, pois é nela que os comportamentos agressivos e transgressores se evidenciam ou se agravam na maioria das vezes. É ali que os alunos deveriam aprender a conviver em grupo, respeitar as diferenças, entender o verdadeiro sentido da tolerância em seus relacionamentos interpessoais, que os norteiam para uma vida ética e responsável. Infelizmente, a instituição escolar é o cenário principal dessa tragédia endêmica, que por omissão ou conivência, facilita a sua disseminação. Porém, na maioria das vezes, o problema inicia no ambiente doméstico. Para que os filhos possam ser mais empáticos e agir com respeito ao próximo é necessário primeiro rever o que ocorre dentro de casa. Os pais, muitas vezes, não questionam suas próprias condutas e valores, eximindo-se da responsabilidade de educadores. O exemplo dentro de casa é fundamental. O ensinamento de ética, solidariedade e altruísmo inicia-se ainda no berço e se estende para o âmbito escolar, onde as crianças e adolescentes passarão grande parte do seu tempo. É muito importante que os responsáveis pelos processos educacionais identifiquem qual é o grupo de agressor que estão lidando, uma vez que existem causas diferenciadas: muitos se comportam assim por uma nítida falta de limites em seus processos educacionais no contexto familiar; outros carecem de um modelo de educação que seja capaz de associar a autorrealização pessoal com atitudes socialmente produtivas e solidárias. Tais agressores procuram nas ações egoístas e maldosas um meio de adquirir poder e status, e reproduzem os paradigmas domésticos na sociedade; existem ainda aqueles que vivenciam dificuldades momentâneas, como a separação dos pais, ausência de recursos financeiros, doenças crônicas ou terminais na família. A violência praticada por esses jovens é um fato novo em seu modo de agir e, portanto, passageiro. E, por fim, nos deparamos com a minoria dos opressores, porém a mais perversa. Trata-se de crianças ou adolescentes que apresentam a transgressão como base estrutural de suas personalidades. Falta-lhes o sentimento essencial para o exercício do altruísmo: a empatia. Esses jovens apresentam traços marcantes de psicopatia, denominado transtorno da conduta, com desejos mórbidos em ver o outro sofrer.

EC – Qual o tipo de incidência mais comum nos estabelecimentos privados de ensino? Por quê?
Ana Beatriz – Em linhas gerais, se observa a violência física entre meninos, mas isso não significa que seja o mais praticado. É apenas mais visível. Mas todas as formas de violência são executadas: brigas, empurrões, beliscões, roubo de pertences da vítima, xingamentos e apelidos pejorativos, isolamento e exclusão, assédio sexual e as difamações pela internet. O bullying existe em todas as escolas e é praticado de todas as formas. O grande diferencial entre elas é a postura que cada uma tomará frente aos casos de bullying. Por incrível que pareça, os estudos apontam para uma postura mais efetiva contra o bullying entre as escolas públicas, que já contam com uma orientação mais padronizada perante os casos (acionamento dos Conselhos Tutelares, Delegacias da Criança e do Adolescente etc.). Já nas escolas particulares, os casos tendem a ser abafados, uma vez que eles podem representar um “aspecto negativo” na boa imagem da instituição privada de ensino. Admitir que o bullying ocorre em 100% das escolas do mundo todo (públicas ou privadas) é o primeiro passo para o sucesso contra essa prática indecorosa. A boa escola não é aquela onde o bullying não ocorre, mas sim a postura proativa e eficaz que ela tem frente ao problema.

EC – Em seu livro a senhora cita o caso de Columbine como uma vingança pelo bullying sofrido pelos autores da chacina, um caso extremo. Qual é o padrão de consequências nas escolas que a senhora conhece?
Ana Beatriz – As consequências são as mais variadas possíveis e dependem muito de cada indivíduo, da sua estrutura, vivências, predisposição genética, da forma e intensidade das agressões. No entanto, todas as vítimas, sem exceção, sofrem com os ataques de bullying (em maior ou menor proporção). Muitas levarão marcas profundas provenientes das agressões para vida adulta, e necessitarão de apoio psiquiátrico e/ou psicológico para a superação do problema. Os problemas mais comuns que observo em consultório são desinteresse pela escola; problemas psicossomáticos; problemas psíquicos/comportamentais como transtorno do pânico, depressão, anorexia e bulimia, fobia escolar, fobia social, ansiedade generalizada, entre outros. O bullying também pode agravar problemas preexistentes, devido ao tempo prolongado de estresse que a vítima é submetida. Em casos mais graves, podemos observar quadros de esquizofrenia, homicídio e suicídio. Infelizmente, existem vários exemplos dramáticos descritos no livro Bullying: mentes perigosas nas escolas, que ocorreram também em instituições de ensino brasileiras.

EC – Onde está a origem do bullying?
Ana Beatriz– O bullying escolar sempre existiu e provavelmente sempre existirá, uma vez que o exercício do poder entre pessoas faz parte das relações humanas. A partir das décadas de 70-80, esse comportamento agressivo passou a ser objeto de estudos científicos nos países escandinavos, em função da violência existente entre estudantes e suas consequências no âmbito escolar. No final de 1982, o norte da Noruega foi palco de um acontecimento dramático, onde três crianças com idade entre 10 e 14 anos se suicidaram por terem sofrido maustratos pelos seus colegas de escola. Nessa época, Dan Olweus, pesquisador norueguês, iniciou grandes pesquisas que envolveram alunos de vários níveis escolares, pais e professores, e culminaram em campanhas antibullying em várias partes do mundo.

