Segurança de quem?
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A Constituição Federal de 1988 ampliou o conceito de “público” para além das fronteiras do Estado. Através do princípio da transparência, todo cidadão tem direito de receber dos órgãos públicos informações do seu interesse particular ou coletivo – um princípio que vem sendo violado de forma sistemática pelos governos antidemocráticos a pretexto de garantir a “segurança nacional”. A exceção é aplicada somente em casos em que o sigilo é determinante para a segurança da sociedade e do Estado, mesmo assim por determinados prazos
Mas quem define o que é sigiloso e os prazos dessa imposição? Como saber quem, sem função ou interesse público, pega carona no avião que leva um ministro de Estado para um compromisso, usando recursos públicos, por exemplo?
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As ações do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) que visam a dar sigilos de 100 anos às informações sobre os acessos de seus filhos ao Palácio do Planalto, e das ações de lobistas no Alvorada, entre outras que são ou foram questionadas por serem interpretações erradas ou de má-fé da legislação, estariam embasadas em quê?
As respostas cabem em uma sigla de três letras: LAI. É a Lei de Acesso à Informação, a qual completa no dia 18 de novembro uma década.
Projeto de lei do deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG), a LAI foi sancionada 23 anos após a promulgação da Constituição Cidadã. O ato da então presidente da República, Dilma Rousseff (PT), tirou do papel o princípio da transparência na administração pública.
Em seu sexto mandato, Lopes registra: “A Lei de Acesso à Informação foi uma conquista da sociedade brasileira que precisa ser não apenas valorizada, mas defendida e constantemente aperfeiçoada”.
Ele lembra que, se na Suécia, por exemplo, a legislação considera o acesso à informação como um direito público desde 1766, até a entrada efetiva da LAI no dia a dia da nação em 16 de maio de 2012, o cidadão brasileiro não contava com nenhuma garantia legal para ter acesso a uma informação solicitada. Era “necessário justificar o pedido e contar com uma decisão discricionária da autoridade. O sigilo era a regra”.
O sigilo é a exceção
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A LAI avançou ao estabelecer prazos para respostas a pedidos de informações e o direito da apresentação de recursos quando esses possam ser negados, destaca Bruno Morassutti, advogado, mestre em direito e especialista em direito público e cofundador da Fiquem Sabendo, agência de dados especializada na LAI e conselheiro da Open Knowledge no Brasil.
Além disso, foram restringidas as situações em que o poder público poderia classificar as informações e criou-se um mecanismo de revisão de decisões classificadas em que, periodicamente, as negativas precisam ser revistas. “Antigamente, a gente não tinha critérios muito claros para isso”, compara Morassutti.
Em nível federal, quatro instâncias de recurso foram criadas para os pedidos negados. “Tornou o processo mais maduro e nos deu chances de questionar cada elemento, cada tipo de negativa e aprimorar o acesso à informação de modo geral.” Ele vê, ainda, inovação na questão de política de dados abertos. “Antigamente, só tínhamos a Lei de Responsabilidade Fiscal que falava mais da questão da transparência ativa, mas focava em despesas e orçamento público. A LAI modificou totalmente o nosso cenário”, ressalta.
Ativa e passiva
O princípio da transparência é subdividido em transparência ativa, quando a administração pública disponibiliza a informação de forma proativa, e passiva, quando o cidadão solicita uma informação aos responsáveis pelos dados públicos.
A LAI, no entendimento de especialistas, foi clara em estabelecer informações que devem ser disponibilizadas pelos órgãos de forma ativa. Vão desde informações de contratos, licitações, informações sobre execuções de políticas públicas, relatórios, prestações de contas, despesas de forma geral e receita pública.
Morassutti diz que é importante frisar que a LAI apresenta uma lista de exemplos apenas. “Ou seja, o poder público não só pode, mas deve tornar públicas as informações. Não tem que ficar só naquela lista mínima da Lei de Acesso”, esclarece.
As dificuldades
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Se, de um lado, a lei estabelece procedimentos para que qualquer cidadão tenha acesso a informações sem necessariamente explicitar o motivo de sua curiosidade, por outro, lacunas ainda não sanadas nas regras possibilitam interpretações que podem cercear esse direito.
