GERAL

O Brasil exporta o arroz que falta no prato do brasileiro

ENTREVISTA COM TEREZA HELENA GABRIELLI CAMPELLO
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 12 de agosto de 2021

Foto: José Cruz/Agência Brasil

“A população não se alimenta de soja, de milho e de açúcar que é o que, em grande medida, nós produzimos no agronegócio brasileiro”

Foto: José Cruz/Agência Brasil

Economista e doutora em Saúde Pública pela Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), Tereza Helena Gabrielli Campello é professora visitante da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e titular da cátedra Josué de Castro, voltada a sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis. Em 2018, foi para a Inglaterra como pesquisadora associada da Universidade de Nottingham. Desde 2020, integra o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens-USP). Paulistana do município de Descalvado, Tereza Campello, 59 anos, participou da implantação do Bolsa Família nos governos Lula (PT) e, como ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome no primeiro governo de Dilma Rousseff (PT), recebeu o reconhecimento da FAO pelo conjunto de metas que retiraram o país do Mapa da Fome da ONU. Nesta entrevista, ela avalia o atual quadro de insegurança alimentar que, em diferentes graus, atinge 121 milhões de brasileiros. “É um paradoxo nós sermos um grande produtor de alimentos e voltarmos à fome, mesmo expandindo a produção. O Brasil aumenta os seus lucros com a exportação de arroz e falta arroz no prato dos brasileiros, tem o agronegócio com uma lucratividade esplendorosa e um desemprego gigantesco no país”, aponta

Extra Classe – A senhora contribuiu decisivamente para tirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU. Como está vendo a nossa atual situação, com o retorno dessa mazela?
Tereza Campello – A primeira grande questão que eu acho interessante tratar é que nós saímos do Mapa em 2014 e isso não foi para nenhuma manchete de jornal. Praticamente não foi abordado pela grande imprensa, jornais, televisões. Nada, nada. Então o Brasil, um país marcado pela fome, realiza um feito histórico e silêncio absoluto. Infelizmente, agora, a fome volta para as manchetes dos grandes jornais, das TVs. Uma tragédia e eu acho que a imprensa tem abordado o assunto – importante falar porque a situação é dramática e tem que ser enfrentada –, mas pecando por dois motivos. O primeiro deles é que, em geral, se atribui o retorno do Brasil (ao Mapa da Fome) à tragédia do coronavírus. Isso está errado. O Brasil já tinha voltado ao Mapa da Fome em 2017, 2018, no governo Temer, por conta do desmonte e da desorganização de um conjunto de políticas públicas. O segundo erro, crasso, é tratar da fome e, ato contínuo, falar da filantropia, da solidariedade; fazer chamamentos para que a sociedade, a população, doe alimentos.

EC – Filantropia e solidariedade seriam somente paliativos?
Tereza – Por mais que essa solidariedade, principalmente entre iguais – porque, em grande medida, tem sido prestada pela população pobre, da periferia – seja importante e deve ser louvada, nós não resolveremos nem 1% do problema da fome no Brasil, que é gigantesco, com solidariedade e filantropia. Somente políticas públicas são capazes de enfrentar uma mazela desse tamanho.

EC – Estamos falando em que ordem de grandeza?
Tereza – Nós estamos falando de cerca de 50 milhões de pessoas que não comem o suficiente por dia. Que só conseguem uma refeição por dia, ou só comem arroz ou só comem farinha. É uma Argentina inteira que precisa ser alimentada. Dessa população, 20 milhões, provavelmente 25 milhões hoje, em situação de fome. Temos dados somente de dezembro de 2020, quando ainda tínhamos o auxílio emergencial no valor de R$ 300. Hoje, a situação deve estar bem mais grave porque passamos praticamente quatro meses sem nenhum suporte do governo. Volto a dizer: isso não é resolvido com filantropia e solidariedade. Somente com políticas públicas continuadas, permanentes, com escala e com abrangência nacional.

