Estudantes da Ufrgs e lideranças ocupam prédio abandonado e cobram espaço para indígenas
Foto: Igor Sperotto
Mais de 50 indígenas, entre estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), crianças e lideranças estão ocupando desde a tarde de domingo, 6, o antigo prédio da Secretaria Municipal da Indústria e Comércio de Porto Alegre (Smic), localizado na avenida Osvaldo Aranha, 308, próximo ao Túnel da Conceição. A ocupação reivindica a criação da Casa dos Estudantes Indígenas, uma demanda histórica dos alunos da federal e do movimento indígena. Para eles não é um privilégio. A casa será a garantia de um espaço onde possam morar enquanto estudam fora de suas aldeias, longe de preconceitos e com o seu modo de vida respeitado.
“Desde o início do processo de implementação das políticas afirmativas na Ufrgs, a Casa de Estudante Indígena é apontada como uma demanda importante para a formação da pessoa Kaingang e Guarani dentro desse contexto universitário. Trata-se de movimento no qual a instituição reconhece, dentro do seu espaço físico, dos quadros burocráticos e de investimento, outras lógicas de pensamento frente a esses sujeitos coletivos”, afirma documento emitido em 2017 para solicitar a instituição da Casa do Estudante Indígena da Ufrgs.
Foto: Igor Sperotto
O movimento de ocupação que se iniciou às 16h partiu de estudantes indígenas que são mães. Angélica Kaingang, mestranda em Política Social e Serviço Social na Ufrgs, relata por que o espaço é essencial para os indígenas “No nosso modo de vida, convivemos ligados fortemente com as várias gerações, das crianças aos mais velhos”, explica. Segundo ela, essa tradição gera muita discriminação por parte de estudantes não indígenas.
Os indígenas têm acesso às Casas do Estudante da Ufrgs (CEUs), no entanto, nelas não são permitidas a presença de crianças. Angélica relata que mesmo assim, há estudantes indígenas que levam seus filhos e que a própria administração da universidade sabe disso, “mas faz vistas grossas”.
“São mães-estudantes que saem de aldeias distantes da capital e acabam ficando escondidas com as crianças na casa do estudante universitário, um lugar que não oferece segurança física para as crianças”, afirma. “Assim, as mães indígenas recebem muitas críticas e discriminação”.
Outra tensão que se gera de forma espontânea também é porque os indígenas costumam receber com frequência seus “mais velhos” e lideranças como caciques e kujàs (na pronúncia portuguesa, Cuians), os pajés do povo Kaingang.
Preservar a cultura e as tradições
A resistência dos não indígenas à cultura e as tradições dessas comunidades faz com que grande parte dos estudantes indígenas abandonem a universidade, explica a kujà Gah Té Iracema, que está na ocupação apoiando os integrantes da sua etnia, Kaingang, e dos povos Xokleng e Guarani que integram o movimento.
Gah Té recentemente foi indicada pela Ufrgs para o título de Doutora Honoris Causa. “Estou aqui com essas mães, sou vó. Faz tempo que a gente pede essa casa, a casa do estudante para a preservação da cultura indígena”, afirma. Ela explica ainda que o espaço permite às crianças confeccionar o artesanato tradicional, outro componente das tradições dos povos indígenas. “Na casa do estudante não dá para fazer isso porque tem uns estudantes que estudam de dia, daí incomoda. Aqui não, vai ser tudo em conjunto”, projeta.
Na luta e sob tensão
Foto: Igor Sperotto
Foi Gah Té que atendeu o pedido de autorização do Extra Classe para fotografar o movimento e as crianças. “Não tem problema. As crianças desde cedo têm que aprender a lutar”, disse, categórica.
Abandonado há cinco anos, o prédio ocupado foi cedido pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre à Ufrgs, que o devolveu no começo de fevereiro deste ano.
Angélica Kaingang lembra que a comunidade indígena presente na Ufrgs protocolou em setembro de 2017 o pedido de criação da Casa dos Estudantes Indígenas na Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas (CAF/Ufrgs). Nada, lamenta ela, foi feito.
A ocupação foi a forma de pressão encontrada, relatam os presentes, que tiveram um breve momento de tensão durante o movimento.
Sem água e energia elétrica, foram abordados inicialmente pela Guarda Municipal de Porto Alegre, depois pela Polícia Federal (PF). “Até o Conselho Tutelar foi acionado, mas como identificaram que as crianças estavam sob a guarda dos pais, não tiveram o que fazer”, relata Angélica.