Guilherme Amado integra um segmento que revela para a sociedade bastidores que, muitas vezes, poderosos gostariam de deixar ocultos. Colunista do Metrópoles, vice-presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Amado integra o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos que investigou e divulgou em 2016 o Panama Papers, o escândalo das off-shores e, recentemente, denunciou o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, principais formuladores das políticas econômicas do governo Bolsonaro, por manterem empresas com contas em paraísos fiscais.
Amado destaca a importância da LAI. “Para nós, jornalistas, ela é um recurso muito valioso de apuração porque permite que a gente não fique dependendo da boa vontade de assessorias de imprensa que podem ou não querer nos responder”, explica.
Apesar disso, lembra, “sempre enfrentei problemas para fazer valer o direito. Várias informações só vêm nas fases recursais. Há informações que entendo como públicas que até hoje eu nunca consegui”.
Entre elas, um exemplo absurdo: “Se você tentar saber quem são os passageiros que vão com uma autoridade em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB), você não consegue”.
A persistência
“Se fosse depender, por exemplo, de assessoria de imprensa do governo Bolsonaro, a gente praticamente não teria resposta de nada. É um governo muito avesso ao questionamento da imprensa, não entende o nosso papel, e, simplesmente, não responde”, aponta o jornalista, que nos três anos de governo não teve uma só demanda atendida pelo Palácio do Planalto. “Sem a Lei de Acesso, a gente não teria como acessar a informação pública”, contrapõe.
Apesar das evasivas da FAB, no final de outubro a Folha de São Paulo conseguiu, através da LAI, divulgar que ministros de Bolsonaro levam familiares, pastores e lobistas em voos oficiais e que o filho 04 do presidente, Jair Renan, fez ao menos cinco dessas viagens.
Sigilo eterno
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Entre as causas que dificultam a plena utilização dos princípios da LAI, para Morassutti, estão margens deixadas no texto para que assuntos não relacionados a questões de segurança pública e de Estado sejam, conforme interpretação equivocada ou de má-fé, colocados em sigilo por tempo indeterminado.
Na prática, essa estratégia do governo abre brechas para “um sigilo eterno”, o que, paradoxalmente, a LAI objetivava acabar, contra-argumenta o advogado e dirigente da Fiquem Sabendo.
Ele também analisa que a LAI não criou um mecanismo de questionamento externo de decisões de acesso à informação. “Isso faz com que até hoje seja muito difícil de questionar, inclusive por meio do Poder Judiciário, quando uma informação não é disponibilizada, quando é negada.”
Amado, por outro lado, apresenta algo que considera uma “inovação” do atual governo: a “cumplicidade” da Controladoria Geral da União (CGU). O órgão, que, pela lei, cabe zelar pelo cumprimento da LAI, “passou a ser comparsa no ocultamento da informação pública. A CGU passou a fechar os olhos, a ser conivente com esse ocultamento”.
“No Ministério da Saúde, por exemplo, criou-se uma cultura de simplesmente não dar respostas, e a CGU é leniente com esse comportamento. Sem dúvidas, no governo Bolsonaro, a Lei de Acesso retroagiu bastante”, critica.
Exemplos de transparência
Fora do Executivo federal, o descumprimento à LAI piora, aponta Amado. Ele diz que a aplicação dela varia entre os entes federativos. Há casos em que ela é tratada com muita seriedade, outros, de modo leniente. Em síntese, não há um padrão e depende de estado para estado, de município para município, de Tribunal de Justiça para Tribunal de Justiça, de Procuradoria Pública para Procuradoria Pública. Reconhece, no entanto, que existem bons exemplos de transparência e que ela, no contexto geral, tem avançado diante dos retrocessos impostos por Bolsonaro.
A lei foi criada para fiscalizar o Executivo, mas deveria ter mais clareza “no que diz respeito à transparência do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público (MP) e dos Tribunais de Contas”, opina Morassutti. Ele se diz otimista em relação ao cenário geral. “Em uma análise informal, identificamos que no Congresso é muito mais fácil encontrar projetos que ampliem do que restrinjam o acesso à informação”, revela.
Enquanto as propostas tramitam, Amado afirma ser fundamental que a CGU volte ao seu papel de fato. Destaca, ainda, a importância de haver um “despertar do MP para que ele abrace sua função de fiscal da lei. Se um órgão repetidas vezes não cumpre a lei, cabe ao MP tomar uma atitude e fazer a LAI ser cumprida como qualquer outra legislação”, conclui.