Um breve relato sobre a Constituinte no Chile
Foto: Carlos Vera / Colectivo2+
Foto: Carlos Vera / Colectivo2+
O dia 14 de novembro de 2019 tornou-se uma data que ficará na história do Chile. Naquele dia, houve uma greve nacional, que culminou em uma série de eventos. Esses eventos tiveram início semanas antes, em 18 de outubro. Ao longo daquele mês, grandes e massivas manifestações foram realizadas por todo o país, ocorreram também atos de muita violência, ainda maiores do que os vistos durante os dias de protestos gerados na ditadura de Pinochet, com saques de supermercados, incêndios de lojas, e com uma clara confirmação da incapacidade da polícia em prender os perpetradores, seja por cumplicidade ou mera incapacidade. Por outro lado, a forte repressão resultou em mortes, além de milhares de feridos e detidos. Foram centenas de espancamentos que causaram sequelas permanentes. Pelo menos duas dezenas de pessoas perderam o globo ocular. Em dois casos emblemáticos, manifestantes ficaram cegos como resultado dos tiros da polícia. Nessas condições, a greve nacional convocada por La Mesa de Unidad Social (frente sindical e dos movimentos sociais chilenos) foi muito relevante e atingiu fronteiras sem precedentes.
Diante dessa situação, o governo de direita de Sebastián Piñera, totalmente tensionado, teve de enfrentar duas possibilidades: buscar uma saída recorrendo a uma medida de força, a qual consistia em colocar militares nas ruas, ou seja, emitir um decreto de um estado de guerra na prática, com plenos poderes para reprimir as manifestações com sangue e fogo, ou uma solução política que reunisse todos os atores e buscassse com eles responder às demandas dos cidadãos. O governo adotou a segunda hipótese e convocou todas as partes, quando se avaliou o histórico da grave situação. Essas partes foram instadas a chegar a um acordo, que pedisse para gerar um clima de apaziguamento social a fim de evitar um enorme confronto.
Surgiu, então, a opção de tomar e dar caráter institucional a esta forte demanda social para acabar com a Constituição de 1980, instituída e imposta durante a ditadura Pinochet, a qual foi o grande obstáculo que surgia toda vez que se queria avançar, até mesmo em reformas mornas, para atenuar o sistema de abusos a que a sociedade chilena foi submetida.
Desta forma, todas as forças políticas, com exceção do partido de ultradireita Republicanos, que então se encontrava em processo de formação nacional, atenderam a essa convocação. No decorrer do debate, que durou muitas horas, os partidos de extrema-esquerda se retiraram: o Partido Comunista e alguns setores da Frente Ampla, uma formação de partidos jovens que haviam obtido imensa representatividade nas últimas eleições parlamentares. Porém, seu principal deputado, Gabriel Boric, decidiu permanecer nas negociações, sendo o único representante daquele conglomerado que assinou o acordo intitulado “Pela paz e pela nova Constituição”. Essa assinatura resultou em uma grande perseguição na mídia por membros de sua coalizão e de seu partido, Convergência Social, que censurou e suspendeu o parlamentar por algum tempo. No entanto, essa decisão, efetivamente, conseguiu reduzir de forma gradativa o clima de agitação social, e a sociedade chilena começou a se organizar para participar de um organograma cujo primeiro marco foi um plebiscito nacional para decidir se a maioria estaria prestes a mudar a Constituição e avançar no caminho para gerar outra carta fundamental, onde quem a escreve são setores que não vêm do mundo político tradicional. É assim que a cidadania chilena foi chamada para uma votação importante, em que duas coisas foram consultadas: se você quer uma mudança na Constituição e se realmente deseja, ela deve ser redigida por uma assembleia mista, ou seja, 50% dos parlamentares e 50% de cidadãos eleitos democraticamente, ou por 10% de constituintes eleitos pelo voto popular.
Os resultados foram absolutamente inesperados e, apesar da campanha dos setores conservadores, a mudança constitucional chegou a 78,6%, e o desejo dos cidadãos de que seja uma convenção constitucional composta exclusivamente por eleitos atingiu 82% de adesão.
Esta eleição deveria ter sido realizada em 2020. Infelizmente, teve que ser adiada para abril de 2021 e, posteriormente, até maio, dada a situação sanitária decorrente da pandemia.
Mais uma vez, a eleição dos constituintes, realizada com outras três eleições administrativas: prefeitos, vereadores e governadores, teve um resultado completamente surpreendente, mas alinhado com os resultados anteriores. Isso, apesar da enorme dispersão do mundo progressista. Com a impossibilidade de os partidos políticos pactuarem listas unitárias e inscrição de várias listas independentes, os candidatos do setor conservador sofreram uma retumbante derrota, atingindo menos de 25% dos eleitos, impedindo-os de chegar a um terço, o que seria uma grande barreira para promover mudanças fundamentais na nova Constituição.
O ponto negativo desta eleição foi que menos pessoas votaram do que no plebiscito. Nessa ocasião, quase 50% dos cidadãos votaram; desta vez, apenas 42%.
Quais são as mudanças exigidas pela sociedade chilena que alcançaram um grau de adesão tão elevado? Incorporar os direitos sociais na Constituição como responsabilidade do Estado. O que está intimamente relacionado a acabar com o conceito de Estado subsidiário e transformá-lo em uma entidade que participe ativamente da economia. “Mais estado e um melhor estado”, parece ser o desejo dos cidadãos. A recuperação dos recursos básicos é outra demanda muito importante, além de acabar com a privatização da água e transformar aquele elemento vital em um de uso público. A descentralização do país é outro fator importante, além de transformar o Chile em um estado plurinacional, com reconhecimento dos povos indígenas.
Esse processo, que gerou alta expectativa na cidadania e imensa preocupação nos setores conservadores, foi favorecido pela incompreensão dos tradicionais partidos políticos progressistas, os quais contam com um apoio inferior a 2%, segundo as pesquisas.
Foto: Marcelo Menna Barreto/Arquivo Extra Classe
Foto: Marcelo Menna Barreto/Arquivo Extra Classe
*Florencio Valenzuela Cortés (foto) é secretário executivo de La Federación Nacional de Sindicatos de Colegios Particulares (que representa professores da rede privada no Chile) e coordenador do Movimiento Independientes No Neutrales, um dos coletivos que elegeu 11 constituintes.