EC – Mudando de assunto. Existe atualmente um excesso de patologização dos comportamentos humanos, em específico os infantis, e como resultado disso um excesso de diagnósticos e de medicação para as crianças?
Ana Beatriz– Ocorrem duas situações distintas: muitas crianças recebem o diagnóstico errado e são medicadas sem necessidade, enquanto outras que necessitam de tratamento adequado sequer são diagnosticadas. A precocidade da detecção do problema é um grande diferencial para que mantenham uma boa qualidade de vida e exerçam seus talentos. Caso contrário, elas ficarão à mercê de seus transtornos, que irão se agravar e causar prejuízos incalculáveis em todos os setores de sua vida (profissional, acadêmico, familiar, social e afetivo). A psiquiatria juntamente com a neurociência está muito avançada no que tange à identificação de problemas comportamentais/psíquicos e o funcionamento cerebral característico desses transtornos. As pesquisas no campo da farmacologia também estão muito avançadas e disponibilizam uma gama de medicamentos que são eficientes e confortáveis aos pacientes. Em contrapartida, nem todas as crianças que apresentam transtornos comportamentais necessitam de medicação, e sim de tratamento psicológico. Tudo depende da gravidade do problema e se a criança é assistida com especialistas bem preparados.

EC – Como identificar as crianças que realmente precisam de tratamento e como deve ser a postura de pais e professores tanto para não se omitir diante de problemas reais, quanto para não medicalizar demais os padrões normais?
Ana Beatriz – Pais e professores precisam ficar atentos quanto à maneira que cada criança se apresenta. Se ela é distraída demais, agitada em excesso, mais reservada, triste, de poucos amigos, transgressora de regras, com ansiedade excessiva ou medo acima do normal. Mas é muito importante sempre comparar com crianças da mesma faixa etária, se o comportamento diferenciado é persistente e se ocorre em ambientes distintos (em casa e na escola, por exemplo). Professores ao constatar algum problema devem relatar aos pais, de forma tranquila, o que ocorre para que os pais busquem ajuda especializada e tenham a certeza do diagnóstico.

Livros publica dos : - Mentes Inquietas – TDAH: desatenção, hiperatividade e impulsividade "Publicação revista e ampliada" - Mentes & Manias - Sorria, você está sendo filmado (em parceria com o publicitário Eduardo Mello) - Mentes Insaciáveis: anorexia, bulimia e compulsão alimentar - Mentes com Medo: da compreensão à superação - Mentes Perigosas: o psicopata mora ao lado - Bullying: mentes perigosas nas escolas

Foto: Ana Beatriz Barbosa Silva

Livros publica dos :
– Mentes Inquietas – TDAH: desatenção, hiperatividade e impulsividade “Publicação revista e ampliada”
– Mentes & Manias
– Sorria, você está sendo filmado (em parceria com o publicitário Eduardo Mello)
– Mentes Insaciáveis: anorexia, bulimia e compulsão alimentar
– Mentes com Medo: da compreensão à superação
– Mentes Perigosas: o psicopata mora ao lado
– Bullying: mentes perigosas nas escolas

Foto: Ana Beatriz Barbosa Silva

EC – Na questão específica da Ritalina, como a senhora analisa o fenômeno da “droga do bom comportamento” e que consequências pode ter o uso desnecessário em crianças de idade escolar? E no caso de outras drogas?Ana Beatriz – A “droga do bom comportamento” é um grande equívoco. A Ritalina ou metilfenidato (nome do princípio ativo), quando bem administrada por especialistas costuma apresentar ótimos resultados para crianças com transtorno do déficit de atenção (TDAH), pois melhora a concentração dos portadores, e deve ser utilizada para este fim. Além disso, o metilfenidato não é o único medicamento para o tratamento do TDAH, e sim uma das muitas opções que existe. Além disso, nem todos os pacientes se adaptam a essa medicação. Já as crianças que não tem déficit de atenção, mas que por algum motivo a Ritalina foi prescrita, podem apresentar efeitos colaterais diversos como insônia, irritabilidade, entre outros, além de não trazer benefício algum.

EC – Quais são os transtornos mais comuns em crianças em idade escolar e como identificá-los? Como o professor, pais e a escola podem exercer um papel proativo nesses casos e que cautelas tomar?
Ana Beatriz – O transtorno comportamental mais comum em crianças é o TDAH (transtorno do déficit de atenção), tema do livro de minha autoria Mentes Inquietas. Ele se manifesta na infância e se estende para a vida adulta. Estudos revelam que 3 a 7% das crianças em idade escolar são portadoras do TDAH, e que em cada sala de aula existe pelo menos um aluno com o transtorno. O TDAH é um transtorno neurobiológico caracterizado por três sintomas básicos: desatenção (instabilidade de atenção), impulsividade e hiperatividade (inquietação). Muitas crianças e adolescentes apresentam desatenção, inquietude e impulsividade, faz parte da idade. No entanto, algumas delas têm essas características em um grau muito mais elevado que o observado em seus pares da mesma idade. Podemos dizer, então, que essas crianças ou adolescentes são portadoras de TDAH. Trata-se de uma diferença comportamental de aspecto quantitativo e não qualitativo. Professores, ao observar sintomas característicos em algum aluno, devem informar os pais para que procurem especialistas. Ao se certificarem do diagnóstico, o tratamento adequado deve ser iniciado para que não haja prejuízos futuros.

A dra. Ana Beatriz Barbosa Silva é médica graduada pela UERJ com pós-graduação em Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora Honoris Causa pela UniFMU (SP), presidente da AEDDA – Associação dos Estudos do Distúrbio do Déficit de Atenção (SP), diretora técnica das clínicas Medicina do Comportamento do Rio de Janeiro e em São Paulo, onde faz atendimento aos pacientes e supervisão dos profissionais de sua equipe. Como escritora, realiza palestras, conferências, consultorias, além de ser fonte recorrente dos veículos de comunicação sobre variados temas do comportamento humano.

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