EC – Por que o país voltou ao Mapa da Fome?
Tereza – Para entender por que nós voltamos para o Mapa da Fome, tem que entender por que nós saímos. Não foi natural a nossa saída do Mapa da Fome. O Brasil saiu graças a um conjunto de políticas públicas que permitiram que a gente enfrentasse a pobreza e a fome. A FAO lista cinco dessas políticas que foram estratégicas. A primeira delas é garantir prioridade no orçamento para essa agenda de soberania, segurança alimentar e combate à fome. Então, não é uma política, não são duas políticas. É um conjunto e o governo todo, inclusive estados e municípios, dedicados a isso. Outra questão é que o Brasil é um histórico produtor de alimentos, exporta, é um dos maiores exportadores de alimentos do mundo. No entanto, convivia com este país e voltou a conviver com este país que produz e exporta alimentos uma população gigantesca que passa fome. Não é por falta de potencial ou capacidade de produzir alimentos. É porque o povo não tinha acesso a esses alimentos. Acesso significa renda. Acesso significa outras formas de se chegar a esses alimentos.

Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

“O brasileiro, se puder, escolhe a comida tradicional, rica, forte, saudável, que faz bem e gera empregos no campo. Quem produz tudo isso é o agricultor familiar. Esse setor, sim, emprega muita gente”

Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

EC – O que mais a FAO apontou na ocasião?
Tereza – Salário mínimo com uma valorização de 74% acima da inflação; 20 milhões de empregos formais gerados durante os governos Dilma e Lula e programas como o Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada (BPC), um conjunto de políticas públicas que garantiram proteção de renda à população. Um terceiro grande aspecto, merenda escolar de qualidade que chegava a 43 milhões de crianças. Este, sim, com a pandemia, foi interrompido e o governo não conseguiu colocar no lugar políticas que garantissem que as crianças comessem direito. Outra grande questão foi o fortalecimento da agricultura familiar, com o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), com o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura), com o programa de cisternas, com assistência técnica. Tudo isso destruído pelo governo Temer e pelo governo Bolsonaro. Por último e não menos importante, a construção do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e os conselhos, conferências de participação popular e controle que nos pressionavam permanentemente. A primeira medida do governo Bolsonaro foi extinguir o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar). Então, esses pontos que a FAO listou como responsáveis por tirar o Brasil do Mapa da Fome foram destruídos pelos governos Temer e Bolsonaro.

EC – Quando a senhora foi para a Inglaterra, em 2018, imaginava que chegaríamos a esse retrocesso?
Tereza – Com tudo isso, natural seria dizer que, de fato, voltamos ao Mapa da Fome. Você me pergunta se eu esperava essa situação dramática, nesses patamares. Nesses patamares, sinceramente, eu não esperava. Mas lá em 2016 e 2017 a gente já dizia que o Brasil voltaria ao Mapa da Fome. Por quê? Não para agourar, não porque a gente tem uma bola de cristal. Porque é óbvio que, ao se desorganizar toda uma política pública, isso voltaria a acontecer.

EC – Como lhe soam tentativas de explicações como a que foi dada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, de que um dos motivos da fome aqui é o volume “do prato do brasileiro”, que, em relação ao europeu, por exemplo, gera grande desperdício?
Tereza – Chega a ser um acinte, não é? O ministro da Economia tratar a alimentação do povo brasileiro de uma maneira tão vulgar, mostrando não só completo desconhecimento do assunto, como demonstrando uma visão colonizada. O Guedes representa aquele 1% dos brasileiros que não conhecem o Brasil e que não querem conhecer. Aqueles que acham a coisa mais linda do mundo comer hambúrguer nos Estados Unidos, tomar Coca-Cola. O padrão alimentar desse senhor é esse. Ele é um Chicago Boy completo. Não é só obtuso do ponto de vista econômico, com pensamentos que estão superados desde a década de 1970, como faz apologia de um padrão alimentar que o mundo todo reconhece hoje como equivocado. A primeira grande questão: ele ofende o povo brasileiro, que hoje está com o prato vazio graças à política dele. Uma tragédia, o povo chupando osso, comendo feijão quebrado, que antes era dado aos animais. A fome se espraiando pelo país e o ministro da Economia, que, nesse caso, deveria ter ficado quieto, já que ele não entende do assunto, resolve dizer que o brasileiro come muito e que, por isso, falta comida. Ele ofende quem está passando fome, ofende os outros brasileiros e a nossa cultura alimentar que, diga-se de passagem, é uma referência hoje no mundo. Esses países que ele acha que são referência são os que hoje têm um padrão alimentar condenado por médicos e cientistas. Só para exemplificar: 60% da alimentação dos americanos e 60% da alimentação dos ingleses são de ultraprocessados, ricos em graxa, como dizem os gaúchos, em gordura, em sal, em açúcar. São alimentos completamente contaminados.

