CULTURA

Arte contra o ódio

A arte feita por LGBTQIA+ representa uma artilharia capaz de desafiar preconceitos no país mais perigoso para esta comunidade
Por Cristiano Bastos / Publicado em 25 de junho de 2021
Gabriella Maindrad de Souza conseguiu o feito – inédito no conservador Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) – de ser laureada como a primeira prenda transexual da história

Foto: Igor Sperotto

Gabriella Maindrad de Souza conseguiu o feito – inédito no conservador Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) – de ser laureada como a primeira prenda transexual da história

Foto: Igor Sperotto

O Brasil é o lugar mais perigoso do mundo para a comunidade LGBTQIA+. Em 2020, 238 LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) tiveram morte violenta no país, vítimas da homotransfobia: 222 homicídios (93%) e 16 suicídios (7%). Os drásticos números são do último levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), que, há 42 anos, divulga o Relatório Anual de Mortes Violentas de LGBT. Quando se fala em violência contra esta população, em outras palavras, está se falando em crimes de ódio. E, para se combater o ódio, a arte feita por LGBTs – engajada ou não –, sem dúvida, conjura uma artilharia de grande simbolismo, cuja munição é capaz de desafiar todas as formas de preconceito.

De fato, a arte LGBT – quiçá como em nenhum outro momento da história – vem ocupando espaços (tradicionais ou não) e, a cada dia, se popularizando em múltiplas formas e estéticas. No Rio Grande do Sul, estado tradicionalmente cingido pelo machismo, os artistas assim identificados (embora tendo de enfrentar a intolerância tanto da sociedade quanto do sistema das artes) cumprem o crucial papel político de propor debates, lutar contra a perseguição e tocar em assuntos ainda tabus. E, em muitos casos, subverter ordens impostas socialmente. Nas artes plásticas e visuais, na literatura, música, teatro, dança, cinema ou fotografia, os artistas LGBTs gaúchos têm expressado resistência, orgulho e, também, suas subjetividades em suas obras.

Valéria Barcellos: cantora, atriz, DJ, performer e aspirante a fotógrafa

Foto: Divulgação

Valéria Barcellos: cantora, atriz, DJ, performer e aspirante a fotógrafa

Foto: Divulgação

Para a cantora de MPBTrans Valéria Barcellos, que também é atriz, DJ, performer e aspirante a fotógrafa (ela se define como “artevista” e “milituda”), a arte LGBT está intrinsecamente ligada a uma pluralidade de conceitos e ao que ela chama de “andar contemporâneo dos tempos”. Tal arte, na sua concepção, possui a valorosa propriedade de propiciar um “olhar diferente”, que, diz Valéria, joga luz em uma população ainda carente de ser vista e que, sobretudo, precisa ter seu espaço naturalizado – seja nos palcos, nas telas ou na vida. “Uma arte de feições LGBT carrega em si uma mensagem primordial, que, a princípio, pode até causar estranheza. Mas que, por outro lado, tem como particularidade despertar a curiosidade das pessoas, curiosidade essa que pode ser instigada de maneira não exatamente panfletária ou impositiva”, distingue Valéria.

Nascida em Itaqui (RS) e atualmente radicada em São Paulo (SP), a artista visual, performer e bailarina Élle de Bernardini já teve suas obras – cujos enfoques temáticos vão desde sexualidade e biopoder a políticas de gênero e identidade – expostos em instituições como Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs) e Memorial da América Latina. Élle estuda balé clássico desde a infância e, em 2011, tornou-se uma das poucas bailarinas transgênero a ingressar em uma turma feminina de balé da Royal Academy of Dance de Londres.

Élle, contudo, diz não querer limitar-se, em sua arte, a ser “refém” das questões de gênero: “Não quero fazer o que o sistema espera de mim”, salienta. “Mas não se trata de uma prisão no sentido pejorativamente ruim e, sim, de uma autoimposição.” “Essa prisão é no sentido de que nós, pessoas trans, temos a necessidade de colocarmos nossas narrativas de vida para discussão e, a partir delas, combatermos preconceitos.” A arte, ela acredita, é um grande “veículo de comunicação” à disposição da comunidade LGBT: “Nós falamos sobre nós mesmas em nossos trabalhos, porém, é como uma urgência de vida. E, muitas vezes, por uma exigência do mercado, que espera que falemos sobre as questões de gênero. Ou seja, muitas vezes é mais uma necessidade do que, propriamente, um desejo artístico de produção”, analisa.

Artista visual, performer e bailarina Élle de Bernardini

Foto: Igor Sperotto

Artista visual, performer e bailarina Élle de Bernardini

Foto: Igor Sperotto

Prenda trans

Em 2019, durante as comemorações dos 50 anos da celebrada Ciranda de Prendas, Gabriella Maindrad de Souza conseguiu um feito – inédito no conservador Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) – de ser laureada como a primeira prenda transexual da história. Surpreendentemente, o reconhecimento, dado por sua trajetória no movimento, veio do Centro de Tradições Gaúchas (CTG) de Mata, município localizado na Região Central do Rio Grande do Sul. Gabriella é servidora pública e, atualmente, ocupa o cargo de secretária adjunta de cultura do estado. Desde os sete anos – quando ainda se chamava Maurício – participa ativamente do MTG. Em 2003, aos 15 anos (ela fez sua transição em 2011, aos 25), concorreu no Entrevero de Peões, concurso que escolhe o Peão Farroupilha. Na etapa regional do certame, Gabriella levou o título de 2º Peão na sua categoria.