A presença da PF se deu após, conforme disse a mestranda, ameaça de prisão feita por guardas do município. Conflitos envolvendo os povos indígenas, pela Constituição Federal, são de atribuição da PF.
O clima foi melhorando com a passagem no local do coordenador dos Povos Indígenas, Imigrantes, Refugiados e Direitos Difusos, Mario Fuentes Barba, da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social de Porto Alegre. No diálogo travado foi agendado para esta segunda-feira, 7, uma reunião para tratar da questão.
Gah Té, relata, no entanto, que nesta manhã, novamente, guardas civis da prefeitura se fizeram presentes com novas ameaças de prisão.
Guarda municipal
Foto: Igor Sperotto
A assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Segurança Pública da capital gaúcha disse não ter registro desse procedimento por parte dos agentes da prefeitura. Em nota, afirma que a “Guarda Municipal acompanhou na tarde deste domingo, 6, o ingresso de cerca de 60 indígenas no antigo prédio da Secretaria da Produção, Indústria e Comércio (Smic)” e lembra a reunião agendada com Fuentes, “em busca de uma solução pacífica para a ocupação”.
Afirma ainda que “patrulhas da Ronda Ostensiva Municipal (Romu) da Guarda Municipal serão realizadas pelos agentes de segurança na região” e que a Procuradoria-Geral do Município (PGM) irá avaliar as medidas jurídicas cabíveis.
O que diz a Reitoria da Ufrgs
A Ufrgs também se manifestou em nota. Segundo a Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da universidade, a instituição “é aberta e trabalha pela inclusão”, oferece ingresso por todos os meios estabelecidos na legislação acadêmica, como cotas no vestibular e Processo Seletivo Específico para Indígenas. A instituição afirma que segue os limites e diretrizes estabelecidos pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e ressalta que foi “uma das universidades que mais destinou recursos nos últimos dois anos para o atendimento assistencial, o que inclui os indígenas”, com recursos investidos superiores a R$ 38 milhões.
A universidade ainda lembrou que mantêm três Casas do Estudante e que alunos indígenas têm vaga garantida nelas e, no caso de mães ou pais, existe a opção de um auxílio-moradia. Informou ainda que “está em contato com a Prefeitura de Porto Alegre, proprietária da área, para atuar de forma cooperada no tema” e que um representante da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis será indicado “para integrar os trabalhos e o diálogo com os estudantes indígenas”.
No final da tarde, o Extra Classe recebeu nota da prefeitura municipal de Porto Alegre. Leia a íntegra
Na tarde dessa segunda-feira, 7, em reunião realizada na Secretaria de Desenvolvimento Social (SMDS), os representantes do grupo de indígenas, que ocupou o antigo prédio da Secretaria da Produção, Indústria e Comércio (Smic), localizado entre a avenida Osvaldo Aranha e o Túnel da Conceição, solicitaram o apoio da Prefeitura na construção de um diálogo com a reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) para a criação de uma Casa do Estudante Universitário Indígena, que aceite a presença de crianças.
A reunião foi coordenada pelo secretário Léo Voigt que informou ao grupo a disponibilidade da Coordenadoria dos Povos Indígenas, Imigrantes, Refugiados e Direitos Difusos da SMDS para a construção do diálogo, mas que não há possibilidade de permanência deles no prédio devido ao alto risco que representa para a segurança das pessoas. Os representantes indígenas solicitaram a análise da cedência de algum outro prédio Municipal onde possam permanecer até o desfecho da situação.
A Guarda Municipal, que acompanha desde a tarde desse domingo, 6, o ingresso de cerca de 60 indígenas no local, vai seguir orientando e assegurando as questões de segurança . Patrulhas da Ronda Ostensiva Municipal (Romu) da Guarda Municipal serão realizadas pelos agentes de segurança na região.
A representante do Ministério Público Federal informou que será instaurado um processo para definir os procedimentos da questão e que o MPF está também disponível para auxiliar no diálogo. Será marcada uma audiência pública sobre a pauta.
A Procuradoria-Geral do Município (PGM) enfatiza que o imóvel ocupado por indígenas é de propriedade do Município, e que a demanda do grupo, formado por alunas da Universidade Federal do Rio grande do Sul, que reivindicam uma casa de estudantes, não tem relação alguma com o Município. Informa ainda que tomará as medidas jurídicas cabíveis para resguardar o patrimônio público, bem como a segurança das ocupantes.
Neste momento há cerca de 20 indígenas no prédio, em sua maioria mulheres com crianças.