EC – Qual é a referência de padrão alimentar?
Tereza – A referência hoje no mundo é comer ao máximo possível alimentos in natura, que são a base da alimentação brasileira. Comer um arroz, comer um feijão, comer uma fruta, comer uma verdura. Comer um franguinho, de vez em quando um pescado, ou, nas diferentes regiões, conforme a cultura, um açaí com peixe. Então, isso que é uma realidade de uma alimentação não só rica como culturalmente muito valorizada, é completamente ignorada por esse senhor colonizado (Paulo Guedes), com essa mentalidade completamente distorcida e que despreza a população pobre, que despreza a cultura brasileira.

Foto: Marcos Correa/PR

“Ele não só não constrói políticas públicas como destrói o conjunto das ações que já foram feitas, desrespeita. Ignora a construção de políticas públicas baseadas em evidências”

Foto: Marcos Correa/PR

EC – Teria algo mais atrás desse desprezo?
Tereza – Na verdade, por trás dessa pessoa que chega a ser folclórica se não fosse ridícula, por trás desse ser, tem alguém que está preocupado única e exclusivamente em tirar vantagens da tragédia; tirar vantagens do sofrimento da população com a crise da covid-19 para dar mais e mais vantagens para a grande indústria, para as grandes redes supermercadistas, para concentrar mais riqueza. Tem gente que ficou escandalizada quando ele começou a dizer que a população poderia começar a comer alimentos vencidos. Mas, na verdade, ele não está preocupado com a questão sanitária. Ele não estava preocupado se isso ia fazer bem ou mal. A preocupação é de resolver a questão de estoques das grandes redes de supermercados.

EC – O governo disse que vai criar um grupo de trabalho para avaliar a flexibilização da regra que trata da validade de alimentos, na realidade, uma proposta da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), que tem o pretexto de evitar desperdícios. Qual é a sua opinião?
Tereza – Ele (Guedes) fez essa fala em um evento da Abras. Quer dizer, ele, na verdade, estava dando um sinal para o setor supermercadista, um setor muito concentrado. Na verdade, meia dúzia de empresas que até podem ter nomes fantasia variados, mas que, por trás, têm grandes conglomerados financeiros. O sinal: Vamos tirar vantagem da fome para tentar aprovar uma coisa que eles tentam aprovar já faz mais de dez anos e que a gente segurou. Por quê? Porque isso é errado. Desprotege a população brasileira. Porque não deixa claro se tal produto continua sendo bom para ser consumido ou não. Não deixa claro até quando isso poderia acontecer. Quer dizer, cobre de insegurança, mais insegurança ainda, esse ambiente alimentar que aqui no Brasil já é inseguro.

EC – Na USP, a senhora está em um núcleo que busca repensar a lógica e os impactos dos sistemas alimentares. Em síntese, que conclusões o meio acadêmico chega nessa reflexão?
Tereza – Uma das questões mais impactantes que a gente tem discutido na Faculdade de Saúde Pública da USP é como o Brasil continua paradoxal. É um grande paradoxo nós sermos um grande produtor de alimentos e voltarmos à fome, mesmo expandindo a produção. Então, você tem nos jornais estas duas grandes manchetes: o Brasil aumenta cada vez mais os seus lucros com a exportação de arroz e falta arroz no prato dos brasileiros. Você tem o agronegócio com uma lucratividade esplendorosa e um desemprego gigantesco no país. Se tem a impressão do PIB melhorando. Mas está melhorando para quem? Somente para um setor que não gera empregos hoje e que não alimenta a população. A população não se alimenta de soja, de milho e de açúcar, que é o que, em grande medida, nós produzimos no agronegócio brasileiro.