“Na verdade, eu sempre me via como prenda porque eu me descobri com seis anos. Então, desde aquela época, eu já me via como uma pessoa do sexo feminino”, observa Gabriella. Ela traz para o debate sua própria vivência no MTG (movimento que se identifica como organismo social de natureza nativista, cívica, cultural, literária, artística e folclórica), a qual considera ter sido fundamental para superar suas dificuldades de aceitação – e também de autoaceitação –, com as quais se deparou ao longo da vida. “Quando passei a me perceber diferente daquilo que determinada construção social esperava de mim, em relação a gênero e orientação sexual, foi dentro de um CTG, dançando e fazendo parte do tradicionalismo, que consegui superar muitas dificuldades que eu tinha no sentido de me sentir valorizada e reconhecida”, enaltece.

Transarte

Phelipe Caetano, roteirista, diretor e um dos fundadores do Macumba Lab

Foto: Igor Sperotto

Phelipe Caetano, roteirista, diretor e
um dos fundadores do Macumba Lab

Foto: Igor Sperotto

Phelipe Caetano, roteirista, diretor e um dos fundadores do Macumba Lab – coletivo de profissionais negros e negras do audiovisual no Rio Grande do Sul – tem no currículo filmes como Desvirtude (2020) e Duas Marias e Milá (2020). Caetano também é fundador do coletivo Homens Negros Trans e Transmasculines em Diáspora. Apesar de seu engajamento nas causas de gênero ou raciais, o cineasta diz que, embora seja um homem trans e negro, não quer para si a obrigação de, necessariamente, ter de fazer arte militante. “Às vezes, eu simplesmente quero escrever, por exemplo, o roteiro de um filme ‘água com açúcar’”, reivindica. Mas, frequentemente, pontua ele, as pessoas esperam por um posicionamento: “E, se tu não faz o que esperam de ti, parece que, por causa disso, não está se atendendo às expectativas”. Ele, primeiramente quer ser conhecido como Phelipe – editor, diretor e roteirista – para, somente depois, quando tiver obtido mais reconhecimento, então contar suas histórias de vida. “Daí eu terei mais espaço, mais abertura e, assim espero, mais dinheiro para bancar meus projetos cinematográficos”, acredita.

David Ceccon desenvolve seu trabalho artístico em diferentes linguagens

Foto: Igor Sperotto

David Ceccon desenvolve seu trabalho artístico em diferentes
linguagens

Foto: Igor Sperotto

David Ceccon, que desenvolve seu trabalho artístico em diferentes linguagens, diz identificar-se muito mais com uma perspectiva filosófica “queer” (palavra usada para designar indivíduos que não se encaixam nas normas de gênero preestabelecidas) do que, propriamente, LGBT. “Gosto mais da ideia de fluidez, de percorrer as possibilidades do corpo e da arte a bel-prazer. Isso fica evidente em meu transitar, seja pela escultura ou cerâmica ou pela pintura, gravura e fotografia”, afirma o artista.

A arte, define David, é um caminho para se despertar novas sensibilidades e, igualmente, para criar novas formas de se encarar a realidade, entendê-la ou criticá-la. Ela, ressalta o artista, sempre foi um espaço de resistência:  “Então, nada mais natural do que a arte acolher a diversidade e a inclusão tudo que for marginal nessa sociedade tão normativa. Nesse aspecto, eu acho que a arte tem o poder de mudar coisas, pessoas e paradigmas. Mas, fora a arte, sempre precisaremos de uma mobilização geral e, é claro, de militância”.

Cartografias da diferença

Gaudêncio Fidelis, curador do Queermuseu.

Foto: Igor Sperotto

Gaudêncio Fidelis, curador do Queermuseu.

Foto: Igor Sperotto

Desde o impeachment, em 2016, que impediu a presidente Dilma Rousseff de continuar seu mandato, o velho conservadorismo, literalmente, tomou de assalto os olhos e as mentes da nação. E muitos desses olhares recaíram justamente sobre a arte – que se tornava cada vez mais visível, por outro lado – de insígnia LGBT. Em agosto/setembro de 2017, o episódio do cancelamento da exposição Queermuseu – com o subtítulo “Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” –, em Porto Alegre, serviu como bode expiatório para a manifestação de uma série de hostilidades e agressões. Alvo de intensas críticas de grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL), que, na época, se identificavam com as hostes bolsonaristas e conservadoras – as quais viram em parte das 200 obras que compunham a exposição uma apologia à pedofilia, zoofilia e blasfêmia religiosa –, o Santander Cultural, instituição que recebeu o Queermuseu, cedeu, por fim, à pressão e resolveu suspender a mostra.

Tamanha foi a polêmica e repercussão midiática que o Queermuseu acabou ganhando o epíteto de “a exposição mais debatida e menos vista dos últimos tempos”. “Isso que muitos chamaram de ‘polêmica’, na verdade, foi o resultado de uma investida muito específica que começou com o MBL e criou uma narrativa falsa para a exposição”, alega Gaudêncio Fidelis, curador do Queermuseu. Para Fidelis, no entanto, o cancelamento da mostra significou uma batalha desferida em favor de liberdades individuais e contra “investidas obscurantistas”. “Importantes parcelas da sociedade entenderam que é possível, sim, empreender e vencer uma luta pelos valores democráticos. Acho que esse é o principal legado que o Queermuseu deixou”, avalia Fidelis.

 

Comentários