EC – Os mais variados discursos sustentam que a economia do Brasil é salva pelo agronegócio.
Tereza – Então, convivem a fome com essa grande indústria. O agro vai muito bem e o povo vai muito mal. Usando aí uma frase histórica, o PIB vai bem, mas o povo vai mal. Como diria a professora Maria da Conceição Tavares, o povo não come PIB. E o povo está comendo mal duplamente. Ele não só não come o suficiente, como tem consumido uma alimentação inadequada. Crescentemente, a gente passa a se alimentar disso que eu disse antes, que são os ultraprocessados, que não são mais alimentos.

EC – Por que os ultraprocessados não são mais alimentos?
Tereza – Você pega frações de alimentos, pedaços de alimentos, pega lecitina, por exemplo, coisas que até nem têm nome de comida. As nossas avós, quando iam fazer um bolo, não pegavam um pedaço de não sei o quê, mais um composto duplo fortificado. Não, ela pegava ovo, farinha, leite. Os produtos com os quais a gente se alimenta hoje não são comidas rigorosamente. Não são alimentos, são produtos ultraprocessados. Não é porque foi processado que faz mal, mas porque a forma como foi processado destrói e desorganiza esse alimento.

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

“Não resolveremos nem 1% do problema da fome no Brasil, que é gigantesco, com solidariedade e filantropia. Somente políticas públicas são capazes de enfrentar uma mazela desse tamanho”

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

EC – Em síntese, o país tem safras recordes e fome. Qual é a saída?
Tereza – O Brasil hoje convive com essas duas realidades e convive com dois problemas de má alimentação que são a fome e, ao mesmo tempo, com o sobrepeso e a obesidade. Isso é ainda mais surpreendente porque o Brasil tem uma experiência riquíssima. Não só por ter combatido a fome, mas por ter feito isso de uma forma sustentável e saudável, valorizando o que a gente chama de comida de verdade. O brasileiro não quer comer o macarrão instantâneo em substituição a um arrozinho, a um feijãozinho, uma carne moída com chuchu, com quiabo. A população brasileira, se puder, escolhe essa comida tradicional, tão rica, forte, saudável, que faz bem e gera empregos no campo. Quem produz tudo isso, de fato, é o agricultor familiar. Esse setor, sim, emprega muita gente.

EC – Que política pública combate a má alimentação?
Tereza – Estamos vivendo esse paradoxo hoje, mas o país conhece as políticas públicas. Foi esse núcleo em que estou trabalhando hoje na USP que nos deu o suporte, a consultoria, para construir o Guia Alimentar para a população brasileira, que teve uma primeira edição em 2006 e segunda em 2014. Hoje, ele é referência no mundo todo. Então, nós temos um Guia que mostra qual é o alimento saudável, que orienta as pessoas a comer ao máximo possível comidas frescas, verduras, legumes, saladas, grãos inteiros e não biscoitos recheados e esse monte de porcarias que está à venda. Esse Guia Alimentar, baseado na ciência, no que nós temos de mais importante da ciência no mundo, foi uma política pública construída no Ministério da Saúde em integração com vários ministérios com base na ciência, que, diga-se de passagem, foi abandonado por este atual governo.

EC – Como o atual governo lida com as políticas públicas?
Tereza – Ele (governo) não só não constrói políticas públicas como destrói o conjunto das ações que já foram feitas, desrespeita. Ignora a construção de políticas públicas baseadas em evidências. Nós temos um aprendizado muito grande. Eu acho que a grande experiência do país, eu poderia dizer, é que nós conseguimos, em tão pouco tempo, alterar a história do Brasil e o tirar do Mapa da Fome. Voltou. É difícil, mas é possível ser feito novamente. O Brasil fez. O Brasil serviu de exemplo. Agora, para isso, nós precisamos tirar este governo nefasto e, portanto, a principal medida hoje, além de comida no prato, vacina no braço, é fora Bolsonaro.

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